Aquilino Ribeiro

A MORTE

O moleiro compreendeu apenas que recebera um não e partiu dali descoroçoado. Já ia de face para o moinho, quando num atalho pedregoso se viu alcançar por uma mulher que parecia correr tão veloz como o vento.

Vinha embrulhada dos pés à cabeça numa serguilha ruça, roçagante, e trazia às costas uma gadanha do feno. Bem lhe espreitou o moleiro para dentro do bioco, porém mais não lobrigou que a dentuça alva   arreganhada, destas que parecem estar sempre apertadas para morder. «Benza-te o Demo», pensou ele em seu foro, «que colmilhos não te faltam para rilhar a broa. Se vais de ventas a um penedo, racha-lo mais certo que se fosse a guilho e a marreta.»

- Deus a salve, mulherzinha - disse-lhe afinal de bem aspeito. - Vai com mais pressa que uma galga a correr.

- Deus te salve. Vou, vou com pressa; levo os minutos contados.

- Se segue nesta endireitura, vamos ambos de compa¬nhia. Também não sou peco a andar...

- Dá-me às gâmbias!

Puseram-se ambos ombro a ombro e o moleiro perguntou:

- Para que é a gadanha? Bom traste me parece, mas não é a quadra...

- Enganas-te, para mim nunca acaba o tempo das ceifas. Está sempre grada a minha segada.

- Não me custa a crer - respondeu ele- - Há terras, gordas como enxúndia de galinha, onde tudo pega que é um louvar; outras nem regadas a sangue dão pão. E daqui perto, santinha?

- Sou daqui e de toda a parte. Sou donde estou¬

O moleiro riu da chalaça e, ao desenfado, pôs-se a contar-lhe a cisma absurda que o trabalhava.

- Pois é verdade - acabou desabafando - fartei-me de errar por esses mundos além à cata de compadre que me safasse da cepa torta. Palpei muitas criaturas; talhada para a necessidade e à feição não descobri nenhuma. Saiu-me o Demo ao terreiro com pés de lã; cruzes, canhoto, a minha alma não se vende! Deus também esteve a armar-me com mossinhas de bem-querer; mas, pelo tomo que lhe conheço, nem é justo nem constante. As duas por três fazia de mim outro Job, ou despejava cântaros de enxofre inflamado sobre o moinho do Gorgulhão. Irra! A falar sincero, a minha empresa era vã; igual para todos, seja ele rei ou vilão, dorida com os fracos, de uma só peça, debaixo da rosa do sol que nos alumia, só a Morte. Que é ruim, que é negra, descaroável, traiçoeira?! É equitativa e basta. Essa sim, essa ainda eu levava à pia benta a tocar-me o meu menino; caçasse-a eu! A esta altura, o anjinho é nado ou está a nascer. Aldemenos, boa mulher, já que tem morada por este correr, venha-me ser a madrinha. No dia do baptizado sempre se há-de ajeitar uma tigela de papas com um cibo de unto para o dejejum.

Descobriu ela pela primeira vez a cara cheia de gelhas e olheirenta, e à luz dum sorriso branco, que metia medo, respondeu:

- Falas a sério ou de chacota?

O moleiro ficou perplexo, repeso do que proferira; mas, acudindo-lhe que era pecado brincar com coisas tão santas e que, - demais, à face do Senhor, mesmo o verme da lama é testemunha capaz, persistiu em tomá-la para comadre, pelo que renovou as rogativas e não menos queixumes da sua pouca sorte.

- Está dito - declarou a velha - vou ser a madrinha. Não levo enxoval, mas descansa que nunca folar de maior valia deu princesa a afilhado.

- Folar de valia!... ainda parece mais lazarenta do que eu...

- Sou rica.. - muito rica. Todas as riquezas me vêm parar às mãos.

- Onde as tem?

- A ordem em toda a parte. Nos cofres dos banqueiros e nos tesouros dos Estados, ao pescoço das fidalgas e no bolso da romeirinha. É eu chegar e largam-nas logo.

- Muita palha e pouco grão. E que folar quer dar ao afilhadinho?

- Ao tempo se verá. Vai com Nossa Senhora; no dia do baptizado, pontualmente, lá apareço na igreja.

- Não sabe onde é, nem quando é?!

- Se sei! Agora mesmo ia para o teu moinho.

- Fazer o quê, se não queda mal o perguntar?

