Didática da Literatura

Lothar Bredella, Introdução à Didáctica da Literatura, Publ. D. Quixote, 1989               

Como determinar o âmbito da didáctica da literatura?

Hoje, entende-se a didáctica de uma disciplina “como a integração de outras disciplinas específicas - a sociologia, a psicologia e a pedagogia..

Johannes Timmermann dá-nos a seguinte descrição das funções que competem à didáctica de uma disciplina:

“ A didáctica de uma disciplina alia essa disciplina específica à ciência da educação e às ciências sociais, tendo em vista a investigação sobre o ensino e a formação de professores. - Analisa o domínio do objecto de disciplinas específicas, de forma a torná-lo mais acessível

No mesmo sentido, Stocker define a didáctica de uma disciplina:

"Como uma ciência de integração de outras cuja função será de elaborar uma teoria sobre o modo mais eficaz de organizar os processos de ensino e de aprendizagem, não deixando de atender aos interesses do sujeito que aprende, do objecto a transmitir e do objectivo a alcançar."

Em torno do conceito integração

A concepção da didáctica de uma disciplina como uma ciência de integração parte do princípio de que a disciplina em causa trata do objecto, a sociologia e a psicologia estudam o aluno e a sociedade, e a pedagogia estabelece e fundamenta os objectivos gerais da educação, de forma que, ao organizar os processos de aprendizagem, ela terá de reunir as três áreas.

Relação entre ciência da literatura e didáctica da literatura

De acordo com Karl Otto Conrady, a didáctica da literatura será entendida como uma ciência da mediação[1], a qual, ao transmitir os conhecimentos dessa disciplina, deverá atender às capacidades e aos conhecimentos limitados dos destinatários, enquanto que a ciência da literatura se poderá dedicar ao objecto, sem que tais limitações constituam obstáculo.

Deborlav chama a esta concepção “o entendimento pedagógico do leigo” / conceito positivista da ciência que rejeita qualquer interrogação sobre o sentido da ciência como não tendo carácter científico, porque entre o ser e o dever ser vê um fosso intransponível. (18, 19)

Alfred Clemens Baumgärtner rejeita a ideia da didáctica da literatura como uma ciência da mediação, porque isso acarretaria a adopção de critérios formais e específicos de cada género literário, próprios da ciência da literatura. Baumgärtner pretende que a didáctica da literatura desenvolva a sua própria atitude problematizante em relação ao objecto da literatura. (20)

Aceitando a concepção positivista da ciência[2] da literatura que exclui a relevância do literário para a existência humana, a questão do sentido formativo só poderá colocar-se na medida em que a didáctica da literatura se separar da ciência da literatura.

Porém, Peter Heintel defende que a questão do sentido formativo ( a dimensão didáctica) deve ser procurado dentro da própria ciência e não ser lhe aduzido a partir de fora: a disciplina deve assumir a sua especificidade pedagógica e formativa. Recorrendo aos conteúdos que lhe são específicos, ela deverá provar qual é ou qual poderá ser a sua missão no que respeita à formação do homem. O modo como ela leva estes conhecimentos a cada um, é, em comparação tarefa secundária. (21)

Como refere Timmermann “ a ligação da didáctica de uma disciplina à ciência dessa disciplina só pode ser justificada, na medida em que esta última contribui para a compreensão que o indivíduo tem de si próprio e do mundo.”

 A relação entre teoria e praxis na didáctica da literatura

Na concepção positivista, a didáctica da literatura é equiparada à praxis e a ciência da literatura, à teoria. (...) Numa tal definição dos dois conceitos, a teoria torna-se incapaz de fornecer à praxis qualquer orientação do sentido, nem a praxis consegue actuar sobre a teoria. E mais ainda: a problemática central da didáctica da literatura, a diferença entre conhecer e agir, fica fora do nosso alcance. (24)

A relação entre teoria e praxis depende daquilo que se entende por praxis. Se a praxis for aquele domínio que está sempre sujeito às exigências da educação e da formação, à teoria cabe a função de tornar conscientes essas exigências que determinam a praxis e de possibilitar ao docente uma orientação do sentido que, partindo da praxis, tem como objectivo a praxis.

O problema da legitimação do ensino da literatura e a questão da auto-determinação e da auto-configuração. A auto-determinação pressupõe o ser humano condicionado e finito que, em face do mundo exterior e interior, tenta determinar-se a si próprio. Assim, à educação e à formação impõe-se também a tarefa de abrir este mundo ao horizonte de motivação do sujeito da aprendizagem, de modo que este possa decidir, diante do mundo interpretado. (27)

Objectivo: - modificar o comportamento do aluno, nos tempos livres, em relação à leitura

Função antropológica da literatura: compensar uma realidade dolorosa; isto é, permitir que o aluno esqueça uma realidade frustante, por intermédio da literatura. (16)

Todavia, a literatura pode ser entendida não na sua função compensatória, mas a partir da sua exigência de sentido.

