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Onze Henriques em campo

Inesquecível o jogo do Bugre com o Juventus, neste 29 de março de 2008, no estádio Conde Rodolfo Crespi, na rua Javari, em São Paulo.

O empate por dois gols não foi um bom resultado, mas a qualidade do jogo e alguns fatos fora de campo deixam lições importantes. Foi decisiva a participação da torcida, que jogou junto com o Bugre desde o primeiro instante em um sábado delicioso.

Fui ao campo da Mooca com meu filho mais velho, Camilo, que veio de Campinas na véspera. Descemos na estação Bresser do Metrô pouco depois do meio-dia. Vimos os trilhos do bonde que liga a estação do Metrô ao Museu da Imigração; passamos pela rua do Hipódromo, onde meu pai aprendeu o ofício de mecânico de aviões nos anos 40, o cenário da foto na sala de minha casa, em que ele posa ao lado de um caça P-40 e de um grupo de alunos na antiga Escola Técnica de Aviação.

Chegamos cedo para ter certeza de que não ficaríamos sem ingresso, pois na sexta-feira o Juventus já os vendia em sua sede social, o que raramente acontece. Queríamos também bater um bom papo. Por isso, decidimos não almoçar em casa, mas em um dos diversos botecos simpáticos daquele bairro cheio de história. Traçamos uma feijoada magnífica nos arredores do campo, entre o vozerio da torcida juventina à espera da abertura dos portões. Ao lado de nossa mesa, um torcedor grená não precisou ver a camisa bugrina, modelo 1978, escondida no bolso de Camilo para saber que estávamos ali para torcer pelo Guarani. Bebericando sua caipirinha, ele adiantou-se para informar que Vampeta não jogaria.

Abertos os portões, em pouco tempo Camilo e eu nos sentíamos em pleno Brinco de Ouro. Começado o jogo, o Bugre tinha onze jogadores em campo e várias centenas fora dele.

Nem o aloprado gol juventino aos três minutos do primeiro tempo esfriou o ânimo da torcida bugrina, que explodiu em incentivo tão logo a bola entrou na rede de Gisiel. A reação da torcida nesse preciso instante do jogo foi o que deu o tom do que faria o Guarani dali em diante. O chutão de Diego para afastar a bola da área e a rebatida involuntária no atacante adversário pareciam ter sido colocados no roteiro do jogo com o único propósito de testar os nervos do time e da torcida. Em outras circunstâncias, é possível que esse balde de água fria encerrasse as pretensões do Bugre no Campeonato Paulista. Nada disso, contudo.

Na mesma fração de segundo em que a bola parou no fundo do gol, a torcida reagiu com energia. Não por mera formalidade. O grito que se seguiu teve uma potência raramente vista no futebol. Mesmo em se tratando de um jogo no modesto estádio da rua Javari, com cerca de 2500 pessoas nas arquibancadas e somente um terço delas no lado bugrino, a ressonância da resposta fez vibrar o chão e chegou nos ossos dos jogadores, os do Bugre, que receberam de imediato o aval para continuar em luta, e os do Juventus, que perceberam o tamanho da fera atiçada. Tudo o mais foi determinado por esse instante dos acontecimentos.

Ainda reverberava essa vibração quando, perto dos 30 minutos, Cris tentou recuperar a bola no meio do campo e entrou duro no juventino Kanu, o autor do gol aloprado. Foi expulso o bugrino, que pagou o pato pela plástica do lance, um carrinho por trás com o consequente desempenho teatral do adversário para comover o árbitro. Na verdade, Cris foi expulso por excesso de vontade de jogar, de não deixar barato um lance perdido. Pode-se dizer que ele não precisava ter feito aquilo, mas fez. Tenho certeza de que movido pelo calor da torcida.

Racionalmente, era de se prever que o Bugre entregasse os pontos, pois teria de enfrentar com dez jogadores os 15 minutos restantes do primeiro tempo, mais toda a etapa final. Mesmo assim, com os comentários a cerca dessa dificuldade correndo de boca em boca na torcida, o Bugre quase empatou ainda no primeiro tempo. O que se viu no segundo tempo tem de virar placa de bronze.

