Uma reflexão sobre o Antropoceno e o Desastre em Brumadinho
Um evento, como o que ocorreu em Brumadinho, deixa ainda mais em evidência a capacidade de alteração humana na paisagem. Porém é preciso ter consciência que diferentes sujeitos provocam diferentes níveis de transformações.
Os seres humanos têm mantido com a natureza uma relação utilitária e mercantil, desenvolvida dentro de uma lógica de produção capitalista. Com isso, os impactos sobre os processos naturais e sobre as paisagens são cada vez mais perceptíveis, uma vez que a exploração dos recursos naturais têm tomado dimensões maiores ao longo do tempo, por conta do desenvolvimento da tecnologia e da ampliação da sociedade de consumo.
Com a recorrência de eventos que promovem grandes transformações na paisagem (entre eles, o rompimento da barragem da Vale, em Brumadinho), o termo Antropoceno tem sido frequentemente usado entre os pesquisadores. O Antropoceno é considerado uma nova época geológica, que é marcada pelas grandes alterações que os seres humanos são capazes de fazer na paisagem, graças à expansão da exploração dos recursos naturais. Com isso, os cientistas entendem que o poder de alteração do ser humano tem se assemelhado ao dos agentes naturais, como a água e o vento, sendo capazes de criar novas formas de relevo a partir da retirada de materiais de um local e o depósito em outro. Algumas dessas intervenções são diretas e intencionais, como a abertura de grandes crateras nas cavas de mineração para exploração dos minérios; outras são indiretas, como o assoreamento de cursos d’água devido ao desmatamento.
Porém é preciso sempre se perguntar sobre quais seres humanos estamos falando, pois o espaço é produzido de forma desigual. Enquanto individualmente somos capazes de gerar apenas pequenas mudanças na natureza, as grandes corporações têm capital e tecnologia suficientes para gerar grandes transformações. Esse fato é claramente perceptível em Brumadinho, em que há as alterações que foram feitas pelos moradores, como o preparo do terreno para construção de suas casas ou para atividades agropecuárias, e há as alterações que são fruto da mineração feita por grandes empresas, como uma mina a céu aberto ou uma barragem de rejeitos. Esse poder diferencial em alterar a paisagem fica ainda mais explícito com o rompimento da Barragem I, que impactou todo o sistema geomorfológico da bacia do Paraopeba, afetando os rios e as interações ecossistêmicas, além da produção alimentícia, a segurança e ocasionando na perda de moradia e de bens da população atingida.
Pesquisadores da Universidade Federal do Rio de Janeiro e da Universidade Federal de Juiz de Fora utilizaram uma técnica chamada de cartografia retrospectiva para identificar as alterações no relevo da bacia do ribeirão Ferro-Carvão antes e depois do rompimento da barragem da Vale. Por meio dela, é possível compreender melhor as transformações na paisagem e os estágios das atividades antropogênicas. Para obterem os dados necessários, foram utilizadas imagens de satélite e também trabalhos de campo, em que foram visitados cinco pontos da bacia hidrográfica.
Dessa forma, foi possível a criação de uma mapa geomorfológico (das formas do relevo), em que foram classificados os terrenos tecnogênicos, ou seja, terrenos que foram criados direta ou indiretamente pelos seres humanos. Os relevos de origem antrópica foram classificados em quatro classes: agradação, degradação, modificados e mistos.
Figura 2: O mapa mostra os 5 locais visitados em campo, além de acompanhar uma legenda sobre os relevos gerados pelas intervenções antrópicas na área, de acordo com os resultados do trabalho // Fonte: Eduardo et al., 2021.
A pesquisa mostrou que aproximadamente 32,8km², ou seja, 21,98% da área da bacia do ribeirão Ferro-Carvão é composta de feições antropogênicas e 7,21km², cerca de 9,69%, são áreas que foram cobertas de rejeitos de minério de ferro após o rompimento. Esses números correspondem às feições do relevo resultante da ação direta do homem. O rompimento da Barragem I resultou em terrenos chamados de mistos, pois houve a sobreposição de rejeito em locais em que já havia alguma alteração antrópica da paisagem.
Esse artigo mostra como o mapeamento geomorfológico pode ser uma ferramenta útil para categorizar a gênese das feições antropogênicas. Esse é um passo fundamental para o planejamento de ações de recuperação ambiental, pois é preciso entender como os processos de erosão e deposição acontecem nas diferentes áreas atingidas, para que se possa buscar a melhoria das condições ecológicas. Porém, além disso, pesquisas como essa são importantes para a conscientização da população sobre o quão intensas podem ser as transformações antropogênicas.
Com os desastres em Brumadinho e em Mariana, a questão do poder humano de modificar a paisagem vem ganhando notoriedade no Brasil. As transformações antrópicas nos levam à uma reflexão sobre questões econômicas, políticas e sociais, sobre o modelo econômico da nossa sociedade e como ela favorece uma pequena parcela da população, enquanto causa prejuízos à maioria. Por um lado, não se pode dizer que a paisagem na bacia do Ferro-Carvão era “natural” antes do rompimento, hajam vistas as intervenções pré-existentes na forma de assentamentos urbanos, áreas cultivadas, além do próprio complexo minerário; por outro lado, é inegável que o aporte de rejeitos imposto pelo rompimento da barragem sobrepôs as mudanças anteriores, transformando-se no principal elemento de transformação do relevo da bacia.
EDUARDO, Carolina Campos; FELIPPE, Miguel Fernandes; SILVA, Telma Mendes da. Proposta Metodológica para Mapeamento de Relevos Tecnogênicos em Áreas de Desastres Ambientais. Espaço Aberto, PPGG - UFRJ, Rio de Janeiro, v. 11, p. 5-26, 2021.