Teoria do texto

                                                                    A teoria do texto[1]

 

            Uma maneira radical de pôr em questão o primado da subjectividade é tomar como eixo hermenêutico a teoria do texto. Na medida em que o sentido de um texto se tornou autónomo em relação à intenção subjectiva do seu autor, a questão essencial não é encontrar, subjacente ao texto, a intenção perdida, mas expor,  face ao texto, o "mundo" que ele abre e descobre.

           

            Por outras palavras, a tarefa hermenêutica consiste em discernir a "coisa" do texto (Gadamer) e não a psicologia do autor. A coisa do texto é para a sua estrutura o que, na proposição, a referência é para o sentido (Frege). Do mesmo modo que, na proposição, nós não nos contentamos com o sentido que é o seu objecto ideal, mas nos interrogamos, além disso, sobre a sua referência, ou seja, a sua pretensão e  o seu valor de verdade, também no texto, nós não podemos ficar pela estrutura imanente, pelo sistema interno de dependências provenientes do entrecruzamento dos "códigos" que o texto põe em acção; queremos, além disso, explicitar o mundo que o texto projecta.

             Não  ignoro, ao dizer isso, que uma importante categoria de textos a que nós chamamos literatura - a saber, a ficção narrativa, o drama, a poesia -, parece abolir toda a referência à realidade quotidiana, a tal ponto que a própria linguagem parece prometida à dignidade suprema como para se glorificar à custa da função referencial do discurso vulgar. Mas é precisamente na medida em que o discurso da ficção suspende esta função referencial de primeiro grau que ele liberta uma referência de segundo grau, em que o mundo é manifestado já não como conjunto de objectos manipuláveis, mas como horizonte da nossa vida e do nosso projecto, numa palavra, como Lebenswelt, como ser-no-mundo. É esta dimensão referencial que só atinge o seu pleno desenvolvimento com as obras de ficção e de poesia, que põe o problema hermenêutico fundamental. A questão já não é definir a hermenêutica como uma investigação das intenções psicológicas escondidas no texto, mas como a explicitação do ser-no-mundo revelado pelo texto.

             O que deve interpretar-se num texto é uma proposta de mundo, o projecto de um mundo que eu poderia habitar e em que poderia projectar os meus possíveis mais próprios. Retomando o princípio de distanciação[2] atrás evocado, poder-se-ia dizer que o texto de ficção ou poético não se limita a pôr o sentido do texto à distância da intenção do autor, mas põe, além disso, a referência do texto à distância do mundo articulado pela linguagem quotidiana. A realidade é, assim, metamorfoseada por meio daquilo a que chamarei as variações imaginativas que a literatura opera sobre o real. ( p.61,62.)

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

[1] - Paul Ricoeur, Phénoménologie et herméneutique (1975) in Do Texto à Acção (1986, trad. 1989), RÉS-editora, Porto.

 

[2] - Este conceito é o correctivo dialéctico do de pertença, no sentido de que a nossa maneira de pertencer à tradição histórica é pertencer-lhe sob a condição de uma relação de distância que oscila entre o afastamento e a proximidade. Interpretar é tornar próximo o longínquo ( temporal, geográfico, cultural, espiritual). (...) O texto é, por excelência, o suporte de uma comunicação na e pela distância. p.61