arquitextualidade - notas
Texto literário e arquitextualidade. Ver Carlos Reis
Arquitextualidade: este conceito designa uma propriedade ou um conjunto de propriedades articuladas entre si, que podem ser entendidas como referência geral capaz de explicar certas semelhanças que congraçam muitos textos literários.
A arquitextualidade define-se como “o conjunto das categorias gerais ou transcendentes - tipos de discurso, modos de enunciação, géneros literários,etc - de onde decorre cada texto singular.”
Neste capítulo a arquitextualidade orienta-se para o estudo da genologia.
Exemplificação: Memorial do Convento de José Saramago - É ou não um romance histórico? Para C.R. não é. (230,231, 264)
Genologia: isto é, o estudo dos modos, dos géneros e dos subgéneros literários. Ou como refere V. A. S.: teoria dos géneros literários
A refutação da existência de entidades transcendentes de tipo arquitextual baseia-se no princípio da irrepetível singularidade dos textos literários ( ver Benedetto Croce). Esta atitude é contrariada, por ex., por Lukács, Bakhtine ... (233)
A atitude dos escritores em relação aos géneros literários (234)
A questão do deslocamento da teoria (dizer acerca das obras) para a metateoria (dizer acerca da própria teoria) (235)
A problemática dos géneros literários, campo específico do campo mais amplo, que é o dos géneros do discurso.
A definição e descrição de géneros literários é legítima, antes de mais em função da condição social da linguagem verbal. (237)
Os modos do discurso e géneros literários
Os modos (...) surgem como essências, extraídas das características permanentemente válidas dessas formas relativamente evanescentes que são os géneros. (244)
Os modos derivados corresponderão às essencialidades (qualidades) - ver Roman Ingarden: Estas qualidades não são propriedades objectivas (...) revelam-se normalmente em situações e acontecimentos complexos e frequentes muito diversos entre si como uma atmosfera específica que paira sobre os homens e as coisas que se encontram nestas situações (245)
A literatura narrativa e a literatura dramática facultam-nos uma experiência estética da que é favorecida pela literatura lírica.
Modos ou universais de representação
Radical de apresentação(140) estará na base das distinções de género na literatura: as palavras podem ser representadas diante de um espectador; podem ser faladas perante um ouvinte; podem ser cantadas ou entoadas; ou podem ser escritas para um leitor.
Modos literários: isto é, os modos fundacionais da literatura: o modo lírico, o modo narrativo e o modo dramático.
Observação: a condição modal não anula a possibilidade de interferências ou contaminações... (241, 242)
A necessidade de aceitar a proposta de Bakhtine sobre géneros de discurso primários, não articuláveis necessariamente com modos fundacionais da literatura
O trágico como género e como modo
Os géneros literários (hipercódigos) podem definir-se como categorias substantivas, representando entidades historicamente localizadas, quase sempre dotadas de características formais variavelmente impositivas e relacionáveis com essa sua dimensão histórica.
Géneros literários do modo lírico
Géneros literários do modo narrativo
Géneros literários do modo dramático
Q. O que é distingue os modos dos géneros?
R. Os géneros literários são por natureza instáveis e transitórios, sujeitos ao devir da História, da Cultura e dos valores que as penetram e vivificam... (247) são entidades mutáveis (249). Esta mutabilidade acentuou-se, sobretudo depois do Romantismo (249) Os géneros traduzem uma certa cosmovisão, deduzida do diálogo com os valores, com as ideias e com a sociedade em que o escritor se integra. (251) Daí a sua irrevogável historicidade (262)
Texto doutrinário “prólogo” do poema Camões de Garrett
Os textos líricos e os textos narrativos são fundamentalmente literários, num sentido que remete para a dimensão verbal do literário. (265) Os dramáticos, sendo também literários, são mais do que isso. (265)
A percepção do género no acto interpretativo (286)
Thomas Kent: “ a capacidade do leitor para ler competentemente a identidade do género de um texto - aquilo a que chamo percepção do género - pode ser encarada como um tipo de pré-condição para a própria interpretação.”
