Ler a argumentação

            É preciso caracterizar o melhor possível o discurso argumentado na medida em que é impossível definir os procedimentos de leitura a  partir de objectivos que não foram definidos previamente.

                1. Definir a argumentação

                A teoria da argumentação tem como objecto o estudo das técnicas discursivas que visam provocar ou intensificar a adesão dos espíritos às teses a que devam dar assentimento. (Perelman, 1968)

                No discurso argumentado existe uma componente lógica que desempenha um papel essencial. Porém essa componente é integrada num processo de raciocínio subordinado à pessoa dos locutores. O raciocínio integra-se, assim, numa relação de interlocução concreta, o que significa que a argumentação, no seu funcionamento, depende da atitude das pessoas a que se dirige. Portanto, a esta componente lógica é necessário acrescentar uma componente psicológica e uma componente social.

                Neste sentido, o discurso argumentativo é muito diferente do discurso científico (demonstrativo):

                Passar da demonstração à argumentação significa passar de um discurso onde os factores da enunciação foram neutralizados, onde o desenvolvimento das operações obedece a condições impostas pela sintaxe da lógica e do sistema demonstrativo, a um discurso onde o quadro e as condições da enunciação desempenham um papel determinante na escolha e disposição dos materiais utilizados - tipos de argumentos, esquemas de raciocínio ... discurso infinitamente aleatório, mais livre no seu desenvolvimento, discurso mais incerto na medida em que o escrevente (ou orador) nunca terá a certeza se consegue persuadir o interlocutor, o que explica os processos de reforço, um aspecto de redundância, típico do discurso argumentativo - características que estão ausentes na demonstração...

                2. O funcionamento da argumentação

                É preciso distinguir no discurso argumentado dois níveis:

 

O nível do raciocínio

O nível da realização linguística de superfície

onde se organizam as operações lógicas e onde se situam os conteúdos semânticos

o da lógica discursiva, da lógica argumentativa

 

                2.1. Ler a argumentação consiste em:

 

·       Identificar os conteúdos lógico-semânticos do discurso

·       Avaliar a importância do seu tratamento, isto é, a extensão do espaço discursivo assim constituído

·       Interpretar a natureza e a extensão do espaço discursivo

 

                Toda a argumentação se baseia à partida em proposições, explicitamente formuladas ou não, que têm de ser entendidas como verdadeiras, caso contrário será impossível “entrar” no debate.

                Argumentar é fazer de modo que um ponto de vista tome forma de verdade e seja tomado como verdade.

                Deste modo, há duas leituras da argumentação:

Passiva

Activa

Uma leitura manipulada, em que o leitor se preocupa unicamente com o que é dito, em que ele se torna no objecto sobre o qual incide a actividade do texto;

Em que leitor não se satisfaz em “sofrer” apenas os efeitos do texto, mas que procura identificar as fontes, apreciar os efeitos, fazer uma leitura responsável.

 

                3. As categorias do discurso argumentado[1]

 

               

 

                É possível encontrar misturadas estas diferentes categorias numa mesma argumentação...

                Face ao discurso argumentativo, mais do que face a qualquer outro tipo de discurso, deve ser posta em acção uma leitura dedutiva: o sentido do texto é deduzido da soma das informações de que o leitor dispõe sobre o local onde o texto surgiu, o seu autor, o momento da publicação, o tema, etc.

 

                3.1. Do ponto de vista didáctico, podemos trilhar dois percursos:

               

                - Propor ao aluno a leitura de micro-textos (textos muito curtos, um ou dois parágrafos, extraídos da imprensa, por exemplo) agrupados por tipo de discurso (...) para que o aluno possa progressivamente identificar, sob realizações discursivas diferentes, a mesma estratégia argumentativa, habituando-o a proceder a análises semânticas...

                - Apoiar-se sobre uma prática prévia do discurso argumentado que permitirá ao aluno constituir um sistema do discurso argumentado, apreciar a sua funcionalidade, reenvestindo-no num trabalho de leitura.

 

                4. Argumentação e objecção

 

                A argumentação constrói-se quase sempre em relação ao já-dito, em relação a um ponto de vista formulado. Ela é discurso sobre outro discurso, o que explica a complexidade do seu funcionamento e da sua descodificação, visto que há imbricação da lógica da argumentação refutada, com a lógica da argumentação que a refuta. No limite, o discurso argumentado é o discurso de refutação. Deste modo, convencer é vencer, isto é combater uma posição já definida, e ler a argumentação consiste em discernir, em identificar uma estratégia de refutação.

