Camões

Achámos ter de todo já passado

Do semicapro Peixe a grande meta,

Estando entre ele e o círculo gelado 

Austral, parte do mundo mais secreta.

Eis, de meus companheiros rodeado,

Vejo um estranho vir, de pele preta,

Que tomaram por força, enquanto apanha

De mel os doces favos na montanha.

Torvado vem na vista, como aquele

Que não se vira nunca em tal extremo;

Nem ele entende a nós, nem nós a ele,

Selvagem mais que o bruto Polifemo.

Começo-lhe a mostrar da rica pele

De Colcos o gentil metal supremo,

A prata fina, a quente especiaria:

A nada disto o bruto se movia.

Camões, Os Lusíadas, Canto V, est. 27-28. 

II

Quando o Sol encoberto vai mostrando 

Ao mundo a luz quieta e duvidosa, 

Ao longo de uma praia deleitosa, 

Vou na minha inimiga imaginando. 

Aqui a vi os cabelos concertando, 

Ali co'a mão na face, tão fermosa, 

Aqui falando alegre, ali cuidosa, 

Agora estando queda, agora andando.

 

Aqui esteve sentada, ali me viu, 

Erguendo aqueles olhos tão isentos; 

Aqui movida um pouco, ali segura; 

Aqui se entristeceu, ali se riu. 

Enfim, nestes cansados pensamentos 

Passo esta vida vã, que sempre dura. 

III

CANÇÃO X

Vinde cá, meu tão certo secretário

dos queixumes que sempre ando fazendo,

papel, com que a pena desafogo!

As sem-razões digamos que, vivendo,

me faz o inexorável e contrário

Destino, surdo a lágrimas e a rogo.

Deitemos água pouca em muito fogo;

acenda-se com gritos um tormento

que a todas as memórias seja estranho.

Digamos mal tamanho

a Deus, ao mundo, à gente e, enfim, ao vento,

a quem já muitas vezes o contei,

tanto debalde como o conto agora;

mas, já que para errores fui nascido,

vir este a ser um deles não duvido.

Que, pois já de acertar estou tão fora,

não me culpem também, se nisto errei.

Sequer este refúgio só terei:

falar e errar sem culpa, livremente.

Triste quem de tão pouco está contente!

Já me desenganei que de queixar-me

não se alcança remédio; mas quem pena,

forçado lhe é gritar  se a dor é grande.

Gritarei; mas é débil e pequena

a voz para poder desabafar-me,

porque nem com gritar a dor se abrande.

Quem me dará sequer que fora mande

lágrimas e suspiros infinitos

iguais ao mal que dentro n'alma mora?

Mas quem pode algũ 'hora

medir o mal com lágrimas ou gritos?

Enfim, direi aquilo que me ensinam

a ira, a mágoa, e delas a lembrança,

que é outra dor por si, mais dura e firme.

Chegai, desesperados, para ouvir-me,

e fujam os que vivem de esperança

ou aqueles que nela se imaginam,

porque Amor e Fortuna determinam

de lhe darem poder para entenderem,

à medida dos males que tiverem.

Quando vim da materna sepultura

de novo ao mundo, logo me fizeram

Estrelas infelices obrigado;

com ter livre alvedrio, mo não deram,

que eu conheci mil vezes na ventura

o milhor, e pior segui, forçado.

E, para que o tormento conformado

me dessem com a idade, quando abrisse

inda minino, os olhos, brandamente,

manda que, diligente,

um Minino sem olhos me ferisse.

As lágrimas da infância já manavam

com üa saudade namorada:

o som dos gritos, que no berço dava.

já como de suspiros me soava.

Co a idade e Fado estava concertado;

porque quando, por caso, me embalavam,

se versos de Amor tristes me cantavam,

logo m adormecia a natureza,

que tão conforme estava co a tristeza.

Foi minha ama üa fera, que o destino

não quis que mulher fosse a que tivesse

tal nome para mim; nem a haveria.

Assi criado fui, porque bebesse

o veneno amoroso, de minino,

que na maior idade beberia,

e, por costume, não me mataria.