O ensino da literatura é posto em causa por vários sectores e, em alguns casos, é considerado pernicioso e injustificável. (25)

A única norma que deve reger a acção pedagógica: tornar possível a autodeterminação do sujeito da aprendizagem... na medida em que a educação “não tem o direito de formar homens a partir de fora.” Adorno (27)

Em que medida o estudo da literatura poderá contribuir para a “auto-determinação e para o agir motivado”? A resposta a esta pergunta depende em grande parte da definição do que é a literatura. (28)

A didáctica da literatura como teoria da educação e da formação literárias tem como missão tornar conscientes todas as concepções, princípios e normas, de que qualquer praxis sempre exigiu socorrer-se.

Nesta medida, ela estuda o ensino da literatura como seu objecto. Mas não lhe basta ser apenas teoria do ensino da literatura; ela é igualmente teoria para o ensino da literatura... a didáctica tem de pôr o problema da legitimação da literatura. (28)

A didáctica da literatura necessita, ainda, da reflexão sobre as exigências projectivas que o ensino faz aos alunos.

A legitimação do ensino da literatura não pode depender do facto de ele impor ao sujeito da aprendizagem certas normas e modos de acção, mas, antes, de ele ser capaz de alargar o horizonte de motivação do aluno e de diferenciá-lo. (31)

O modelo de ensino orientado pela crítica da ideologia

A crítica de Fingerhut: este modelo conduz apenas à indignação moral que acaba por redundar em resignação e cinismo, já que não proporciona aos alunos quaisquer possibilidades de acção. (29)

 A literatura como contributo para uma praxis orientada para o sucesso ou como instrumento de uma higienização social.

 As concepções de literatura de Platão e de Aristóteles como fundamento de modelos de didáctica da literatura

A crítica violenta de Platão (A República) - para quem a literatura não tem como meta atingir o conhecimento da praxis correcta, da justiça e do bem, mas que se satisfaz apenas com a representação daquilo que o homem considera justo ou injusto, bom ou mau; ela limita-se a representar as crises da vida e as emoções controversas da alma, sem procurar saber qual é o seu verdadeiro motivo - deve-se, no entender de Hans-Georg Gadamer ao facto da literatura não conseguir dar qualquer resposta a duas importantes questões:“Qual é a maneira autêntica de viver?”- Qual é a sua “utilidade social”? (33)

A insuficiência da literatura encontra-se no facto de ela repetir o que existe (regista apenas a estrutura de superfície da sociedade), acomodando-se ao que existe / G. Rohrmoser. Nesse sentido, o leitor, apenas, encontra confirmadas na literatura as suas concepções e normas.

No essencial, Platão acusa a literatura de visão superficial da realidade e de, fruto da aptidão artística do escritor, poder desvirtuar a reflexão, a razão e a autodeterminação, na medida em que a literatura não é um domínio isolado, retirado de todo o contexto da vida, que só consegue operar por meio do sentimento.

De certo modo, para Platão, à literatura cabe a tarefa de fornecer regras morais e de confirmar a ordem política, sem, todavia, se deixar tutelar, quando encarada em termos de recepção, isto é, relacionando o objectivo geral - a realização do homem - e a recepção da literatura. / Rohrmoser (35)

Como compreender a transição daquilo que o ser humano é, pela sua natureza, de um estado de dependência de processos biológicos, psíquicos e sociais para a autodestinação. E qual o papel que a arte pode desempenhar em todo este processo?

A arte pode tornar o ser humano receptivo, de forma a que ele atenda ao logos; pode, no entanto, desviá-lo igualmente deste objectivo, fazendo que ele se feche ao logos. O poder estético é, por conseguinte, ambíguo. Por um lado, ele é capaz de devolver ao ser humano a capacidade de abandonar a sua auto-alienação, de fazer as pazes consigo próprio, por outro lado, também é capaz de o manter preso à sua auto-alienação e de o separar do seu si-mesmo racional, até à sua destruição na loucura.”

Rohrmoser (35)

A literatura leva até à consciência aquilo que, num primeiro momento, lhe é estranho e incompreensível, ampliando, assim, as possibilidades de experiência e o espaço de decisão do receptor. O ser humano, como ser finito que é, para o qual o acesso ao mundo é sempre limitado, necessita da mediação através de outras propostas interpretação e de compreensão do mundo, de forma a sair da sua timidez e do seu isolamento, e poder compreender-se a si próprio, tanto na sua diferença como na sua ligação aos outros.

Apesar de tudo o que tem sido dito, a crítica de Platão não visa a literatura em si. (36) E nesse sentido, a concepção de literatura de Platão pode fundamentar um modelo de didáctica da literatura que vise a “emancipação e autoconfiguração” do ser, porque o próprio conceito de literatura integra este objectivo geral da educação.

