Alexandre O'Neill

O bombeiro que não saiu da casca

O meu primeiro fogo (como bombeiro...) deflagrou em Amarante, num pardieiro  não longe da estação de caminho-de-ferro (linha do Vale do Tâmega, linha de via reduzida). Mal ouvi o sino da igreja da Misericórdia a badalar o aviso (código: o número de badaladas indicava a área onde o fogo se localizava), larguei a alegre ceata em que me excedia no arroz de frango e nos canecos de verde e corri vila acima com as minhas pernas de quinze aranhiças primaveras. Eu tinha (convinha-me ter) especiais responsabilidades: meu tio António era comandante dos Bombeiros Voluntários. Nada mais (tlim-tlim), nada menos (tlão-tlão). Por sinal apanhei-o a poucas dezenas de metros do grande braseiro. Com a sua asma mal conformada aos algodoados nevoeiros amarantinos, o tio António caminhava depressa, ofegoso e meio entontecido pelo bruto esforço. Com o comandante a respaldar-me, mal chegámos ao pardieiro atirei-me à iniciativa. Aos seus rogos de que voltasse para casa respondi com brio, presteza e balde. Trepei a uma empena  do casinholo e, ponta de lança, fui atirando para cima da gigantesca rosa ígnea a água dos baldes que uma correnteza de coadjuvantes rapazes me ia passando. Quando devolvia balde vazio, tinha balde cheio na mão. Entretanto, os Voluntários, com o telhado do pardieiro abatido, já só procuravam não deixar que o fogo se propagasse a uma estância  de madeiras vizinha, regando a agulheta, quase como jardineiros, o hífen pardieiro-estância. Percebi de repente que ali em torno se dissipara o nevoeiro e, por momentos, tive um pensamento de gratidão pelo «irmão» fogo...

- Desça, ó menino, que já não há nada a fazer!

Era a voz do povo, a voz meio irónica do povo. Como deixassem de me passar baldes, escorreguei pela empena e, já sem préstimo, atravessei por entre um corredor de risadinhas e voltei a casa com a sensação de ter falhado o meu primeiro fogo.

Generosidade não me faltava. Por que não a souberam aproveitar nesse carreiro de formiguinhas altruístas, nessa corrente de solidariedade? Quanta vocação de bombeiro voluntário não se matou, assim, no ovo?

Alexandre O’Neill, Uma Coisa em Forma de Assim, pp.100-101