- Ter com tua mulher que está de parto    e olhando para ele, que a encarava perplexo, com sorriso que se esforçava por ser benigno, acrescentou: - Não sou parteira, sou a Morre.

- A Morte!!! - gemeu ele, e deitou-se de joelhos a soluçar.

Ela procurou aquietá-lo, mas o moleiro não prestava sentido às vozes de acalmação.

- Dama da alta bizarria - balbuciava ele - alteza imperial, dona de nobre dom, não vá ao meu moinho! Por quem é, pelos bons que arrancou a seu bem-fazer, pelos maus de que mondou a grande seara humana, perdoe a minha mulher! Perdoe à minha rica mulherzinha!

- Tomo outro destino, sossega! - gritou ela, já impa¬ciente, que não havia maneira de se fazer ouvir. - É este o primeiro beneficio que te faz tua comadre. Outros se lhe hão-de seguir, que o alto conceito em que me tinhas, a ponto de me reservares honras que negaste a Deus, me deu certo fraco por ti.

Tendo serenado, o moleiro incensou-a com novos louvores e bênçãos:

- Bendita sejais, ó augusta senhora, mãe escrupulosa de todos, justiceira incorruptível do rico e do pobre, do leigo e do frade, do ladrão e do santo! Bendita sejais, ó minha grande e honrada comadre!

Lisonjeada, tornou-lhe a Princesa das mãos frias:

- Vai em paz. Lá estarei à hora fixa, e o teu menino, que há-de crescer debaixo da minha tutela, será ao seu tempo um graúdo. Não duvides, que nunca falho. Vai em paz. Eu meto pela esquerda a visitar um comendador que abusa do lombo de vinha-d'alhos e do amor. Hás-de encontrar em casa um forte rapagão; sobre o teu moinho abriram-se as cataratas do céu; amanhã todas as mós começarão a moer, todos os rodízios a fungar, e a farinha das maquias nunca mais se apagará no traço da tua porta. Adeus!

E lá se foi a velha sultana de alvos dentes em seu vertiginoso andar. O moleiro esfregou os olhos e, bem acordado, já a não viu rir.

AQUILINO RIBEIRO, A Grande Dona, in Estrada de Santiago

II

O JOGO DO PAU

À minha banda, o Faustino celebrava as artes do meliante:

- Isto é um varredor de feiras temível. Está para nascer o primeiro que lhe faça sombra.

De facto, pelo corpanzil, pela bazófia, parecia faia de respeito. Era também um dos dançarinos e, logo de princípio, lhe tomei azar porque, quando nos rodopios da chula à Rita calhou a dar a volta com ele, usou dum espalhafato, mostrou tão bacoramente a dor de cotovelo de a ver bailar comigo, que até a moça se escandalizou, quanto mais eu. Se fosse na minha terra eu lhe ensinaria a ser mais composto e bem-educado com quem lhe não procurava detrimen¬to! Mas ali acalmei-me e deixei correr.

- Então ninguém se sente com alma de ganhar uma moeda? Olhem bem: é ouro de lei! - e no cimo do pau passeava, ao que era de plano e bem apara¬do, debaixo dos olhos dos parceiros, uma peça de D. João V, dessas que já eram ralas ao tempo, e hoje só se usam ao dependurão das correntes, por ga¬lhardia.

Todos, homens e rapazes, chalaceavam com ele, louvando-o, não pondo acanhamento em se declara¬rem seus subalternos na destreza e no poder.

- Já que ninguém se tenta, torna para o saco! - e, puxando a moeda, fingiu que dava com os olhos em mim: - Com você, seu homem, não se fala em tal negócio... Bailão, maricão!

Estive um momento sem lhe poder tornar res¬posta, sufocado razões:

- Se não fosse nesta terra e na sociedade onde me encontro, ah, você havia de engolir a bosteira! Aqui  só lhe posso dizer que estou pronto a medir o pau consigo. Aposta uma moeda; eu, se ganhar, não lha quero; manda-me proceder assim o respeito que devo a este amigo. Mas se perder, perdida tenho a moeda, que é dinheiro - juro-o pela salvação da mi¬nha alma - que nunca mais nos meus haveres conta.

- Pois seja lá como quiser. Tem um pau?

- Tenho pau.