Serão necessárias estas observações para a fundamentação da didáctica da literatura, quando esta se vê obrigada a obedecer ao objectivo da aprendizagem - que consiste na leitura crítica - e que educa os alunos no sentido de desconfiarem das estratégias de persuasão utilizadas nos textos literários? Será que essa didáctica não encontrará nas perguntas concretas, orientação suficiente:

· Que objectivo procura o autor atingir com o texto?

· A quem serve esse texto?

· De que forma se encontra ele condicionado pela situação histórico-social?

· Que significado assume o conteúdo informativo transmitido para a esfera da vida do aluno?

· Quais as consequências, se o receptor responder ao convite para agir, implícito no texto?

Se a crítica não conhecer as possibilidades e os limites do objecto, tornar-se-á mera condenação do objecto, ignorando as possibilidades que ele proporciona, tornando-se arbitrária e superficial.

Enquanto que Platão, na interpretação de Rohrmoser, apreende a literatura a partir da questão da realização do ser humano, Aristóteles, segundo Schadewalt, procura entendê-la, tomando como ponto de partida o efeito que ela exerce no espírito do receptor, sem preconceitos. Enquanto que Platão criticara a entrega, sem reservas, aos afectos de dor e de temor, como forma de auto-alienação, Aristóteles procura demonstrar que esta entrega, numa perspectiva ética, não é nociva. (37)

Segundo Schadewalt, Aristóteles insere a literatura no domínio do entretenimento e do lazer. A Aristóteles interessava apenas a “caracterização mais exacta do prazer e da alegria características da tragédia”, e não uma intenção pedagógica. Aristóteles não compreende a arte na acepção de uma auto-realização do ser humano, mas segundo critérios de higiene - terapeuticos. O espectador passa por uma purificação, à semelhança de uma purga medicinal; associada, precisamente, ao prazer, e este prazer é inofensivo.

Tendo em conta a interpretação que Aristóteles dá da literatura, temos um modelo de fundamentação da didáctica da literatura completamente diferente do pressuposto na doutrina de Platão. Um modelo em que a literatura tem uma função recreativa e compensatória. (38) Uma literatura liberta de todas as imposições de ordem ética, política e noética..., espaço de fruição plena, de distensão e de alegria.. Uma literatura capaz de garantir o descanso das grandes massas, suprimindo as tensões entre os vários estratos da população.

Duas concepções diferentes quanto ao efeito da literatura:

A obra literária como proposta de sentido no qual o que está em causa é a “praxis orientada para o sucesso”, exige do receptor que ele, por um lado, veja o que é representado, projectado sobre as suas representações e normas e que, por outro, ele ponha em causa as suas representações. O processo de recepção é uma operação consciente e a realidade ficcional e a do receptor estão inter-relacionadas. (40)

De acordo com a segunda concepção, o processo de recepção é caracterizado por o receptor se deixar dominar por aquilo que é representado na obra literária, de tal forma que se esquece de si próprio e do mundo. Ele deixa-se submergir no mundo da “bela aparência”, de modo que o mundo de sofrimento, com as suas representações e normas, deixa de existir. Entre o mundo ficcional e a realidade da praxis não deve existir qualquer relação. (40)

Se a literatura não for definida, tomando como referência o horizonte de motivação e o entendimento que o receptor tem de si próprio, ela, ou perde todo o carácter vinculativo ou se torna objecto de manipulação.

A discussão actual em torno da didáctica da literatura (41)

A - O método da redução explicativa [def. de Karl-Otto Apel]: quando a literatura é explicada com base na necessidade de distensão, alívio, distracção e compensação... (41) Neste sentido, explicar consiste em negar o objecto naquilo que ele tem de diferente.

B - Uma hipótese de escapar às consequências da aplicação do “método de redução explicativa”: será a literatura não ser analisada em função de factores que a condicionam, mas em função do “que, em última instância, interessa quer ao poeta quer ao leitor”. (43)

Proposta de reflexão:

“ Um ensino da literatura que espera do estudo da literatura efeitos que ultrapassem a entrega imediata às emoções, e a descontracção e alívio daí resultantes, afigura-se por conseguinte, não só condenado ao fracasso, mas ainda nocivo, porque veda aos alunos aquele acesso à literatura através do qual ela poderia assumir significado para eles e proporcionar-lhes prazer.” p. 39

Crítica do modelo platónico

II - Problemas fundamentais da didáctica la Literatura

1. A Relação entre educação literária e educação política na concepção de Hubert IVO

Defende que a “educação para a democracia” é o objectivo pedagógico que deve presidir a qualquer tipo de ensino, o que pressupõe a criação da capacidade para participar na vida literária. (45)

[1] - Restringindo a didáctica à transmissão dos conhecimentos (da ciência da literatura), que lugar sobra para o papel formativo do objecto e do processo de aprendizagem?

[2] - O conceito positivista de ciência conduz a uma noção de didáctica como uma tecnologia de ensino. (22)