As literaturas africanas no ensino secundário


I - O Programa de Português do Ensino Secundário  e as Literaturas Africanas

1. O projecto pedagógico ao visar a formação integral dos alunos põe a tónica, entre outros aspectos, no desenvolvimento de atitudes e na consciencialização de valores.

No plano psicopedagógico, os alunos encontram-se numa fase decisiva da construção da sua autonomia pessoal.

No plano social, os programas devem assegurar os meios de integração do aluno na vida activa.

2. Dos múltiplos objectivos, as Literaturas Africanas permitem:

- Estimular o desenvolvimento de atitudes de reflexão metódica, de abertura de espírito, de tolerância e de respeito pela diferença.

- Fomentar o desenvolvimento de atitudes e capacidades de relacionamento interpessoal, com base num espírito de confiança e de cooperação.

- Fomentar o desenvolvimento de atitudes e capacidades de análise e de concepção de soluções alternativas para os problemas da realidade envolvente.

- Incutir o respeito pela língua, património comum e factor de identidade nacional e coesão supranacional.

- Favorecer a utilização da língua portuguesa com correcção e fluência nos diversos modos de comunicação.

- Integrar as realizações linguísticas e as produções literárias na história e na cultura nacional e universal.

- Fomentar a aquisição de competências culturais consistentes e o apreço pela cultura e pelos valores estéticos, tanto nacionais como estrangeiros.

- Favorecer a compreensão dos mecanismos de organização e funcionamento dos diferentes grupos nos quais está inserido.

- Desenvolver as capacidades de compreensão e intervenção no relacionamento com outras culturas e espaços, designadamente os países de língua oficial portuguesa (...).  

3. Temática organizadora das leituras:

- O Homem e a sociedade: a intervenção social; a expressão comprometida.

- A reflexão sobre o Mundo: a atitude perante a história 

4. Autores e obras propostas:

- Baltazar Lopes, Chiquinho

- Luandino Vieira, Luuanda

- Luís Bernardo Honwana, Nós Matámos o Cão Tinhoso

- Mia Couto, Cada Homem É  Uma raça

- Pepetela, Lueji

5. Crítica do Programa:

Apesar da leitura de obras de autores de língua oficial portuguesa, dever contribuir para fomen-tar atitudes de tolerância, respeito pela diferença e de cooperação, para encarar a língua como factor de identidade e de coesão supranacional, para integrar as produções linguísticas e literárias na história e na cultura nacional e universal, para aprofundar as relações com estes  povos, verifica-se que:

-  apenas três países são contemplados;

- a poesia e o teatro são ignorados;

- na melhor das hipóteses, as literaturas africanas remontariam a 1947;

- estas literaturas são consideradas como estrangeiras, apesar da língua portuguesa ser factor de identidade e de  coesão supranacional.

5.1  Crítica das Orientações de Gestão do Programa - Dep. Ens. Sec. Agosto 1995:

Embora se insista em integrar as realizações linguísticas e as produções literárias na história e na cultura nacional, e em realizar uma reflexão linguística, a partir de situações de uso, em actividades de compreensão e de expressão , a leitura destas “orientações” permite-nos verificar que a referência explícita a autores e obras africanas ( e brasileiras ) - enraízadas na língua portuguesa e, consequentemente, instauradoras de novos discursos -  desapareceu em nome:

- de “uma melhor adequação às condicionantes reais do trabalho nas Escolas”

- do “Exame final de Âmbito Nacional”

- da “ garantia de equidade na construção do perfil terminal desejável para o aluno do Ensino Secundário.” 

II - A leitura de “autores africanos” 

Não é demais sublinhar a importância ética e científica de viver o contemporâneo. 

- Com a descolonização, a paleta demográfica alterou-se. Para além de Portugal se ter transfor-mado num país  de imigração africana, muitos dos jovens negros e mestiços que frequentam as escolas são portugueses de jure. 

- As nossas  fronteiras são, mais do que nunca, culturais: somos portugueses, ibéricos, europeus e lusófonos. Neste sentido, a leitura deve ser entendida como um modo de construir a identidade, que, pela diversidade que nos  constitui, tem que ser plural e intercultural para que todos possam sentir-se plenamente enraizados.

- A xenofobia e o racismo crescem sempre que surge a tentação de sublimar o passado, exacer-bar o patriotismo, e ignorar o diálogo intercultural.

- A língua portuguesa é um espaço vivo no qual uma extensa comunidade de falantes tem vindo a constituir as suas  identidades.

- Não há diálogo sem a aceitação da alteridade, sem identificar e interrogar a estereotipia que marca a maioria das obras literárias, independentemente da sua origem.

- O diálogo com os países de língua oficial portuguesa não ganha nada em branquear a conflitualidade que caracterizou as nossas relações ao longo dos séculos. 

