Uma leitura imagológica

Em 21 de Novembro de 1996, obtive o grau de Mestre em Relações Interculturais. 

Do caminho percorrido resultou uma dissertação que, aqui, disponibilizo. Desde já, solicito a benevolência de algum leitor mais exigente, pois ainda não tive coragem de proceder às necessárias emendas... 

LITERATURA E ESTUDOS INTERCULTURAIS:

Uma leitura imagológica do romance YAKA de Pepetela

Dissertação de Mestrado em Relações Interculturais

Orientador: Professor Doutor Carlos  Reis

Universidade Aberta

Lisboa 1996

         PREÂMBULO

 

        

” A primeira tentação do estudante é fazer uma tese que fale de muitas coisas. (…) Estas teses são perigosíssimas. Trata-se de temas que fazem tremer os estudiosos bem mais maduros.” [1]

 

 

         A partir do momento em que me propus elaborar esta dissertação e apresentei o anteprojeto ao Senhor Professor Doutor Carlos Reis, a quem publicamente agradeço a disponibilidade e a paciência que manifestou durante todo este tempo, de imediato compreendi que também eu fizera uma opção que me faria correr enormes riscos.

         E o primeiro risco provinha de querer abordar o papel da literatura no âmbito dos estudos interculturais. De modo a obstar à dificuldade da tarefa, optei apenas pelo estudo de uma obra literária - o romance YAKA de Pepetela[2] - numa perspectiva de leitura que, efetivamente, me parecia propor uma metodologia capaz de inserir a literatura no âmbito dos estudos interculturais: a leitura imagológica.

         E este era o segundo grande risco: aplicar uma metodologia de leitura que três meses antes desconhecia e, que, efetivamente, ainda não vi aplicada de forma sistemática por ninguém em Portugal.

         A leitura imagológica do romance YAKA tornou-se, assim, no tema da minha dissertação, o que me obrigou a abordar um vasto conjunto de questões, cada qual a mais complexa: O que é a interculturalidade? Não será mais adequado situar esta reflexão na esfera da intraculturalidade?[3] Como é que a literatura acolhe a presença da identidade e  da alteridade que caracterizam o mundo? É a literatura apenas um reflexo do mundo? Pode a literatura agir sobre o mundo? Poderá a literatura ser um motor da angolanidade? Que angolanidade? Qual o lugar das línguas maternas na constituição da angolanidade? E na fundação da literatura angolana? Por que motivo e com que intenção escreveu Pepetela este romance em 1983? Que lugar é que YAKA ocupa no conjunto da obra deste autor? Poderá YAKA desempenhar o papel de mediador cultural? Qual o contributo da literatura para a constituição da lusofonia? Haverá algum elo entre o projecto da lusofonia e o luso-tropicalismo?

         E depois havia YAKA, nome fascinante de objecto e imagem, que revela uma história opaca de relações entre povos, durante cerca de 100 anos, que era precisa percorrer no plano da imaginação constituinte, no plano da ideologia e no plano do cenário.[4]

         Este último foi certamente o maior risco, na medida em que YAKA se apoderou por inteiro dos meus movimentos e me fez percorrer os gestos que discriminam e eliminam o homem, que dissidiam e tornam o homem criador.

         A partir de um certo momento, foi mesmo YAKA... foi a necessidade de interrogar YAKA[5] enquanto proposta de mundo - proposta de um modelo de interculturalidade? -, que determinou a reformulação do projecto inicial.

         É finalmente YAKA que me impede de ocultar os caminhos de imperfeição que atravessam esta dissertação, sobretudo, devido às circunstâncias em que foi redigida: nem YAKA sabe as privações que impôs à minha família e aos meus alunos, embora tenha estado sempre presente!

         Em síntese, o texto desta dissertação revela deliberadamente, em si, muitas das hesitações, fulgurâncias e decepções que o determinaram... e que inevitavelmente reflectem uma iniciação, mas, também, o risco de repetir e de copiar e não de inovar.

 

        

   



[1]  - Umberto Eco, Como se faz uma tese em Ciências Humanas, p. 31.

[2]  - A leitura desta dissertação revelará, todavia, que, por razões de clarificação da transfiguração sofrida pelo escritor, enquanto guerrilheiro e homem político, as referências ao conjunto da obra, e de modo mais exaustivo à REVOLTA DA CASA DOS ÍDOLOS, se tornaram obrigatórias.