A cara do Guarani foi a cara do volante Lucas, do meia Marcinho e do atacante Henrique. Foi de Lucas a jogada que deu início à virada. Foi ele quem não desistiu de uma bola perdida na intermediária, encarregou-se de recuperá-la, de levá-la para a direita do ataque e de cruzá-la precisamente em direção à cabeça de Henrique. Que golaço! A antítese do gol aloprado! Um gol bem construído, primeiro, pela garra; segundo, pela habilidade de Lucas; terceiro, pelo arremate de um atacante que joga com o coração da torcida dentro do peito. Henrique já está nos anais de luta do Guarani Futebol Clube, mas não tanto pelos gols marcados até agora neste seu campeonato de estréia. Ele é um cara raro.

No domingo anterior, conforme relata o Planeta Guarani, o nome de um certo Henrique de Jesus Bernardo foi anunciado pelo sistema de som do Brinco de Ouro no intervalo do jogo com o São Paulo como o do ganhador de uma camisa bugrina no sorteio de brindes entre os sócios-torcedores. Sim! Sem que ninguém desse conta no momento, o Henrique sócio-torcedor, em dia com suas mensalidades, era o mesmo que jogava com a camisa 9 do Bugre! Depois da partida, ele fez questão de buscar o brinde, que certamente nunca sairá da coleção de troféus que construirá na carreira. A essência dessa camisa Henrique foi mostrar para a torcida após o gol de empate ao apontar em suas costas o número 9 lá grafado. É artilheiro. É bugrino. Precisa ser preservado e valorizado. Tem de ficar em casa alguns anos antes de fazer o mundo.

Marcinho foi o construtor do gol da virada, em que o DNA de artilheiro de Henrique se manifestaria mais uma vez. Depois de arrancar com a bola dominada pela esquerda do ataque, Marcinho aplicou uma meia-lua no zagueiro, entrou na área e chutou forte, cruzado e rasteiro. O goleiro rebateu, foi atrapalhado por um juventino, Henrique pegou a sobra, virou-se e, com pouco ângulo e cercado por três adversários, colocou no canto esquerdo da meta. Gol de quem tem cabeça fria, inteligência, reflexo e talento.

A pressão do Juventus foi, ao longo do segundo tempo, anulada pelo Guarani em contra-ataques rápidos, como o que resultou no gol da virada. O limite, contudo, estava no fôlego. Lucas saiu exausto e, nos últimos minutos, Henrique já não conseguia adiantar-se com rapidez para esticar as jogadas até a área do Juventus. Com um jogador a menos, o Bugre concentrou-se na defesa até o troco inevitável. Uma falta de Vitor Rossini na meia lua – estou em dúvida sobre essa falta depois de rever a jogada em vídeo –, uma barreira mal formada, um goleiro mal posicionado e um chute perfeito de Dedimar, o mesmo zagueiro que tomara a meia-lua de Marcinho no segundo gol do Bugre, colocou o placar em igualdade para adiar até a última rodada a definição sobre o destino dos dois times na série A1 do Paulista.

Um jogão!

É importante enfatizar que o Guarani que tem entrado em campo nas últimas rodadas é um Guarani briguento e encardido. Encardido para os adversários. Os dois empates fora de casa, com o Paulista e o Juventus, foram obtidos em ritmo de Derby, ou mais precisamente no ritmo do segundo tempo do Derby deste ano, quando também houve empate após vantagem inicial do outro time. A capacidade de virar o placar com apenas dez jogadores em partida fora de casa não caiu do céu. É uma condição adquirida com o trabalho psicológico desenvolvido pela comissão técnica, depois da desmontagem freudiana a que foi submetido o elenco na primeira fase da competição. Nesse aspecto, é preciso admitir, Jair Picerni tem êxito. Que fique aí a lição: seja qual for o elenco, seja qual for o tamanho da folha de pagamentos do Bugre, seja qual for o técnico, o time do Guarani Futebol Clube deve sempre ser composto por onze Henriques. (30/03/2008)

A torcida do Bugre na rua Javari e o meu chapéu

(Foto: Planetaguarani.com.br)

O futuro do Guarani – Álvaro Caropreso