Em síntese: seleccionar e ler os “autores africanos” é ler uma parte escondida de nós mesmos, é redescobrir na língua portuguesa não apenas aquilo que devemos à raiz greco-latina, mas a nossa contemporaneidade escrita, ainda, a Norte, mas cachoando no Sul. 

IV - A metodologia

1.  No corpus distribuído - leitura imagológica:


- Da palavra à imagem

- A imagem ou a relação hierarquizada

- A imagem como cenário

2. No que respeita à leitura de Lueji, alguns tópicos podem ser tomados em linha de conta:

- uma reflexão sobre a identidade angolana 

- uma proposta identitária para a formação dum estado-nação:

Se no passado remoto, pré-colonial, a solução passou pela ruptura com a tradição dos tubungos, culminando na aliança com o estrangeiro; no presente / futuro, a solução passa pela substituição do modelo estrangeiro por um projecto nacional criativo alimentado pela tradição.


V - Corpus

Gabriel Mariano, Galo Bedjo; Casamento; Finaçom

Francisco José Tenreiro, Aqui estou agora de coração em África

Amílcar Cabral, Regresso; ...Não, Poesia...

Onésimo da Silveira, extractos do romance A Saga das As-secas e  das Graças de Nossenhor

José Craveirinha, O meu preço; Grito Negro

Mia Couto, O embondeiro que sonhava pássaros

Pepetela, Lueji; Yaka

  MIA COUTO

Pássaros, todos os que no chão desconhecem morada.

Esse homem sempre vai ficar de sombra: nenhuma memória será bastante para lhe salvar do escuro. Em verdade, seu astro não era o Sol. Nem seu país não era a vida. Talvez, por razão disso, ele habitasse com cautela de um estranho. O vendedor de pássaros não tinha sequer o abrigo de um nome. Chamavam-lhe o passarinheiro.

Todas as manhãs ele passava nos bairros dos brancos carregando suas enormes gaiolas. Ele mesmo fabricava aquelas jaulas, de tão leve material que nem pareciam servir de prisão. Parecia eram gaiolas aladas, voláteis. Dentro delas, os pássaros esvoavam suas cores repentinas. À volta do vendedei-ro, era uma nuvem de pios, tantos que faziam mexer as janelas:

- Mãe, olha o homem dos passarinheiros!

E os meninos inundavam as ruas. As alegrias se intercambiavam: a gritaria das aves e o chilreio das crianças. O homem puxava de uma muska  e harmonicava sonâmbulas melodias. O mundo inteiro se fabulava.

Por trás das cortinas, os colonos reprovavam aqueles abusos. Ensinavam suspeitas aos seus pequenos filhos - aquele preto quem era? Alguém conhecia recomendações dele? Quem autorizara aqueles pés descalços a sujarem o bairro? Não, não e não. O negro que voltasse ao seu devido lugar. Contudo, os pássaros tão encantantes que são - insistiam os meninos. Os pais se agravavam: estava dito.

Mas aquela ordem pouco seria desempenhada. Mais que todos, um menino desobedecia, dedi-cando-se ao misterioso passarinheiro. Era Tiago, criança sonhadeira, sem outra habilidade senão perse-guir fantasias. Despertava cedo, colava-se aos vidros, aguardando a chegada do vendedor. O homem despontava e Tiago descia a escada, trinta degraus em cinco saltos. Descalço, atravessava o bairro, desaparecendo junto com a mancha da passarada. O sol findava e o menino sem regressar. Em casa de Tiago se poliam as lástimas:

- Descalço, como eles.

O pai ambicionava o castigo. Só a brandura materna aliviava a chegada do miúdo, em plena noite. O pai reclamava nem que fosse esboço de explicação.

- Foste a casa dele? Mas esse vagabundo tem casa?

A residência dele era um embondeiro, o vago buraco do tronco. Tiago contava: aquela era uma árvore muito sagrada, Deus a plantara de cabeça para baixo.

- Vejam só o que o preto anda a meter na cabeça desta criança.

O pai se dirigia à esposa, encomendando-lhe as culpas. O menino prosseguia: é verdade, mãe. Aquela árvore é capaz de grandes tristezas. Os mais velhos dizem que o embondeiro, em desespero, se suicida  por via das chamas. Sem ninguém pôr fogo. É verdade, mãe.

- Disparate - suavizava a senhora.

E retirava o filho do alcance paterno. O homem então se decidia a sair, juntar as suas raivas com os demais colonos. No clube, eles todos se aclamavam: era preciso acabar com as visitas do passari-nheiro. Que a medida não podia ser de morte matada, nem coisa que ofendesse a vista das senhoras e seus filhos. O remédio, enfim, se haveria de pensar.