[3]  - De acordo com a lição de Earl Miner, na medida em que se trata de abordar uma questão originada pela colonização e em que  a língua do colonizador foi adoptada como língua oficial. Cf. Études comparées interculturelles, Théorie Littéraire (direction de Marc Angenot et alii).

[4]  - Estes três planos só se tornaram conscientes e potencialmente estruturantes quando decidi pôr termo a esta dissertação.

[5]  - Esta interrogação não se dirige apenas a YAKA, dirige-se a Pepetela, e a todas as minorias que insistem em lutar pelas grandes ou pelas pequenas utopias, que tentam dar um sentido à esperança.


 

             INTRODUÇÃO

 

Those who do not remember the past are condemned to relive it.

SANTAYANA

 

         1. Um caminho…

 

“ A característica comum ao modelo e à ficção é a sua força heurística, quer dizer, a sua capacidade de abrir e de desenvolver novas dimensões da realidade, graças à suspensão da nossa fé numa descrição anterior.”[1]

 

         Embora  a investigação que suporta as relações interculturais tenda a centrar-se no estudo das situações de contacto resultantes de processos migratórios, com o objectivo de delinear políticas capazes de reduzir a emergência de conflitos sociais, parece oportuno repensar, numa outra perspectiva, a natureza dos agentes civilizadores que de forma livre, forçada ou organizada se deslocaram para África e, em particular, para Angola, entre 1880 e 1974.

         E essa revisitação é tanto mais importante quanto dela depende, não apenas o futuro da cooperação e o futuro da língua portuguesa - instrumental ou identitário -,  como a definição do conceito de angolanidade, e, mesmo a (re)definição da portugalidade, enquanto identidades em construção,  eliminando as tendências xenófobas e racistas que sempre acompanham os processos de colonização e de descolonização.

         Só a investigação e a instrução  poderão criar as condições necessárias ao diálogo intercultural. Se continuarmos a não assumir o passado,[2] nomeadamente com África, e a deixar na ignorância as gerações presentes e futuras, o fosso tornar-se-á intransponível. As novas gerações necessitam de conhecer essa parte oculta - mesmo que traumática -,  para que não se sintam desenraizadas, e possam construir o futuro, explorando todos os possíveis, independentemente dos excessos que marcaram o colonialismo.

         Apesar da opção europeia e da necessidade de a reforçar, a actual paleta demográfica portuguesa lembra-nos permanentemente que a nossa identidade continua profundamente ligada ao Sul - Mediterrâneo, Atlântico e Índico -, e por isso o conhecimento (des)apaixonado desse contacto[3] assume cada vez maior importância.

         O presente trabalho tem como objectivo contribuir, ainda que modestamente, para que a memória não se reduza a estereótipos, e, por isso, propõe-se interrogar o contributo da obra de arte - e, em particular, da obra literária africana -, no que se reporta, por um lado, à construção de identidades nacionais e por outro, como expressão e motor das relações interculturais. Tem, também, como objectivo “compreender como é que as literaturas “dependentes” e passando ao estado de literaturas “novas”, “emergentes”, (“descolonizadas”?) veiculam ainda representações da antiga cultura dominante, “clichés” do antigo colonizador.”[4]  E mais concretamente o papel de YAKA, romance de PEPETELA, na revisitação da colonização portuguesa em Angola, e na antevisão de uma angolanidade, em que a presença portuguesa, em lugar da exclusão, se sinta integrada.

         Esta escolha de YAKA não obstará a que, a espaços, seja feita referência a outras obras do mesmo autor, por um lado, porque isso  permitirá, de forma mais “tradicional”, explorar o tema estrangeiro - objecto da imagologia,[5] na perspectiva fundadora desta disciplina - e, por outro, porque só uma visão global da obra de Pepetela permitirá compreender o caminho percorrido pelo Autor.