Logo então vi a imagem e semelhança

daquela humana fera tão fermosa,

suave e venenosa,

que me criou aos peitos da esperança;

de quem eu vi despois o original,

que de todos os grandes desatinos

faz a culpa soberba e soberana.

Parece-me que tinha forma humana,

mas cintilava espíritos divinos.

Um meneio e presença tinha tal

na vista dela; a sombra, co a viveza,

excedia o poder da Natureza.

Que género tão novo de tormento

teve Amor, que não fosse, não somente

provado em mim, mas todo executado?

Implacáveis durezas, que o fervente

desejo, que dá força ao pensamento,

tinham de seu propósito abalado,

e de se ver, corrido e injuriado;

aqui, sombras fantásticas, trazidas

de algũas temerárias esperanças;

as bem-aventuranças

nelas também pintadas e fingidas;

mas a dor do desprezo recebido,

que a fantasia me desatinava,

estes enganos punha em desconcerto;

aqui, o adevinhar e o ter por certo

que era verdade quanto adevinhava,

e logo o desdizer-se, de corrido;

dar às cousas que via outro sentido,

e para tudo, enfim, buscar razões;

mas eram muitas mais as sem-razões.

Não sei como sabia estar roubando

cos raios das entranhas, que fugiam

por ela, pelos olhos sutilmente!

Pouco a pouco invencíveis me saíam,

bem como do véu húmido exalando

está o sutil humor o Sol ardente.

Enfim, o gesto puro e transparente,

para quem fica baixo e sem valia

deste nome de belo e de fermoso;

o doce e piadoso

mover d'olhos, que as almas suspendia

foram as ervas mágicas, que o Céu

me fez beber; as quais, por longos anos,

noutro ser me tiveram transformado,

e tão contente de me ver trocado

que as mágoas enganava cos enganos;

e diante dos olhos punha o véu

que me encobrisse o mal, que assi creceu,

como quem com afagos se criava

daquele para quem crecido estava.

Pois quem pode pintar a vida ausente,

com um descontentar-me quanto via,

e aquele estar tão longe donde estava;

o falar, sem saber o que dezia;

andar, sem ver por onde, e juntamente

suspirar sem saber que suspirava?

Pois quando aquele mal m'atormentava

e aquela dor que das Tartáreas águas

saiu ao mundo, e mais que todas doe,

que tantas vezes soe

duras iras tornar em brandas mágoas;

agora, co furor da mágoa irado,

querer e não querer deixar d'amar,

e mudar noutra parte por vingança

o desejo privado de esperança,

que tão mal se podia já mudar;

agora, a saudade do passado

tormento. puro, doce e magoado,

fazia converter estes furores

em magoadas lágrimas de amores.

Que desculpas comigo que buscava

quando o suave Amor me não sofria

culpa na cousa amada, e tão amada!

Enfim, eram remédios que fingia

o medo do tormento que ensinava

a vida a sustentar-se, de enganada.

Nisto üa parte dela foi passada,

na qual se tive algum contentamento

breve, imperfeito, tímido, indecente,

não foi senão semente

de longo e amaríssimo tormento.

Este curso contino de tristeza,

estes passos tão vamente espalhados,

me foram apagando o ardente gosto

que tão de siso n'alma tinha posto,

daqueles pensamentos namorados

em que eu criei a tenra natureza,

que do longo costume da aspereza,

contra quem força humana não resiste,

se converteu no gosto de ser triste.

Destarte a vida noutra fui trocando;

eu não, mas o destino fero, irado,

que eu ainda assi por outra não trocara.

Fez-me deixar o pátrio ninho amado,

passando o longo mar, que ameaçando

tantas vezes me esteve a vida cara.

