O existencialismo e a literatura

Vergílio Ferreira - Espaço do invisível 2, Existencialismo e literatura, Instituto Superior Técnico, 1964.

              "Acresce ainda que o Existencialismo, no fim de contas, se não explica em variadíssimos dos seus aspectos (por exemplo aqueles que mais acentua em Jaspers), pela razão por que se não explica a alegria ou o amor.

          A angústia = consciência infeliz (tema do jovem Hegel), que é genericamente a consciência das contradições. Porém para Hegel, esta "consciência infeliz" não é senão um estádio passageiro para ir mais além.         A angústia, a inquietação (e já vos anoto que esta inquietação, este constante progredir é um tema existencial), a angústia, a consciência infeliz pode ser encarada como ponto de passagem, e também pode ser encarada como o que em cada momento da progressão nos atinge e nos dói.         Se a nossa marcha penosa é feita de contradições, se cada época tem a sua verdade, que é absoluta para essa época, mas relativa para uma verdade final que não há, segue-se que uma das reacções possíveis e – reais – ao seu sistema foi não a do optimismo mas justamente a do pessimismo.         Kiekegaard faz esta afirmação fundamental: " Um eu não cabe num sistema." Porque não cabe mesmo! Um eu é irredutível, e vede bem como a consciência da própria língua o reconhece, pois que o plural de "eu" não é "eus" como o de "pedra" é "pedras": o plural do "eu" é "nós". Quer dizer: nenhum "eu" pode estar a sentir-se como sendo um "tu". O que se está passando em cada um de nós é não só dificilmente cognoscível pelos outros, como impermutável no que se refere ao sentir.

          Um eu não cabe num sistema significa que, paralelamente, há um mundo individual que escapa a uma sistematização.

         Há pois em nós dois mundos: um que é o das verdades genéricas, das verdades abstractas, das puras ideias – e este, realmente, pode comunicar-se e fixar-se em sistema; outro, que é o das verdades vividas, da intimidade de nós, do inefável – e esse é estritamente pessoal. Eis porque Kierkegaard faz essa afirmação escandalosa de que a verdade é subjectiva.

           A "aparição" da evidência

          A angústia não é medo. O medo concretiza-se: tenho medo disto ou daquilo. A angústia, porém, não pode concretizar-se. Que isto se fixe bem claramente, para que a angústia perante a morte não se identifique com o medo. Medo tem-no o animal. Não angústia. E entre os homens só ignorará a angústia quem for inocente ou imbecil. (...) A angústia é pois um sentir indefinido, mas bem característico que se apodera de nós nas circunstâncias mais diversas.        Para Kiekegaard, Heidegger, Sartre, Jaspers, Gabriel Marcel e V. Ferreira, o centro de interesses é ainda e sempre próprio homem, o indivíduo concreto, começo e fim dos seus problemas, ainda que admitamos, como temos de admitir, que por ele passam os problemas do mundo, dos outros homens.         O existencialismo repele a ideia de um Sistema.         Definindo-se pelo ser-com, pela comunicação ou pela sua impossibilidade, afirmando-se pela cooperação ou pelo combate, determinando esse Outro nos homens que nos rodeiam ou no Outro Absoluto da Transcendência, de qualquer modo o Existencialismo fixa e analisa obstinadamente o problema das relações de cada eu com o eu de outrém como nunca se fizera.

                A pergunta básica - o ponto de partida / o ponto de chegada - Quem sou? / Como sou? - O que está em causa é a estrutura radical e original do ser que somos.

                Assim, pois, uma complexa e vária problemática se nos abre em consequência da análise a que submetemos a estrutura do homem:

§  Que é um "eu"?

§  Qual a constituição da consciência?

§  Que é a liberdade, se ela existe?

§  Que é o tempo?

§  Que é o espaço?

§  Tem o homem alguns valores que o orientem?

§  Em que se fundam esses valores?

§  Que é o seu corpo?

§  Será um puro instrumento ou comparticipa do que nós entendemos como a nossa pessoa?

§  Que é a verdade?

                Sim ou não o homem está irredutivelmente fechado nos seus limites?

Sim ou não pode integrar-se numa dimensão transcendente?

Deus está vivo ou está morto?

 Na literatura existencial praticamente não há cadáveres, mesmo quando há mortos (...), pondo-se quase sempre o problema da morte, precisamente a propósito dos vivos. Problema - morte / vida A meditação da morte não é pois um fim, mas um meio. Um outro problema-tipo do Existencialismo é o da liberdade.

A liberdade para Sartre entra na estrutura da consciência.

É a partir do próprio "eu" que se gera todo o questionar. Um Sartre projectará este "eu" para fora, para a rua, para junto dos homens, desenvolvendo um pouco unilateralmente um princípio de Husserl - a "intencionalidade".

O outro é o tema de Huis-clos.

 Definição de Existencialismo por Vergílio Ferreira Corrente de pensamento que, regressada ao existente humano, a ele privilegia e dele parte para todo o ulterior questionar. ou O existencialismo é uma corrente de pensamento que reabsorve no próprio "eu" de cada um toda e qualquer problemática e a revê através do seu raciocinar pessoal ou preferentemente da sua profunda vivência. Aí se implica portanto que nenhum questionar se estabelece em abstracto, de fora para dentro, mas antes se retoma a partir da nossa dimensão original, ou seja, verdadeiramente, de dentro para fora. Sobre o significado útil do existencialismo (V.F.) Num tempo em que tudo, desde a Técnica à Política, tende a absorver o homem, se não mesmo a suprimi-lo - é esse um dos significados do "novo romance" -, num tempo em que uma vida nada conta, e em que é quase irresistível perdermo-nos de nós entre as pedras e o ruído, o Existencialismo ergue o seu protesto, afirmando que o homem é pessoalmente, individualmente, um valor; que a sua liberdade (...) é uma riqueza... p. 48 Sobre a problemática existencialista Vai do problema da morte ao da angústia, ao da náusea e do absurdo; desde o problema do "outro" ao problema da liberdade; do problema da transcendência divina ao da pura transcendência. Sobre o existencialismo nacional (V.F.) Eu jamais me disse existencialista, embora muito deva à temática existencial e pelo Existencialismo tenha manifestado publicamente o maior interesse...

Refere como exemplos: Herberto Helder (contos); Almeida Faria; Fernanda Botelho; Fernando Namora ( romance Domingo à Tarde); Bessa-Luís ( o problema da comunicabilidade); Maria Judite de Carvalho e Urbano Tavares Rodrigues ( o problema da comunhão ou da solidão humanas); Rogério de Freitas...Alfredo Margarido ( introdutor do novo romance); Artur Portela...

 Sobre Vergílio Ferreira §  Eduardo Lourenço, Vergílio Ferreira e a geração da utopia - texto publicado a 24 de Maio e 26 de Julho de 1960, no Comércio do Porto E.L. problematiza o conceito de geração; interroga-se sobre a sua validação; a debilidade artística da geração neo-realista - a geração da utopia [1]; situa a obra de V.F. como a "única, em que através de mil ambiguidades e dificuldades, se respira a atmosfera de um combate espiritual que nos outros (neo-realistas) aparece ganho de uma vez para sempre. §  Eduardo Lourenço, O itinerário de Vergílio Ferreira - A propósito de Apelo da Noite[2]  

[1] - Eduardo Lourenço - O Canto do Signo, Existência e Literatura (1957 - 1993), p. 85, editorial Presença, 1994

[2]  - Publicado na revista O Tempo e o Modo, nº 11, Dezembro de 1963