Autorretrato

Magro, de olhos azuis, carão moreno,

Bem servido de pés, meão na altura,

Triste de facha, o mesmo de figura,

Nariz alto no meio, e não pequeno.

Incapaz de assistir num só terreno,

Mais propenso ao furor do que à ternura;

Bebendo em níveas mãos, por taça escura,

De zelos infernais, letal veneno;

Devoto incensador de mil deidades

(Digo de moças mil) num só momento,

E somente no altar amando os frades,

Eis Bocage em quem luz algum talento;

Saíram dele estas verdades,

Num dia em que se achou mais pachorrento. 

Bocage (1765-1805)

II

Retrato Talvez Saudoso da Menina Insular

Tinha o tamanho da praia 

o corpo era de areia. 

E ele próprio era o início 

do mar que o continuava. 

Destino de água salgada 

principiado na veia.

E quando as mãos se estenderam

a todo o seu comprimento

e quando os olhos desceram 

a toda a sua fundura 

teve o sinal que anuncia 

o sonho da criatura.

Largou o sonho nos barcos 

que dos seus dedos partiam 

que dos seus dedos paisagens 

países antecediam.

E quando o seu corpo se ergueu 

Voltado para o desengano 

só ficou tranquilidade 

na linha daquele além.

Guardada na claridade 

do olhar

Natália Correia (1923-1993)

III

O'Neill (Alexandre), moreno português,

cabelo asa de corvo; da angústia da cara, 

nariguete que sobrepuja de través 

a ferida desdenhosa e não cicatrizada. 

Se a visagem de tal sujeito é o que vês

(omita-se o olho triste e a testa iluminada)

o retrato moral também tem os seus quês

(aqui, uma pequena frase censurada...)

No amor? No amor crê (ou não fosse ele O'Neill!)

e tem a veleidade de o saber fazer

(pois amor não há feito) das maneiras mil

que são a semovente estátua do prazer.

Mas sobre a ternura, bebe de mais e ri-se 

do que neste soneto sobre si mesmo disse... 

Alexandre O'Neill (1924-1986)

IV

Provinciano que nunca soube

Escolher bem uma gravata;

Pernambucano a quem repugna

A faca do pernambucano;

Poeta ruim que na arte da prosa

Envelheceu na infância da arte,

E até mesmo escrevendo crónicas

Ficou cronista de província; 

Arquitecto falhado, músico 

Falhado (engoliu um dia

Um piano, mas o teclado

Ficou de fora); sem família,

Religião ou filosofia;

Mal tendo a inquietação de espírito

Que vem do sobrenatural,

E em matéria de profissão

Um tísico profissional.

Manuel Bandeira (1886-1968)