Agora, exprimentando a fúria rara

de Marte, que cos olhos quis que logo

visse e tocasse o acerbo fruto seu

(e neste escudo meu

a pintura verão  do infesto fogo);

agora, peregrino vago e errante,

vendo nações, linguages e costumes,

Céus vários, qualidades diferentes,

só por seguir com passos diligentes

a ti, Fortuna injusta, que consumes

as idades, levando-lhe diante

üa esperança em vista de diamante,

mas quando das mãos cai se conhece

que é frágil vidro aquilo que aparece.

A piadade humana me faltava,

a gente amiga já contrária via,

no primeiro perigo; e, no segundo,

terra em que pôr os pés me falecia,

ar para respirar se me negava,

e faltavam-me, enfim. o tempo e o mundo.

Que segredo tão árduo e tão profundo:

nascer para viver, e para a vida

faltar-me quanto o mundo tem para ela!

E não poder perdê-la,

estando tantas vezes já perdida!

Enfim, não houve transe de fortuna,

nem perigos, nem casos duvidosos,

injustiças daqueles, que o confuso

regimento do mundo, antigo abuso,

faz sobre os outros homens poderosos,

que eu não passasse, atado à grã coluna

do sofrimento meu, que a importuna

perseguição de males em pedaços

mil vezes fez, à força de seus braços.

Não conto tanto males como aquele

que, despois da tormenta procelosa,

os casos dela conta em porto ledo;

que inda agora a Fortuna flutuosa

a tamanhas misérias me compele,

que de dar um só passo tenho medo.

Já de mal que me venha não me arredo,

nem bem que me faleça já pretendo,

que para mim não val astúcia humana;

de força soberana,

da Providência, enfim, divina, pendo.

Isto que cuido e vejo, às vezes tomo

para consolação de tantos danos.

Mas a fraqueza humana, quando lança

os olhos no que corre, e não alcança

senão memória dos passados anos,

as águas que então bebo, e o pão que como,

lágrimas tristes são, que eu nunca domo

senão com fabricar na fantasia

fantásticas pinturas de alegria.

Que se possível fosse, que tornasse

o tempo para trás, como a memória,

pelos vestígios da primeira idade,

e de novo tecendo a antiga história

de meus doces errores, me levasse

pelas flores que vi da mocidade;

e a lembrança da longa saudade

então fosse maior contentamento,

vendo a conversação leda e suave,

onde üa e outra chave

esteve de meu novo pensamento,

os campos, as passadas, os sinais,

a fermosura, os olhos, a brandura,

a graça, a mansidão, a cortesia,

a sincera amizade, que desvia

toda a baixa tenção, terrena, impura,

como a qual outra algüa não vi mais...

Ah! vãs memórias, onde me levais

o fraco coração, que ainda não posso

domar este tão vão desejo vosso?

Nô mais, Canção, nô mais; qu'irei falando

sem o sentir, mil anos.  E se acaso

te culparem de larga e de pesada,

não pode ser (lhe dize) limitada

a água do mar em tão pequeno vaso.

Nem eu delicadezas vou cantando

co gosto do louvor, mas explicando

puras verdades já por mim passadas.

Oxalá foram fábulas sonhadas!

IV

Extracto de OS LUSÍADAS, Canto V ( est.37 ... )

Porém já cinco Sóis eram passados

Que dali nos partíramos, cortando

Os mares nunca de outrem navegados,

Prosperamente os ventos assoprando,

Quando hûa noite, estando descuidados

Na cortadora proa vigiando, 

Hûa nuvem, que os ares escurece,

Sobre nossas cabeças aparece.

Tão temerosa vinha e carregada,

Que pôs nos corações um grande medo;

Bramindo, o negro mar de longe brada,

Como se desse em vão nalgum rochedo.

" Ó Potestade ( disse ) sublimada:

Que ameaço divino ou que segredo

Este clima e este mar nos apresenta,

Que mor cousa parece que tormenta? "

Não acabava, quando hûa figura

Se nos mostra no ar, robusta e válida,

De disforme e grandíssima estatura;

O rosto carregado, a barba esquálida,

Os olhos encovados, e a postura

Medonha e má e a cor terrena e pálida;

Cheios de terra e crespos os cabelos,

A boca negra, os dentes amarelos.