A desconstrução genológica (287):
Exemplos: O Livro do Desassossego de Bernardo Soares; Rumor Branco de Almeida Faria; Pensar de Vergílio Ferreira
Ver soneto de José Gomes Ferreira (292)
Postulação de novos géneros
- harmonização pluridiscursiva
Facto e ficção na literatura e na teoria literária: a notícia de jornal, o relatório policial, a telenovela, a publicidade, o panfleto ideológico (...) instituem registos ontológico-literários oscilantes entre o facto e a ficção, registos por isso mesmo designáveis pelo termo facção. (294)
• o caso da Ode em Fernando Pessoa: Horácio vs Walt Whitman (248)
Bibliografia
• Ver em Carlos Reis, O drama e o espectáculo teatral (265-284)
• Roman Ingarden, A obra de arte literária: cap.
• René Wellek e Austin Warren, Teoria da Literatura
• M. Zéraffa, Romance e sociedade, Lisboa, Estúdios Cor, 1974.
• N. Frye, Anatomy of Criticism
• C. Guillén, Literature as System
• René Wellek e Austin Warren, Teoria da Literatura, cap. XVII, Géneros literários
• Platão, República, Livro III
Textos doutrinários
1. Prefácio da 1ª edição do Poema Camões de Garrett
A índole deste poema é absolutamente nova; e assim não tive exemplar a que me arrimasse, nem norte que seguisse
Por mares nunca dantes navegados
Conheço que ele está fora das regras; e que, se pelos princípios clássicos o quiserem julgar, não encontrarão aí senão irregularidades e defeitos. Porém declaro desde já que não olhei a regras nem a princípios, que não consultei Horácio nem Aristóteles, mas fui insensivelmente depós o coração e os sentimentos da natureza, que não pelos cálculos da arte e operações combinadas do espírito. Também o não fiz por imitar o estilo de Byron, que tão ridiculamente aqui macaqueiam hoje os franceses a torto e a direito, sem se lembrarem que para tomar as liberdades de Byron, e cometer impunemente os seus atrevimentos, é mister haver um tal engenho e talento que, com um só lampejo de sua luz, ofusca todos os descuidos e impede a vista deslumbrada de notar qualquer imperfeição. Não sou clássico nem romântico; de mim digo que não tenho seita nem partido em poesia (assim como em coisa nenhuma); e por isso me deixo ir por onde me levam minhas ideias boas ou más, e nem procuro converter as dos outros nem inverter as minhas nas deles: isso é para literatos de outra polpa, amigos de disputas e questões que eu aborreço.
A acção do poema é a composição e publicação d’OS LUSÍADAS; os outros sucessos que ocorrem são de facto episódicos, mas fiz por os ligar com a principal acção. Tão sabida é a fábula ou o enredo d’OS LUSÍADAS e a vida do seu autor, que nem tenho mais explicações que fazer a este respeito, nem será difícil ao leitor o distinguir no meu opúsculo o histórico do imaginado: mas não separará decerto muita coisa, porque das mesmas ficções que introduzi têm a sua base verdadeira as mais delas.
Sobre ortografia (que é força cada um fazer a sua entre nós, porque a não temos) direi só que segui sempre a etimologia em razão composta com a pronúncia; que acentos, só os pus onde sem eles a palavra se confundira com outra; e que de boamente seguirei qualquer método mais acertado, apenas haja algum geral e racionável em português: o que tão fácil e simples seria se a nossa Academia e Governo em tão importante coisa se empenhassem.
Paris, 22 de Fevereiro de 1825.
2. Romantismo e nacionalismo cultural: “Introdução” a Romanceiro, de Garrett (1843) - p.512/513, in Conhecimento da Literatura, de Carlos Reis.
3. Platão, República, Livro III
(...) Tudo o que dizem os contadores de fábulas e os poetas não é narração de acontecimentos passados, presentes ou futuros?
- Como poderia ser de outro modo? - inquiriu.
- Pois bem! Para isso não empregam a narrativa simples, imitativa ou uma e outra simultaneamente?
- Peço-te uma explicação mais clara acerca disso.