Fui buscar o lódão e pude dizer à Rita, que me seguira e estava branca como a cera:

- Ó menina, empresta-me uma faca? Uma na¬valhinha que seja...? O principal é que corte um pouco mais que queijo fresco e sombra das paredes.

Fitou-me ela muito nos olhos, mas eu sosseguei-a rebatendo-lhe com firmeza de voz o pensamento errado:

- Esteja descansada, que não é para mal. Eu não sou homem de barulhos. Vai ver!

Deu-me um canivete, meti-o no canhão da véstia, e fui para o homem:

- Cá estamos!

O pau dele era um nadinha mais alto que o meu, o meu um pouco mais grosso que o dele, segunda desvantagem nisto de florear gentilezas. Mas tão-pouco aceitei que se tirassem à sorte os paus ou se igualassem, arranjando outros ou cortando no maior. Riscou campo o valentão, por prosápia, que tal não é de moda, e logo se plantou em posição de parar, pau a escorregar para a perna esquerda, mãos à de¬vida altura. No terreiro, havendo estacado as danças e a zanguizarra, formaram todos em redondo.

À minha mão direita estava Rita, mais trémula e inquieta que o vero Anjo da Guarda quando o Diabo nos chuça. Relanceei uma última vista ao bazófio - pulsos mais grossos que os meus, estatura que se avantajava à minha uma boa mão travessa, o sorriso, Deus louvado, fingido, sobre o amarelo - e à voz: é uma! é duas! é três! só armei para receber o pim¬pão que caía sobre mim de pancada alta. Varri o golpe e, a tentear-lhe o manejo, comecei a parar com brandura, como a medo. Mesmo assim, do meu lugar não arredava tanto como a grossura dum vintém. Ele não, ladeava, curveteava, dava tais saltos e piruetas que as pernas lhe pareciam um compasso endiabrado. Certifiquei-me do seu jogo, que era impetuoso, mas de pouca ou nenhuma astúcia. E, sempre em posição de defesa, deixei-lhe quebrar o arreganho, embora me custasse uma pancada de esfarrapão no ombro direito e um lanho no pulso, em que ninguém fez re¬paro. Para os que estavam, sem dúvida que a supe¬rioridade era dele, pois me vinha inquietar no meu campo, e ali me mantinha encurralado como a gato, no poial, a dentuça dum sabujo. E até os olhos de Rita se me afiguraram desenganados

Gastámos uns minutos naquela léria, tau-tau, tau-tau, até que lhe vi o fôlego azougar na garganta. E então coube-me a vez de atacar. Ao jogo dele, sempre t9nto e alto, todo de rópia, opus o meu, baixo, curto e todo de rapidez. E, notei, tão impre¬visto lhe era que, se quisesse aos primeiros passes despachá-lo com uma pontoada, fazia-o tão certo como ter sido meu mestre nesta arte o maior jogador do Minho. Já os olhos de Rita se alegravam e me pareciam estorninhos a saltaricar num jardim. Sim, senhores, não façam troça que, tê-la ali a ver-me como me via, se me não trouxe ânimo - que tinha para dar e vender - trouxe-me sangue-frio e von¬tade para levar a bom termo a desafronta que esti¬vera magicando.

Tau-tau, a defender-se duma pancada ao ombro, facilitou-se-me pular-lhe ao peito, e limpei-lhe o pri¬meiro botão,  o rei. Foi tão rápido que ninguém re¬parou e mal me deu tempo para varrer a resposta que me mandava à cabeça. Todos podiam notar, ainda que ignorantes jogo, que os contra-ataques do homem, muito abertos e largos, me deixavam campo cabonde para lhe assentar, se me apetecesse, um golpe de escacha-pessegueiro. E, estranhos à minha traça, tinham por bizarria o que não era mais que uma refalsada manha. Dois botões, capitão e soldado, foram à viola, um a seguir ao outro, tão calados e cerces como o primeiro. E, racha contra racha, continuámos estreloiçando. Parecia-me ver-lhe agora, ainda que emproado, já que não recebera até ali golpe que se assinalasse, um certo ar, meio de comprometido, meio de desespero. Esse ar, junto ao roxo das veias das fontes, que pareciam sanguessu¬gas ao que estavam de inchadas, e à cor dos beiços, mais roxos ainda, lembrou-me, sabem o quê? o lua¬ceiro de piedade que espelha de sua benta charola o Senhor da Cana Verde. Coitado, se fosse noutro sítio e me atiçasse o Diabo ao mau génio, estava há muito a fazer torresmos no inferno.