No dia seguinte, o vendedor repetiu a sua alegre invasão. Afinal, os colonos ainda que hesita-ram: aquele negro trazia aves de belezas jamais vistas. Ninguém podia resistir às suas cores, seus chil-reios. Nem aquilo parecia coisa deste verídico mundo. O vendedor  se anonimava, em humilde desapa-recimento de si:

- Esses são pássaros muito excelentes, desses com as asas todas de fora.

Os portugueses se interrogavam: onde desencantava ele tão maravilhosas criaturas? onde, se eles tinham já desbravado os mais extensos matos.

O vendedor se segredava, respondendo um riso. Os senhores receavam as suas próprias suspei-ções - teria aquele negro direito a ingressar  num mundo onde eles careciam de acesso? Mas logo se aprontavam a diminuir-lhe os méritos: o tipo dormia nas árvores, em plena passarada. Eles se igualam aos bichos silvestres, se concluíam.

Fosse por desdenho dos grandes ou por glória dos pequenos, a verdade é que, aos pouco-poucos, o passarinheiro foi virando assunto no bairro do cimento. Sua presença foi enchendo durações, insuspeitos vazios. Conforme dele se comprava, as casas mais se repletavam de doces cantos. Aquela musica se estranhava nos moradores, mostrando que aquele bairro não pertencia àquela terra. Afinal, os pássaros desautenticavam os residentes, estrangeirando-lhes? Ou o culpado seria aquele negro, sacana, que se arrogava  a existir, ignorante dos seus deveres de raça? O comerciante devia saber que os seus passos descalços não cabiam naquelas ruas. Os brancos se inquietavam com aquela desobediência, acusando o tempo. Sentiam ciúmes do passado, a arrumação das criaturas pela sua aparência. O vendedor, assim sobremisso, adiantava o mundo de outras compreensões. Até os meninos, por graça de sua sedução, se esqueciam do comportamento. Eles se tornavam mais filhos da rua que da casa. O passarinheiro se adentrara mesmo nos devaneios deles:

- Faz conta eu sou vosso tio.

E todos se familiavam, parentes aparentes. As crianças emigravam de sua condição, desdobrando-se em outras felizes existências. E todos se familiavam, parentes aparentes.

- Tio? Já se viu chamar de tio a um preto?

Os pais lhes queriam fechar o sonho, sua pequena e infinita alma. Surgiu o mando: a rua vos está proibida, vocês não saem mais. Correram-se as cortinas, as casas fecharam suas pálpebras.

O embondeiro que sonhava pássaros, in Cada homem é uma raça, 1990 (extracto adaptado com fins didác-ticos)


PEPETELA

Vilonda contempla a onganda, agora grande,  composta pela sua cubata, as cubatas das duas mulheres, a cubata da irmã abandonada pelo marido, o curral central para os vitelos e, do outro lado, o grande curral. Os cornos de todas as reses abatidas nas cerimónias estão pendurados em forquilhas ao lado do curral dos vitelos e estão muito brancos e bonitos. Já abateu muitos bois, isso mostra a sua rique-za e o respeito pelos costumes. À frente da sua cubata está o elao, a pedra dos sacrifícios, ao lado da qual fica a sua fogueira, a do fogo sagrado. À frente de cada uma das cubatas das mulheres há uma fogueira que serve de cozinha. Nessas fogueiras à noite conversam, cantam, e Vilonda conta as estórias do povo aos mais jovens, as estórias das origens dos clãs, a estória dos oma-kisi, os monstros, e põe provérbios e adivinhas. Ngonga e a família vêm todas as noites se juntar a eles e assim ficam melhor. Agora o milho está quase a produzir e poderão fazer mais cerveja. Ultimamente têm estado a poupar o milho, pois terão de festejar o casamento de Tyonda e podia se dar o caso de animais ou pássaros comerem boa parte do milho. Mas as colheitas se adivinhavam boas e este ano as mulheres trabalharam muito e semearam mais que o habitual. Com uma mulher mundombe aprenderam que se pusessem na lavra, antes da sementeira, as bostas dos bois, as plantas cresceriam mais. E é verdade. Vilonda nunca viu milho daquele tamanho e com tão grandes maçarocas. Não sabe nada de agricultura, isso é costume muito recente, e se espanta com o mistério. Também não deve ser todas as bostas que são boas. Devem ser as bostas dos bois sagrados, sobretudo da namulilo, cujo leite só as velhas  e as meninas muito novinhas podem beber. Mas como as bostas dos bois sagrados ficam misturadas com as dos outros, talvez passem a magia para as outras bostas também. Terá de perguntar isso ao kimbanda que regularmente os vem visitar. Saberá? O kimbanda sabe tratar  doenças de pessoas, sabe descobrir os espíritos malfazejos e quais os sacrifícios a fazer, mas também não sabe nada de agricultura. Onde aprendeu ele? Bem, se é kimbanda é porque é sábio, não custa nada perguntar.  

Yaka, O Coração, 1983