 

                4.1. Estratégias de refutação mais frequentes

 

 

                5. Critérios para a elaboração de uma ficha de leitura exaustiva do texto argumentativo

 

               

 

               

                Em alternativa à complexidade desta grelha, podemos utilizar o esquema proposto por H. D. Lasswell, desde os anos 30, com o objectivo de analisar o conteúdo dos discursos políticos:

 

                - Quem escreve?

                - A quem?

                - Sobre o quê?

                - Com que intenção?

                - Como?

                - Com que eficácia?

 

               

 

 

 

                Bibliografia:

 

                - G. Vigner, Lire l’argumentation, in Lire: du texte au sens, Clé International, 1979

 

 

               

                II -Enunciar, argumentar: operações do discurso / lógicas do discurso

 

                Algumas questões temíveis:

 

                - Como é que o sentido é dado ou construído pelo discurso?

                - E se há construção, que tipo de acções é que o sujeito que organiza o discurso tem de efectuar?

                - Poder-se-á definir essas acções em termos de “operações”, umas de pensamento, outras discursivas, e compô-las em modelo descritivo das estratégias que actuam na maioria dos discursos?

                - Como analisar então “logicamente” uma argumentação?

 

                1. O problema das relações entre os signos e o sentido, entre as palavras e as suas significações

               

                Para Platão, o sentido é a ideia ou a essência: um princípio inteligível comum à realidade e ao penamento.

                Aristóteles rejeita a transcendência das ideias e substitui-a  pela noção de forma, inerente aos indivíduos concretos. O que leva ao desenvolvimento da tradição do conceito, gerando, deste modo, o pensamento conceptual, que consiste em deduzir (dégager) formas abstractas a partir da experiência sensível e da observação concreta.

                Entretanto, as problemáticas das “essências” e das “ideias” cederam lugar primeiro ao nominalismo e depois ao empirismo dos Modernos.

                O nominalismo preocupa-se em primeiro lugar em preencher o desvio existente entre, por um lado, as nossas imagens, as nossas impressões oriundas da experiência, e, por outro, os conceitos abstractos que o pensamento elabora.

                (...)

                O desenvolvimento da linguística pós-saussuriana - em particular, o estruturalismo - veio reforçar a subordinação do sentido aos signos.

 

                Vitória do EMPIRISMO: as formas e as estruturas é que geram o sentido.

 

                Neste contexto, as análises da linguagem seguiram dois caminhos:

                O 1º inspirado nas ideias de C. S. Peirce, abandona o domínio da linguagem, não sendo este mais do que uma parte de um conjunto mais vasto e geral dos signos da vida social. Pressupõe-se que as diferentes classes de signos que compõem este conjunto manifestam entre elas certas homologias; o postulado subjacente é que o sentido geral de uma sociedade será compreendido desde que se tenha podido e sabido corresponder todos os sistemas de signos que funcionam numa certa sociedade.

                O 2º caminho procede do mesmo espírito de generalização. Baptizado como “análise do discurso”, a estratégia consiste, na maioria dos casos, em extrapolar a nível do discurso ou da narrativa, considerados como textos, as mesmas leis que aquelas que parecem reger a organização da frase elementar. Postula-se, também, que os diferentes níveis de organização e de funcionamento da linguagem mantem entre eles relações de homologia. Deste modo, o sentido de um discurso não é definido a partir de uma qualquer realidade exterior de que teríamos registo mas, exclusivamente a partir de uma análise “des agencements” internos deste discurso

 

                Este Empirismo foi, por outro lado, reforçado pelo contributo das concepções inspiradas pela semântica filosófica inglesa, em particular pelas noções de actos de linguagem, elaboradas por Austin e Searle:

 

                Um acto de discurso completo seria deste ponto de vista, considerado como o conjunto de:

                - um acto proposicional (o acto mesmo de dizer);

                - um acto “ilocucionário” (o que se faz ao falar: promessa, desejo, asserção...);

                - um acto “perlocucionário” (o que produzimos -o efeito - pelo facto de falarmos).

 

                A força lógica da frase proviria da conjunção destes três tipos de actos.

 

                A crítica: o sentido de uma frase como o de um discurso não seria mais do que a expressão do reconhecimento pelo interlocutor de uma certa intenção do sujeito enunciador em produzir tal ou tal tipo de acção ilocutória. Da subordinação do sentido às formas passamos a uma concepção da linguagem que o reduz a um catálogo de processos.

 

                Em síntese, actualmente são aplicadas ao texto duas noções de sentido.

                A 1ª é uma extensão da análise semiológica: compromisso entre dependências internas e definições de estruturas. Umas e outras são supostas engendrar e regular o sentido.

