Restrições dão luz à criatividade

Mark diz que escrever um texto com uma restrição de assunto é mais fácil do que um texto que não tenha restrição de tema. O mesmo se aplica a cartas. Cartas dentro de um tema específico são mais fáceis de se fazer do que cartas sem um tema em particular. O fato vem de como funciona o cérebro. Ao se deparar com algo familiar a tendência é o cérebro buscar as referências que já existem. Se um problema é muito parecido com algo que você já viu a tendência é o cérebro buscar a solução onde é mais provável uma solução ser encontrada, algo familiar. Se o problema é novo, não há referências. Neste caso o cérebro é obrigado a buscar soluções onde não existem. Vem daí a criatividade.

Um mito que existe é de a criatividade é favorecida quando há mais escolhas possíveis. Vamos ao exemplo bem prático. Se você tiver que cortar um objeto e tiver dez tipos diferentes de facas e outros objetos cortantes, qual a escolha? Aquele objeto cortante que seja mais próximo do adequado para cortar o que se quer. Por exemplo, uma tesoura para cortar um papel no lugar de uma espada. Mas e se você não tiver uma tesoura? Vai procurar a próxima escolha que seja a mais próxima de uma tesoura. E se você não tiver nenhum objeto cortante? Será obrigado a fabricar um ou a improvisar. Ou seja, será obrigado a ser criativo. Milhares de outros exemplos são possíveis envolvendo sobrevivência, comida, relacionamentos, máquinas, consertos, dinheiro e muitas outras coisas.

Até mesmo artigos, provas e redações de vestibular são restrições impostas. Numa prova há um tempo limite. O que aconteceria se o tempo fosse dobrado? Há estudos estatísticos que comprovam que quando o tempo limite de prova aumenta, após um certo valor isso não garante que as pessoas tenham notas mais altas. Parece até contraditório, mas digamos que você tenha uma prova com um certo número de questões e que seja feita para durar 2 horas. Se o tempo for aumentado para 4 horas, é muito improvável que aquilo que você não saiba vá milagrosamente surgir na sua mente com mais tempo. Artigos científicos tem limitações de tamanho por uma questão de objetividade e pelo mesmo motivo uma redação de vestibular é limitada a uma página. De fato, pode parecer absurdo, mas quando o tempo é ilimitado ou o tamanho de um texto é ilimitado, a tendência natural das pessoas é desperdiçar a maior parte com coisas sem valor. Existem até estudos de psicologia que tratam disso, mas isso fica para outra hora.

Numa carta de magic qual a maior restrição (física) que existe? A caixa de texto. O texto da carta precisa caber em, digamos, 8 linhas. Isso acaba forçando a objetividade do texto. No level design uma parte das restrições é tecnológica. Um level precisa ter um nível de detalhamento que o hardware suporte. Mais do que o hardware suporta e o desempenho se torna um impeditivo. O que isso implica? Que o level precisa ser feito de acordo com restrições. Um level não pode ter um tamanho qualquer. O número de objetos tem um limite. Um level não pode ter dezenas de caminhos que confundam o jogador. Um level não pode ter um excesso de luzes. Um level precisa ser coerente e coeso consigo mesmo e dentro do contexto do jogo como um todo.

Um efeito interessante é que procurando por vídeos de jogos há muitos desafios impostos pelo próprio jogador. Por exemplo: completar um level o mais rápido possível. Quando se impõe uma restrição de tempo o jogador naturalmente procura por todas as formas possíveis de ir até o final do level no menor tempo possível. Com uma restrição de tempo o jogador pula partes que podem ser puladas, procura por atalhos e até mesmo bugs.

Em algumas comunidades há desafios como por exemplo construir um level segundo uma restrição de tamanho do arquivo. Digamos que a limitação seja 1 MB. Quem fizer o level precisa fazer tudo caber dentro de 1 MB e isso obrigatoriamente força o level a ser pequeno. Quanto mais limitado for um hardware ou, inversamente, quanto mais grandiosas forem as ideias, mais importante se torna fazer um level caber dentro de limites que não podem ser mudados.

A discussão pode ser ampliada para muitos outros assuntos. Tais como viver com o mínimo possível de dinheiro. Aproveitar melhor o tempo disponível. Mas isso vai longe demais para uma página como esta.


Restrições em level design

Nos jogos Duke Nukem 3D e Doom de 1993 não existe suporte para geometria 3D. Os levels são desenhados num plano 2D e a tecnologia não permite criar múltiplos andares ou estruturas acima de outras. Nos jogos Quake e Unreal essa limitação foi superada e os levels podem ter estruturas tridimensionais e múltiplos andares.

Credits: BigMacDavis, doom 2 map 15

Em doom não é possível ter pontes, mas é possível simular uma ponte. O piso sobe e permite a passagem no andar mais elevado. O jogador não pode passar por baixo da ponte. O que é possível fazer é ter teleport caso seja necessário atravessar para o outro lado no andar de baixo. Ou outra solução é colocar estacas espaçadas que permitem ao jogador passar por cima correndo ou por baixo por entre as estacas. Em alguns mapas mais modernos há truques como construir pontes invisíveis. O jogador pode passar por baixo e por cima, mas o jogo não renderiza a geometria já que ela não existe e a colisão é um truque.

Créditos: Tonttu, Duke 3D episódio 2 mapa 1

Em Duke 3D um truque para ter andares é enganar o jogador. O andar de cima não esta fisicamente acima do andar de baixo. A construção coloca o andar de cima em outra parte. O elevador que liga os dois andares não é um elevador, mas dois. Quando o jogador sobe ou desce ele é teletransportado e isso cria a ilusão de que o andar esta acima ou abaixo. A mesma coisa é feita com a água. Quando o jogador mergulha ele não esta no mesmo setor, na verdade ele foi teletransportado para outro setor que representa a parte abaixo d'água.

Em doom 1993 como seria possível ter um prédio de 10 andares? Cada level seria um andar e para criar a ilusão de que se trata de um mesmo prédio, toda a parte externa vista pelas janelas deveria ser repetida em todas as fases. Duke 3D e outros jogos da época até permitem um andar de cima, mas a restrição é que o jogador não pode ver um andar a partir de outro. Em Unreal, Quake e mesmo Duke 3D o céu não é um céu que faz parte do level, é uma textura com perspectiva. É um truque para fazer as nuvens e o céu estarem a uma distância grande e fixa do jogador.

A maior parte das restrições em level design se deve a limitações técnicas. Existem muitas coisas que não são possíveis por limitações de hardware. Por exemplo o tamanho de um level depende muito da quantidade de memória disponível. Se um level não cabe na memória ou se reduz o level ou se usam técnicas para carregar o level durante o jogo. Aí a limitação passa a ser a velocidade com que o hardware é capaz de carregar o level. Se for muito lento o level acaba sendo obrigado a ter pausas para que o carregamento seja feito. Outras limitações dizem respeito ao processamento. Por ex: custa muito simular água realisticamente. Ter uma enchente em tempo real num level custa muito processamento. O mesmo acontece com a simulação de vento. Árvores e grama em grande quantidade também custam muito processamento. É aí que entram soluções criativas pois é preciso sacrificar a exatidão da simulação em prol do desempenho por exemplo. Quando uma ideia não pode ser executada por pura imposição técnica faz-se necessário a busca por outra solução.

Restrições não podem ser usadas como justificativas para insucessos. Restrições também não devem ser uma justificativa para falta de qualidade. A qualidade de um level independe de restrições técnicas. Há outros tipos de restrições como orçamentárias, de tempo, mão de obra, questões comerciais ou criativas. Mas estas costumam ser mais subjetivas.