Jorge de Sena

 in Metamorfoses, 1963

Pomposa e digna, oficialmente séria,

é geometria ideal de príncipes banqueiros,

sobrinhos, primos, tios de toda a Europa,

de reis, senhores de terras e armadores,

severamente equilibrados entre

o sexo, a devoção e as hipotecas.

O mundo é um imenso cais de intolerância austera,

a que aportam escravos, pimenta, a caridade

à sombra de colunas sem barbárie gótica.

Na boca firme, como no olhar duro,

ou no cabelo ferozmente preso,

ou nas imensas pérolas que se multiplicam,

ou nos bordados do vestido em que nem seios

se alteiam muito, há uma virtude fria, 

uma ciência de não-pecar na confissão e na alcova,

uma reserva de distante encanto

em que a Razão de Estado era um passeio altivo

por entre as árvores de um jardim areado,

com áleas racionais e relva em secção áurea.

Sem dúvida que os astros presidiram,

numa ciência de terra já redonda,

às próprias proporções que o quadro regem.

Palácios, festas, complicadas odes,

e procissões e cadafalsos e a

de um céu toscano limpidez que pousa no

pó e nas ruínas da imperial Toledo,

tudo isto  se condensa em penetrante

tom de ocre vago, onde as cores se opõem

como teses tridentinas muito práticas

elaboradas com paciência para o descanso eterno

dos príncipes cristãos que se devoram sob

a paternal vigilância de uma Roma etérea,

guardada pelos suíços, por cardeais e frades.

A grã-duquesa - se o foi, não foi, de quem é filha,

de quem foi mãe, ante um retrato assim

tão pouco importa! - fez-se pintar.

Mas a pintura era outra coisa, um escudo,

um escudo de armas e um broquel tauxiado,

para morrer tranquilo, quando a angústia brota,

como um vómito de sangue, do singelo facto

de ter-se ou não ter alma, os mundos serem múltiplos,

e o Sol rodar ou não em torno à terra inteira,

iluminando as multidões, as raças, tudo,

e os príncipes e os súbditos, nessa harmonia do mundo,

cujo estridor silente ao madrugar se ouvia

ranger discretamente, às portas dos castelos.

Lisboa, 6 Junho 59