                A 2ª, derivada das “análises semânticas” da frase, puxa o sentido para o lado da referência, isto é, para o exterior da linguagem. Qualquer interpretação de um discurso só é possível se for feito um comentário sobre as circunstâncias sociais que rodearam ou estimularam a produção deste discurso. Geralmente, estas “circunstâncias” acabam por ser responsabilizadas pela organização formal do discurso.

                Nos dois casos, o sentido é apenas um pretexto do discurso, ou mesmo como referência escondida a interpretar para além do discurso. As especificidades da linguagem são ignoradas: esta é apenas concebida como meio de veicular significações. Sabemos, porém, que o discurso produz sentido e responde a um projecto de sentido.

 

                2. Sentido e significação

 

                O que, de verdade, está em jogo, é o tipo de relação que estabelece entre o discurso e o acontecimento que esse discurso constitui. Todo o discurso é acontecimento porque produzido por um certo indivíduo, num lugar e num momento. “É acontecimento pelo que fica nele, independentemente das características espácio-temporais que habitualmente ajudam a defini-lo.”

                Os Estoicos definiam:  O sentido é o “exprimido” da proposição, o acontecimento que insiste ou subsiste na proposição. Qualquer discurso, uma vez escrito, separa-se das características do seu surgimento. O seu sentido não é mais a intenção daquele que o pronunciou, mas uma intenção que pode por outros, ser identificada e reidentificada, e esse reconhecimento objectiviza-a como acontecimento do discurso e não apenas como acontecimento de um sujeito.

                O sentido é a relação que estabelecemos ao “determinarmos” os elementos constitutivos de um enunciado. O sentido de um discurso existirá a partir do momento em que esse discurso for construído. (...) O sentido é assim constituído por essas relações de contacto (rapports de mises en présence) instauradas, primeiro entre termos, depois entre proposições, compondo o discurso, e na condição, sem dúvida, que esse arranjo seja reconhecido como significativo, “lógico”, isto é, que o possamos compreender, seguir as marcas: palavras, ligações entre palavras, relações entre frases.

                A “significação” é então a construção por um discurso (...) de uma rede de referências para as quais se pode remeter este discurso e que permitirão “interpretá-lo”. O problema difícil da referência pode assim encontrar uma solução se o encararmos sob a forma de construções de sentido que se realizam graças às marcas de linguagem e que asseguram a relação entre os elementos do linguístico e os elementos exteriores a esse linguístico.

                Certamente que o discurso visa sempre uma certa realidade exterior. Mas essa realidade de referência nunca é um dado primitivo que o discurso evoca como tal. É uma “recurso exterior” que ele pode “trabalhar”, atribuindo-lhe mais ou menos valor, ou distanciando-se dela, pondo-a mais ou menos em causa. O discurso age sobre essa significação, construindo-lhe outras significações. É aqui que reside o seu sentido: produzir outras significações. É aqui que intervem o jogo dos argumentos.

                Os argumentos de um discurso manifestam jogos, mais ou menos controlados pelo sujeito, sobre as referências que ele quer assegurar e fazer reconhecer ao seu discurso.[2]

 

Quando se sabe que não existe nenhuma verdade do mundo admitida por todos, argumentar é agir sobre as verdades parciais de modo a reforçá-las ou diminui-las, tentando valorizar ou desvalorizar as significações que lhe estão associadas.

 

                Em síntese, o sentido de um discurso não se identifica com a sua forma, apesar da sua contribuição. Não se explica também pelo único recurso à consideração das circunstâncias que rodeiam o seu surgimento, embora estas possam contribuir para esclarecer a sua interpretação. O sentido de um discurso, é o tipo de objectos que ele constrói e aos quais vai dar significação, isto é, estatuto, afectando-lhes, por um lado, modos de existência, e por outro, reportando-os a objectos do mundo, supostamente admitidos por todos ou, pelo menos, reconhecidos por certos tipos de auditórios: objectos físicos, actores sociais, situações, acontecimentos, opiniões, teorias, crenças.

                Discorrer, argumentar, é verdadeiramente agir.[3]

 

                3. As acções do sujeito

 

                Todo o discurso é um conjunto de acções levadas a cabo pelo seu sujeito, umas necessárias, outras possíveis. Necessárias porque determinadas pelas regras da linguagem utilizada: o modo como a linguagem é estruturada e deve ser estruturada para que o discurso seja reconhecido como pertencendo efectivamente aquela linguagem.

 

               

               

[1]  - Roland Barthes (1970), na sequência da antiga retórica.

[2]  - “Jeu de sens de: “placements, déplacements, mises en pièces, déconstructions, constructions de significations, actions de ce fait sur les références.

[3]  - G. Vignaux, L’argumentation, Genève, Droz, 1976.