O Futurismo
O FUTURISMO reage aos "crepusculares" e, duma forma geral, a todo o decadentismo romântico, iniciando em 1909 uma nova etapa da literatura italiana e da literatura em geral: instala a desordem e o movimento nesse reino de escritores cadáveres, cospe nos altares sacrossantos do passado, inaugura o grande festival da loucura criativa, que se prolongará até contaminar toda a arte moderna. É o período heróico até 1920...
O FUTURISMO organiza-se estética e filosoficamente a partir dum desenho ideológico onde cabem escritores naturalistas como ZOLA, poetas como WHITMAN e filósofos como NIETZCHE ou BERGSON...
O primeiro movimento artístico dotado de uma «ideologia global», isto é de um conjunto de concepções que se estendem a todos os ramos da actividade humana, da arte à política, da gastronomia à filosofia, tem de ligar-se à ambiência que ressalta de certos romances de Zola; aos cânticos de exaltação Whitmaniana à vida, ao corpo, a saúde, à força e à indústria nascente (a influência deste poeta e pensador, principalmente das suas Leaves of grass, opera igualmente duma forma acentuada em relação a outros movimentos dos princípios do século, nomeadamente no grupo expressionista "Die Brücker"; à obra de Maxime du Camp les chants modernes, aparecida em 1885, verdadeiro hino à ciência moderna, com simultâneo ataque aos ideais clássicos de beleza; às obras literárias de Michelet, Rosny aîné, principalmente La Vague Rouge de Paul Adam e aos poemas do flamengo Verhaeren (sobretudo no tratamento do tema da grande cidade moderna em Les Villes tentaculaires); à defesa do verso livre principalmente em França por Gustave Kahn e depois em Itália, à margem do movimento, por Gian Pietro Lucini, através do volumoso Il verso libero, publicado em 1908, por Marinetti; à estética da máquina e ao culto da velocidade que pela primeira vez foi feito por Mário Morasso, que em 1904 afirmava: «É essencialmente do mundo mecânico, mundo descoberto e criado por nós, que pode surgir esta necessidade de novas linhas estéticas, é a máquina nossa contemporânea que pode sugeri-las e inspirá-las»; ao mito nietzscheano do super-homem presente, de resto, em quase toda cultura romântica; à apologia da violência, feita por Georges Sorel em Reflexions sur la Violence; ao pragmatismo, intuicionismo e vitalismo de Bergson, etc.
Por outro lado, o belicismo, o intervencionismo, a arrogância fascizante, o «orgulho nacional» e a apologia da acção directa não são obviamente alheias ao clima ideológico e político da época, a particularidades histórico~políticas da própria Itália nas décadas que antecederam imediatamente a primeira guerra mundial, onde pontificava um certo sindicalismo revolucionário defendido por Enrico Leone, as teorias da «missão» italiana no mediterrâneo de Oriani, um anti-parlamentarismo e um anti-socialismo preconizado entre outros pelos colaboradores da revista Leonardo, publicada de 1903 a 1907, dirigida por Papini e Prezzolini que preconizavam a «necessidade de fazer algo de importante» encarecendo a «audácia de ser louco», loucura que só se poderia enobrecer na «guerra geradora e rainha de tudo» (Prezzolini). Daqui a doutrina futurista da «guerra única higiene do mundo» vai apenas o tempo necessário para que as contradições imperialistas se agudizassem a ponto de tornarem iminente a 1ª guerra mundial.
Afastado o «terrorismo técnico», de que certos aspectos constituem a inovação que maior importância teve no que respeita a contribuição do movimento para toda a arte moderna, fica-nos um "romantismo" exacerbado, ou antes uma ânsia de esgotar o romantismo, um pensamento radical onde se manifesta uma labilidade ideológico-emocional pequeno-burguesa (na contestação de uma ordem de valores que urgia substituir) que originará a apologia do activismo cego, a exaltação da guerra e o irracionalismo que está na base da construção da mitologia e da «ordem» fascista. É claro que fascismo e futurismo não se identificam (e não precisamos de, para o demonstrar, referir o futurismo russo que apoiou e serviu a Revolução de Outubro), mesmo no âmbito da cultura italiana não o afirmaríamos sem cometer um grave erro. Mas o clima ideológico que está na base da ditadura de Mussolini envolveu, completou e informou duma forma estreita o futurismo italiano.