Tão grande era de membros, que bem posso

Certificar-te que este era o segundo 

De Rodes estranhíssimo Colosso,

Que um dos setes milagres foi do mundo.

Cum tom de voz nos fala, horrendo e grosso,

Que pareceu sair do mar profundo.

Arrepiam-se as carnes e o cabelo,

A mi e a todos, só de ouvi-lo e vê-lo!

E disse: " Ó gente ousada, mais que quantas

No mundo cometeram grandes cousas,

Tu, que por guerras cruas, tais e tantas, 

E por trabalhos vãos nunca repousas,

Pois os vedados términos quebrantas

E navegar meus longos mares ousas,

Que eu tanto tempo há já que guardo e tenho,

Nunca arados de estranho ou do próprio lenho:

Pois vens ver os segredos escondidos

Da natureza e do húmido elemento,

A nenhum grande humano concedidos

De nobre ou de imortal merecimento,

Ouve os danos de mi que apercebidos

Estão a teu sobejo atrevimento,

Por todo o largo mar e pola terra

Que inda hás-de sojugar com dura guerra.

Sabe que quantas naus esta viagem

Que tu fazes, fizerem, de atrevidas,

Inimiga terão esta paragem,

Com ventos e tormentas desmedidas!

E da primeira armada, que passagem 

Fizer por estas ondas insofridas,

Eu farei de improviso tal castigo,

Que seja mor o dano que o perigo!

Os Lusíadas, adaptação em prosa de João de Barros

" Retorcendo a boca e os olhos, e lançando um espantoso brado, respondeu-me em voz pesada e amarga, como quem se aborrecera da pergunta feita:

- Eu sou aquele oculto e grande Cabo, a quem vós tendes chamado Tormentório, e que ninguém, a não ser vós, Portugueses, algum dia conheceu e descobriu.

Sou um rude filho da Terra, e meu nome é Adamastor.

Andei na luta contra o meu Deus, contra Júpiter, e depois, fiz-me capitão do mar e conquistei as ondas do Oceano. "

" Amores da alta esposa de Peleu

Me fizeram tomar tamanha empresa.

Todas as Deusas desprezei do Céu,

Só por amar das Águas a Princesa.

Um dia a vi, co as filhas de Nereu,

Sair nua na praia: e logo presa

A vontade senti de tal maneira,

Que inda não sinto cousa que mais queira. " 

" Determinei conquistá-la à força e mandei-lhe participar esta minha intenção.

Tétis fingiu aceitar o meu pedido de casamento... "

" Já néscio, já da guerra desistindo, 

Hûa noite, de Dóris prometida,

Me aparece de longe o gesto lindo

Da branca Thetis, única, despida,

Como doudo corri, de longe abrindo

Os braços pera aquela que era vida

Deste corpo, e começo os olhos belos

A lhe beijar, as faces e os cabelos.

Oh! Que não sei de nojo como o conte!

Que, crendo ter nos braços quem amava,

Abraçado me achei cum duro monte

De áspero mato e de espessura brava.

Estando cum penedo fronte a fronte,

Que eu polo rosto angélico apertava,

Não fiquei homem, não, mas mudo e quedo

E, junto dum penedo, outro penedo."

"E, para redobrar as minhas mágoas, Tétis anda-me cercando, transformada em onda."  

V

Labirinto do Autor, queixando-se do mundo.

 Corre sem vela e sem leme

o tempo desordenado,

dum grande vento levado;

o que perigo não teme

é de pouco exprimentado.

 

As rédeas trazem na mão

os que rédeas não tiveram.

Vendo quanto mal fizeram

a cobiça e ambição,

disfarçados se acolheram.

 

A nau que se vai perder

destrui mil esperanças;

vejo o mau que vem a ter;

vejo perigos correr

quem não cuida que há mudanças.

 

Os que nunca em sela andaram

na sela postos se vêem:

de fazer mal não deixaram;

de demónios hábito têm,

os que o justo profanaram.

 

Que poderá vir a ser

o mal nunca refreado?

