Fernando Pessoa

                         I

                    ULISSES

             O mito é o nada que é tudo.

             O mesmo sol que abre os céus

             É um mito brilhante e mudo

             Vivo e desnudo.

             Este, que aqui aportou,

             Foi por não ser existindo.

             Sem existir nos bastou.

             Por não ter vindo foi vindo

             E nos criou.

             Assim a lenda se escorre

             A entrar na realidade,

             E a fecundá-la decorre.

             Em baixo, a vida, metade

             De nada, morre.

                            II

  D. SEBASTIÃO REI DE PORTUGAL

Louco, sim, porque quis grandeza

Qual a Sorte a não dá.

Não coube em minha certeza;

Por isso onde o areal está

Ficou meu ser que houve, não o que há.

Minha loucura, outros que me a tomem

Com o que nela ia.

Sem a loucura que é o homem

Mais que a besta sadia,

Cadáver adiado que procria?

                        III

             O CONDE D. HENRIQUE

Todo o começo é involuntário 

             Deus é o agente,

O herói a si assiste, vário

E inconsciente.

À espada em tuas mãos achada

Teu olhar desce.

“Que farei eu com esta espada?”

Ergueste-a, e fez-se.

                     IV

              O INFANTE

Deus quer, o homem sonha, a obra nasce.

Deus quis que a terra fosse toda uma,

Que o mar unisse, já não separasse.

Sagrou-te, e foste desvendando a espuma.

E a orla branca foi de ilha em continente,

Clareou, correndo, até ao fim do mundo,

E viu-se a terra inteira, de repente,

Surgir, redonda, do azul profundo.

Quem te sagrou criou-te português.

Do mar em nós em ti nos deu sinal.

Cumpriu-se o Mar, e o Império se desfez.

Senhor, falta cumprir-se Portugal!

                        V

                                O Mostrengo

O mostrengo que está no fim do mar

Na noite de breu ergueu-se a voar;

À roda da nau voou três vezes,

Voou três vezes a chiar,

E disse: "Quem é que ousar entrar

Nas minhas cavernas que não desvendo,

E o homem do leme disse, tremendo:

"El-Rei D. João segundo!"

"De quem são as velas onde me roço?

De quem as quilhas que vejo e ouço?"

Disse o mostrengo, e rodou três vezes,

Três vezes rodou imundo e grosso,

"Quem vem poder o que só eu posso,

Que moro onde nunca ninguém me visse

E escorro os medos do mar sem fundo?"

E o homem do leme tremeu, e disse:

"El-Rei D. João Segundo!"

Três vezes do leme as mãos ergueu,

Três vezes ao leme as reprendeu,

E disse no fim de tremer três vezes:

"Aqui ao leme sou mais do que eu:

Sou um Povo que quer o mar que é teu;

E mais que o mostrengo, que me a alma teme

E roda nas trevas do fim do mundo,

Manda a vontade, que me ata ao leme,

De El-Rei D. João Segundo!"


                                VI

                        Epitáfio de Bartolomeu Dias

Jaz aqui, na pequena praia extrema,

O Capitão do Fim. Dobrado o Assombro,

O mar é o mesmo: já ninguém o tema!

Atlas, mostra alto o mundo no seu ombro.


VII