- Parece que eu sou um mestre ridículo e obscuro. Portanto, como os que são incapazes de se explicar, não tratarei o assunto no seu conjunto, mas numa das suas partes, e tentarei assim demonstrar-te o que quero dizer. Responde-me: não conheces os primeiros versos da Ilíada em que o Poeta conta que Crises pediu a Agámemnon que lhe restituísse a filha, que este se irritou e que o sacerdote não tendo obtido o objecto que solicitava, invocou o Deus contra os Aqueus?
- Conheço.
- Sabes então que até esses versos:
ele implorava todos os Aqueus
e sobretudo os dois Atridas, chefes dos povos,
o poeta fala em seu nome e não procura desviar o nosso pensamento noutro sentido, como se o autor dessas palavras não fosse ele, mas outro. Porém quanto ao que se segue, exprime-se como se fosse Crises e esforça-se por nos dar, tanto quanto possível, a ilusão de que não é Homero quem fala, mas o ancião, sacerdote de Apolo; e compôs mais ou menos da mesma maneira toda a narrativa dos acontecimentos que se passaram em Ílion, na e em toda a Odisseia.
- Perfeitamente - disse ele.
- Ora, não há narrativa quando se trata dos discursos pronunciados por uma e outra parte que ele reproduz e quando se trata dos acontecimentos que se situam entre esses discursos?
- Como não?
- Mas, quando fala em nome de outro, não diremos que torna, tanto quanto possível, a sua elocução semelhante à do personagem cujo discurso nos anuncia?
- Diremos. Porque não?
- Ora, tornar-se semelhante a outro por meio da voz e do aspecto é imitar aquele a quem se quer ser semelhante?
- Sem dúvida.
- Mas, nesse caso, parece, Homero e os outros poetas servem-se da imitação nas suas narrações.
- Perfeitamente.
- Pelo contrário, se o poeta nunca se dissimulasse, estaria ausente de toda a sua poesia, de todas as suas narrações. Mas, para que não me digas que não compreendo isso também, vou-to explicar. Com efeito, se Homero, depois de ter dito que Crises foi, levando o resgate da filha, interceder junto dos Aqueus, sobretudo dos reis, depois disso não se exprimisse como se se tivesse transformado em Crises, mas como se continuasse a ser Homero, sabes que não haveria imitação, mas simples narrativa. Eis, mais ou menos, qual seria a forma - exprimir-me-ei em prosa, dado que não sou poeta:
“Uma vez chegado, o sacerdote pediu aos deuses que concedessem aos Aqueus a tomada de Tróia e os mantivessem a salvo, contanto que eles lhe devolvessem a filha, aceitando o resgate e temendo o deus. Quando assim falou, todos lhe testemunharam deferência e o aprovaram, mas Agamémnon irritou-se, ordenando-lhe que partisse imediatamente e não voltasse, com medo de o cetro e as faixas do deus já lhe não servissem de nada. Antes de ser libertada, a sua filha, acrescentou ele, envelheceria com ele em Argos. Portanto, ordenou-lhe que se fosse embora e não o irritasse se queria chegar são e salvo a casa. O ancião, ao ouvir estas palavras, foi tomado de pânico e retirou-se em silêncio, mas, assim que saiu do acampamento, dirigiu um grande número de preces a Apolo, invocando este deus por todos os seus nomes, conjurando-o a recordar-se e a compensar o seu sacerdote, que sempre, quer construindo templos, quer sacrificando vítimas, o honrara com presentes agradáveis; como recompensa, pediu-lhe ardentemente que fizesse expiar os Aqueus, pelas suas flechas, as lágrimas que vertia.”
Aqui tens, camarada, uma narrativa simples, sem imitação.
- Compreendo - disse ele.
- Compreende também que há uma espécie de narrativa oposta a esta, quando se suprime o que diz o poeta entre os discursos e se deixa ficar unicamente o diálogo.
- Também compreendo isso - respondeu. - É a forma própria da tragédia.
- A tua observação está certíssima - prossegui -e penso que agora vês claramente o que não te podia explicar há pouco, isto é, que há uma primeira espécie de poesia e de ficção inteiramente imitativa que compreende, como disseste a tragédia e a comédia; uma segunda em que os factos são relatados pelo próprio poeta - encontrá-la-ás sobretudo nos ditirambos - e, finalmente, uma terceira formada da combinação das duas precedentes, em uso na epopeia e em muitos outros géneros.