Anda, por certo, enganado

aquele que quer valer,

levando o caminho errado.

 

É para os bons confusão

ver que os maus prevaleceram;

posto que se detiveram

com esta simulação,

sempre castigos tiveram.

 

Não porque governe o leme

em mar envolto e turbado,

quem tem seu rumo mudado,

se perece, grita e geme

em tempo desordenado.

 

Terem justo galardão

e dor dos que mereceram,

sempre castigos tiveram

sem nenhũa redenção,

posto que se detiveram.

 

Na tormenta, se vier,

desespere da bonança

quem manhas não sabe ter.

Sem que lhe valha gemer

verá falsar a balança.

 

Os que nunca trabalharam,

tendo o que lhe não convém,

se ao inocente enganaram,

perderão o eterno bem

se do mal não se apartaram.

VI

 Disparates seus na Índia.

 

Este mundo es el camino

adó ay ducientos vaus,

ou por onde bons e maus

todos somos del merino.

Mas os maus são de teor

que, dês que mudam a cor,

chamam logo a el-Rei compadre;

e enfim, dejadlos, mi madre,

que sempre têm um sabor

de «quem torto nace, tarde se endireita».

 

Deixai a um que se abone;

diz logo, de muito sengo:

- villas y castillos tengo,

todos a mi mandar sone. -

Então eu, que estou de molho,

com a lágrima no olho,

pelo virar do envés,

digo-lhe: tu insanus es,

e por isso não te olho,

pois «honra e proveito não cabem num saco».

 

Vereis uns, que no seu seio

cuidam que trazem Paris,

e querem com dous ceitis

fender anca pelo meio.

Vereis mancebinho d' arte

com espada em talabarte;

não há mais Italiano.

A este direis: – Meu mano,

vós sois galante que farte,

mas «pan y vino anda el camino, que no mozo / garrido».

 

Outros em cada teatro

por ofício lhe ouvireis

que se matarán con tres

y lo mismo harán con cuatro.

Prezam-se de dar repostas

com palavras bem compostas;

mas, se lhe meteis a mão,

na paz mostram coração,

na guerra mostram as costas:

porque «aqui torce a porca o rabo».

 

Outros vejo por aqui,

a que se acha mal o fundo,

que andam emendando o mundo

e não se emendam a si.

Estes respondem a quem

deles não entende bem

el dolor que está secreto;

mas porém quem for discreto

responder-lhe-á muito bem:

«Assi entrou no mundo, assi há-de sair».

 

Achareis rafeiro velho,

que se quer vender por galgo:

diz que o dinheiro é fidalgo,

que o sangue todo é vermelho.

S' ele mais alto o dissera,

este pelote pusera;

que o seu eco lhe responda

que su padre era de Ronda

y su madre de Antequera,

e «quer cobrir o céu com a joeira».

 

Fraldas largas, grave aspeito

para senador romano.

Óh! que grandíssimo engano!

Que Momo lhe abrisse o peito!

Consciência, que sobeja;

Siso, com que o mundo reja,

Mansidão, outro que si...

Mas que lobo está em ti,

metido em pele de oveja!

E «sabem-no poucos».

 

Guardai-vos d' uns meus senhores

que ainda compram e vendem;

uns, que é certo que descendem

da geração de pastores.

Mostram-se-vos bons amigos;

mas, se vos vêem em perigos,

escarram-vos nas paredes

que de fora dormiredes,

irmão, que é tempo de figos;

porque «de rabo de porco nunca bom virote».

 

Que dizeis duns, que as entranhas

lhe estão ardendo em cobiça?

E, se têm mando, a justiça

fazem de teias de aranhas,

com suas hipocrisias

que são de vossas espias?

Para os pequenos, uns Neros;

para os grandes, nada feros.

Pois tu, parvo, não sabias

que «lá vão leis, onde querem cruzados»?