         Embora esta opção pela ficção - no âmbito das relações interculturais -, possa parecer deslocada,[6] há que ter em consideração que:

 

“O mundo da ficção é um laboratório de formas no qual ensaiamos configurações possíveis de acção para experimentar a sua consistência e a sua plausibilidade. (...) O mundo do texto, porque é mundo, entra necessariamente em colisão com o mundo real, para o “refazer”, quer o confirme quer o recuse.”[7]

 

        

         É nesta certeza que, como afirma Jacques Chevrier,[8] as literaturas africanas serão objecto de problematização porque portadoras de visões do mundo decorrentes da colonização e da descolonização,[9] dois dos fenómenos mais importantes da História contemporânea. Terreno privilegiado para o estudo da relação entre a literatura e a sociedade ou, ainda, para o estudo do estatuto do escritor,[10] investido de uma “missão” simbólica face ao seu “povo” pela  ideologia da descolonização. Terreno propício aos comparatistas porque estas literaturas se afirmam na demanda e na (re)conquista de identidades, no espaço problemático de um imaginário situado na intersecção de uma pluralidade de raças e de culturas.

         É neste terreno que YAKA se situa... e que Pepetela ousou caminhar. 

 



[1]  - Paul Ricoeur, Do Texto à acção, Ensaios de Hermeneutica II, rés ed., Porto.

[2]  - A propósito da releitura de Zurara, Mário António F. Oliveira chama-nos precisamente a atenção para um dos aspectos de que me ocuparei de aqui em diante:” E isto, porque a sua obra nos surge como documento fundamental para o estudo do problema das primeiras imagens que os Europeus difundiram da África Negra e - esse é um dos pontos importantes do ensino mais recente das relações internacionais - porque a configuração dessas imagens foi condicionante das formas assumidas pelos contactos entre europeus e afro-negros, cujas vicissitudes tão largo espaço ocupam na história que desemboca no nosso presente cheio de problemas ...” in Reler África, Instituto de Antropologia, Univ. Coimbra, 1990.

[3]  - Apesar de devermos interrogar a natureza desse “contacto”, como o faz, aliás, Aimé Césaire: “La colonisation a-t-elle vraiment mis en contact? Ou, si l’on préfère de toutes les manières d’établir le contact, était-elle la meilleure?” in Discours sur le Colonialisme, pp. 9-10.

[4]  - Daniel-Henri Pageaux, De L’Imagerie Culturelle à L’Imaginaire, in Précis de Littérature Comparée, p. 157, (sous la direction de Pierre Brunel et Yvres Chevrel).

[5]  - Ainda sem que a palavra “imagologia” se tivesse imposto, M. F. Guyard (1951) - na sua obra Littérature Comparée, P.U.F., Que sais-je? - consagra-lhe um capítulo intitulado L’étranger tel qu’on le voit, onde sintetiza a nova perspectiva que se abre à Literatura Comparada: “Ne plus poursuivre d’illusoires influences générales, chercher à mieux comprendre comment s’élaborent et vivent dans les consciences individuelles les grands mythes nationaux”.p. 111.

[6] - Como refere  Jean-Michel Massa, no caso de África, e particularmente na de “expressão” portuguesa, “as literaturas nascentes são inicialmente didácticas, pedagógicas”, tendo como “missão principal definir o ser, a identidade dos homens ou das nações.” in Approche méthodologique du colloque, in Actes du Colloque International - Les Littératures Africaines de Langue Portugaise (Paris, 28 Nov. a 1 de Dez. de 1984), pp. 41-42.

[7]  - Paul Ricoeur, op. cit., p.29.

[8]  - Jacques Chevrier, Les littératures africaines dans le champ de la recherche comparatiste, p.217, in Précis de Littérature Comparée, Puf, Paris, 1989.

[9]  - Como reconhece Etiemble, o fenómeno da descolonização é um dos acontecimentos do séc. XX, por isso:  “il importera d’examiner dans quelle mesure les langues des colonisateurs ont réagi sur les langues des colonisés; réciproquement, dans quelle mesure les langues des colonisés ont réagi sur celle des oppresseurs. Toutes sortes de pays ayant subi longuement le statut colonial, l’étude du bilinguisme dans ses rapports avec la création des oeuvres littéraires devrait être à l’ordre du jour...”, in Comparaison n’est pas raison, p.89.

[10]  - “É preciso estudar, a interpretação feita por cada escritor do duplo problema da identidade individual e da identidade nacional”, como recomenda Jean-Michel Massa, op. cit., p. 43.