Mário de Carvalho

ERA UMA VEZ um gigante, enorme gigante, que vivia num altíssimo palácio, a meio da pradaria em que os ventos pararam. O gigante tinha pomares e tinha hortas e tinha vinhas. “É demasiada fartura”, pensou, enquanto se aquecia à lareira em que se queimavam robles inteiros. “Falta-me um tanto de sacrifício”. E desde logo decidiu prescindir do braço direito, assim jurou, e para sempre o deixou bambo e pendido. A grande sala do palácio era fria, formavam-se bolores brancos nos ângulos mais altos. De forma que o gigante sentia-se muito só e resolveu cobrir todas as paredes de espelhos. Mas o frio não passava e breve se enfadou daquela grande figura multiplicada que sorria quando ele sorria, falava quando ele falava, mexia quando ele mexia.

Fez por arranjar companhia e teve-a. Primeiro, uma pequena bailarina que rodopiava o dia inteiro sobre a mesa, sobre os móveis. Mas o gigante, por distracção, esmagou-a debaixo do cotovelo. Depois, um pequeno faquir, que levava o tempo a meditar, sereno. Mas o gigante, por distracção, esqueceu-se dele em cima de um aparador e o faquir morreu de fome e ficou-se seco, mumificado. Depois, um pequeno homem alado que revoluteava por toda a parte, em voo grácil de asas verdes. Mas o gigante, por distracção, deixou aberta a bandeira de uma janela e o homem alado nunca mais regressou.

“Não haja dúvidas, não sirvo para companhias”, reflectiu o gigante. E determinou viver só.

Ora, voltava um dia das suas adegas e trazia debaixo do braço esquerdo uma enorme ânfora com vinho, quando ao passar junto às margens do ribeiro que corre pela planície viu vir um jovem, cambaleando, de túnica rota e armadura fendida. Ao longe, tropel de cavalos levantava poeiras. O jovem entrou penosamente até meio da ribeira. O gigante distinguia-lhe a face, coberta de lama e sangue.

- Ei! - bradou o moço. - Leva-me contigo e defende-me, que filho de rei sou!

- Não posso - disse o gigante. - Decidi viver só.

- Então dá-me a tua mão e ajuda-me a passar...

- Não posso, que derramava o vinho.

- A outra mão!

- Não posso, que decidi não a usar.

Exausto, o jovem arrastou-se para a outra margem, onde já um esquadrão de cavaleiros negros o esperava, de lança enristada.

Seguindo o seu caminho, pensava o gigante: “Preocupa-me tanto, aquele mancebo...”

Mário de Carvalho, Fabulário, & etc., 1984