Pela exuberância oratória, pela intervenção prática pela criação de um novo horizonte místico e pela definição duma elite literária (à boa maneira simbolístico-romântica francesa) os futuristas renovam as tendências mais profundas da cultura romântica, adaptando-as às necessidades estéticas resultantes da transformação ideológica operada pela alteração das estruturas de produção capitalistas nos últimos anos do século XIX e no princípio do nosso século.
José Mendes Ferreira, Antologia do Futurismo Italiano - manifestos e poemas, ed. Vega
Manifesto do Futurismo, publicado no "Figaro" de Paris em 20 de Fevereiro de 1909
F.T. MARINETTI (1876-1944)
1. Nós queremos cantar o amor do perigo, o hábito da energia e da ousadia.
2. A coragem, a audácia e a rebelião serão elementos essenciais da nossa poesia.
3. A literatura exaltou até hoje a imobilidade pensativa, o êxtase e o sono. Nós queremos exaltar o movimento agressivo, a insónia febril, o passo de corrida, o salto mortal, a bofetada e o soco.
4. Afirmamos que a magnificência do mundo se enriqueceu com uma nova beleza: a beleza da velocidade. Um automóvel de corrida. com o seu cofre enfeitado por grossos tubos semelhantes a serpentes de hálito explosivo... um automóvel que ruge, que parece correr debaixo de fogo, é mais belo do que a Victória de Samotrácia.
5. Queremos glorificar o homem que segura o volante, cujo eixo ideal atravessa a Terra, ele também lançado em corrida, no circuito da sua órbita.
6. É preciso que o poeta se enriqueça com ardor, esforço e liberdade, para aumentar o entusiástico fervor dos elementos primordiais.
7. Já não há beleza senão na luta. Nenhuma obra que não tenha um carácter agressivo pode ser uma obra-prima. A poesia deve ser concebida como um violento assalto contra as forças ignotas, para reduzi-las e prostrá-las diante do homem.
8. Estamos no promontório extremo dos séculos!... Porque razão nos devemos acautelar, se queremos arrombar as misteriosas portas do impossível? O Tempo e o Espaço morreram ontem. Vivemos agora no absoluto, pois criámos a velocidade omnipresente.
9. Queremos glorificar a guerra - única higiene do mundo - o militarismo, o patriotismo, o gesto destruidor dos libertários, as belas ideias pelas quais se morre e o desprezo pela mulher.
10. Queremos destruir os museus, as bibliotecas, as academias de todas as espécies, e combater contra o moralismo, o feminismo e contra todas as baixezas oportunísticas ou utilitárias.
11. Cantaremos as grandes multidões agitadas pelo trabalho, pelo prazer ou pela rebelião; cantaremos as marés multicolores ou polifónicas das revoluções nas capitais modernas; cantaremos o vibrante fervor nocturno dos arsenais e dos estaleiros incendiados por violentas luas eléctricas; as estações glutonas, devoradoras de serpentes que deitam fumo, as fábricas penduradas nas nuvens pelos fios retorcidos dos seus fumos; as pontes semelhantes a ginastas gigantes que galgam os rios, balouçando ao sol com um brilho de facas; os piroscafos aventurosos que farejam o horizonte, as locomotivas de peito amplo que atropelam os carris, como enormes cavalos de aço com freios de tubos e o voo deslizante dos aeroplanos cuja hélice rasga o vento como uma bandeira e parece aplaudir como uma multidão entusiasta.
(...)