Teste 2

TEXTO

        - Com sua licença - disse Mestre João.

Dizendo, fechou por dentro ambas as portas, e sentou-se sobre uma arca.

- Ora, meu fidalgo - continuou ele, descendo as mangas arregaçadas da camisa, e apertando-as com dificuldade nos grossos pulsos, como quem sabe as etiquetas das mangas - há-de desculpar que eu viesse assim em mangas de camisa; mas não dei com a jaqueta...

- Está muito bem, senhor João - atalhou o académico.

- Pois, senhor eu devo um favor a seu pai, e um favor daquela casta. Uma vez armou-se aqui à minha porta uma desordem, a troco dum couce que um macho dum almocreve deu numa égua, que eu estava ferrando, e, em tão boa hora foi, que lhe partiu rente o jarrete por aqui, salvo tal lugar.

João da Cruz mostrou na sua perna o ponto por onde fora fracturada a da égua, e continuou: 

- Eu tinha ali à mão o martelo, e não me tive que não pregasse com ele na cabeça do macho, que foi logo pra terra. O recoveiro de Carção, que era chibante, deitou as unhas a um bacamarte, que trazia entre a carga, e desfechou comigo, sem mais tir-te nem gar-te. “Ó alma danada! disse-lhe eu - pois tu não vês que o teu macho me aleijou esta égua, que custou vinte peças a seu dono, e que eu tenho de pagar, e dás-me um tiro por eu te atordoar o macho!?”

- E o tiro acertou-lhe? - atalhou Simão.

- Acertou: mas saberá vossa senhoria que me não matou; deu-me aqui por este braço esquerdo com dois quartos. E vai eu, entro em casa, vou à cabeceira da cama, e trago uma clavina, e desfecho-lha na tábua do peito. O almocreve caiu como um tordo, e não tugiu nem mugiu. Prenderam-me e fui para Viseu e já lá estava há três anos, no ano que o paizinho de vossa senhoria veio corregedor. Andava muita gente a trabalhar contra mim, e todos me diziam que eu ia pernear na forca. (...)

(...) Neste intervalo, Mariana a filha do ferrador, entrou no sobrado, e disse com meiguice a Simão Botelho:

- Então sempre é certo ir?

- Vou; porque não hei-de ir?!

- Pois Nossa Senhora vá na sua companhia - tornou ela, saindo logo para esconder as lágrimas.

        Camilo de Castelo Branco, Amor de Perdição