 

Mas tornando a uns enfadonhos

cujas cousas são notórias:

uns, que contam mil histórias

mais desmanchadas que sonhos;

uns, mais parvos que zamboas,

que estudam palavras boas,

a que ignorância os atiça;

estes paguem por justiça,

que têm morto mil pessoas,

por «vida de quanto quero».

 

Adonde tienen las mentes

uns secretos trovadores,

que fazem cartas d' amores,

de que ficam mui contentes?

Não querem sair à praça;

trazem trova por negaça

e, se lha gabais que é boa,

diz que é de certa pessoa...

Ora que quereis que faça,

senão «ir-me por esse mundo?»

 

Ó tu, como me atarracas,

escudeiro de solia,

com bocais de fidalguia,

trazidos quase com vacas;

importuno a importunar,

morto por desenterrar

parentes que cheiram já!

Voto a tal, que me fará

um destes nunca falar

mais «com viva alma».

 

Uns que falam muito vi,

de que quisera fugir;

uns que, enfim, sem se sentir,

andam falando entre si;

porfiosos sem razão;

e dês que tomam a mão,

falam sem necessidade;

e se algũa hora é verdade,

deve ser na confissão;

porque «quem não mente...» Já me entendeis.

 

Ó vós, quem quer que me ledes,

que haveis de ser avisado:

que dizeis ao namorado

que caça vento com redes?

Jura por vida da dama,

fala consigo na cama,

passeia de noite e escarra;

por falsete na guitarra

põe sempre: Viva quem ama,

porque «calça a seu propósito».

 

Mas deixemos, se quiserdes,

por um pouco as travessuras,

por que, entre quatro maduras,

leveis também cinco verdes.

Deitemo-nos mais ao mar;

e, se algum se arrecear,

passe três ou quatro trovas.

E vós tomais cores novas?

Mas não é para espantar,

que «quem porcos há menos, em cada moita lhe roncam».

 

Ó vós, que sois secretários

das consciências reais,

que entre os homens estais

por senhores ordinários:

porque não pondes um freio

ao roubar, que vai sem meio,

debaixo de bom governo?

Pois um pedaço d'inferno

por pouco dinheiro alheio

se vende a «Mouro e a Judeu».

 

 

Porque a mente, afeiçoada

sempre à real dignidade,

vos faz julgar por bondade

a malícia desculpada.

Move a presença real

ũa aflição natural,

que logo inclina ao juiz

a seu favor; e não diz

um rifão muito geral

que «o abade donde canta, daí janta»?

 

E vós bailais a esse som?

Por isso, gentis pastores,

vos chama a vós mercadores

um que só foi pastor bom.

VII

Erros meus, má fortuna, amor ardente

Em minha perdição se conjuraram;

Os erros e a fortuna sobejaram,

Que pera mim bastava amor somente

                                              

Tudo passei; mas tenho tão presente

A grande dor das cousas que passaram,

Que as magoadas iras me ensinaram

A não querer já nunca ser contente.

                                              

Errei todo o discurso de meus anos;

Dei causa [a] que a Fortuna castigasse

As minhas mal fundadas esperanças.

 

De amor não vi senão breves enganos.

Oh! quem tanto pudesse, que fartasse

Este meu duro Génio de vinganças!

 VIII

 Voltas a mote alheio

 Perdigão perdeu a pena

Não há mal que lhe não venha.

 

Perdigão que o pensamento

Subiu a um alto lugar,

Perde a pena do voar,

Ganha a pena do tormento.

Não tem no ar nem no vento

Asas com que se sustenha:

Não há mal que lhe não venha.

 

Quis voar a ua alta torre,

Mas achou-se desasado;

E, vendo-se depenado,

De puro penado morre.

Se a queixumes se socorre,

Lança no fogo mais lenha:

Não há mal que lhe não venha.

 IX

Ao desconcerto do mundo

Os bons vi sempre passar

No mundo graves tormentos;

E pêra mais me espantar,

Os maus vi sempre nadar

Em mar de contentamentos.

Cuidando alcançar assim

O bem tão mal ordenado,

Fui mau, mas fui castigado.

Assim que, só para mim,

Anda o mundo concertado.