José Saramago

I

(…) O vedor e alguns seus auxiliares foram dormir debaixo de telha, os mais na forma do costume, enrolados nas mantas, extenuados da grande descida ao centro da terra, espantados de ainda estarem vivos, uns que outros resistindo ao sono, com medo de ser isso a morte. Os mais chegados de amizade a Francisco Marques foram velá-lo, Baltasar, José Pequeno, Manuel Milho, uns tantos daqueles, Brás, Firmino, Isidro, Onofre, sebastião, Tadeu, e outro de quem não se chegou a falar, Damião. Entravam, olhavam o morto, como é possível morrer homem de tão violenta morte e tão sereno estar, mais do que se dormisse, sem pesadelos nem apoquentações, depois murmuravam uma oração, aquela mulher ali é que é a viúva, não sabemos que nome tem, nem adiantaria nada à história ir lá perguntar-lhe, se alguma coisa adiantou escrever Damião, só por escrever. Amanhã, antes de nascer o sol, recomeçará a pedra a sua viagem, em Cheleiros ficou um homem para enterrar, fica também a carne de dois bois para comer.

Não se nota a falta deles. O carro vai ladeira acima, tão devagar como tem vindo, se Deus houvesse piedade dos homens teria feito um mundo rasinho como a palma da mão, levariam as pedras menos tempo a chegar. Esta já vai no seu quinto dia, agora por melhor caminho, quando estiver vencida a encosta, mas sempre em desassossego de espírito, que do corpo não vale a pena falar, doem todos os músculos dos homens, mas quem se queixa, se para isto mesmo lhes foram dados. A boiada não argumenta nem se lastima, apenas se nega, faz que puxa e não puxa, o remédio é deixá-los descansar um migalho, chegar-lhes ao focinho um manípulo de palha, daí a pouco estão como se folgassem desde ontem, ondulam as garupas alceiras pelo caminho fora, é um gosto vê-los. Enquanto não aparece outra descida, outra subida. Então agrupam-se as hostes, repartem-se os esforços, tantos para aqui, tantos para além, puxem, lá, Êeeeeeiii-ô, berra a voz, taratatá-tá, sopra a corneta, verdadeiramente isto é um campo de batalha, nem lhe faltam os seus mortos e os seus feridos, não sendo todos da mesma qualidade, como diríamos, quatro cabeças, que é boa maneira de contar.

José Saramago, Memorial do Convento, Editorial Caminho, Lisboa, 1982