Mas, bem, o homem soprava como um toiro. Obrigado a ter firmeza nos pulsos, pois o alarve o que se propunha era acabar e atirava à valentona, comecei a soprar também. Foi numa dessas arremetidas, quando o pau dele, vergastado pelo meu, ro¬dou por largo e desceu adormecido, que degolei o meu quarto botão, o ladrão. E obra com asseio; nin¬guém viu, como aliás sucedera das outras vezes. O colete tinha cinco botões, faltava-me o último, o segundo rei. Já me não havia de ser impossível ripar-lho, fulo e cego como estava, a baba a referver-lhe nos cantos da boca. Eu não me via ao espe¬lho, mas parece-me que guardava o mesmo ar des¬cansado com que vim ao mundo, guardei na paz e na guerra, e com que conto apresentar-me um dia no tribunal de Deus. Mas, dentro de mim, sentia os espíritos mais inflamáveis que pólvora.

Como o machacaz continuasse a despedir-me pauladas à mão-tente, mandei-lhe também uma, pela sonsa, destas que não fazem rumor e só dá conta delas quem as rilha. Foi à ilharga, e logo ele per¬cebeu que se não virasse de folha tinha mais pano da amostra. E, de facto, dali em diante foi mais ordeiro. Já não dava a escaqueirar-me a tola, mas como quem com o cacete quer partir um ovo, sem o perder para a gemada. E eu pude rematar a partida, ripando-lhe o último botão, com mais mandinga e disfarce que no jogo da vermelhinha.

- Bastará ?- pronunciei eu, plantando-me em meia defesa.

O homem aprumou o pau e, encostando-se a ele, pôs-se a limpar o suor da testa.

- Vivam os valentes! Vivam !- exclamavam em torno de nós. - Não há vencedor nem vencido!

Alto lá! - bradei. - Há vencedor e vencido, se é que ainda há direito em Portugal. Olhem bem!

Afirmavam-se todos para mim, afirmavam-se de¬pois para ele e não percebiam.

- Abotoe lá o colete, camarada ! - tornei eu para o mata-sete. - Abotoe-o que se lhe desabotoou. Está suado e pode apanhar uma pneumonia...

O fanfarrão ia a fazer o que eu lhe indicara e, como pelo tacto não encontrasse os botões, tratou de certificar-se. Vi-o primeiro quedar de boca aberta, depois fazer-se verde como as azeitonas antes de começarem a pintar.

- Não se aflija, homenzinho de Deus. Eles hão-de aparecer e pregam-se. À falta de tesoura, faca tenho eu para tirar as linhas. Mande vir uma agu¬lha - e, ao tempo que isto dizia, deitado entre o pulso e o canhão da véstia, mostrei o canivete que segara os botões.

Ficaram todos suspensos quando vieram ao en¬tendimento completo da façanha. Uns garotos me¬teram-se de burrinhas à procura dos botões, alguns acharam, e mostravam-nos de mão erguida, em grande algazarra. Não sabia o homem onde escon¬der a vergonha, e eu, mais por vénia àquela gente que por brandura de ânimo, desatei a rir e disse-lhe em bons modos:

- Vê o camarada que não sou apenas bailão!

O matula, que estivera um bocado sem saber o que mais lhe convinha: se fugir, se atirar-se-me ao gasne¬te, se deixar correr o marfim, saiu-se pela porta mais natural e decerto a melhor, dando o braço a torcer:

- É a primeira que tal me acontece! Caramba, você era capaz de levar à parede o próprio Mafar¬rico!

Dava-me a moeda, rejeitei-a sem palavras de agravo. E como eu lhes parecesse cordo do génio a bem, e levado da breca se me puxassem a terreiro, como a proeza não era pão nosso de cada dia, dali por diante fui mais festejado que o próprio rabe¬quista. Quando tornei a navalha à pequena, vi-lhe os olhos tão lânguidos e tão húmidos, que me veio a suspeita de que tivesse chorado por mim, chorado para dentro, quem sabe lá, se de consolação, se de quê. Mas eu só lhe soube apertar as mãos que tre¬miam.

Ricos tempos em que era capaz de tais áfricas, ricos tempos! E Deus fale na alma do Chico Pe¬dreiro, de Ermesinde, que veio da sua terra para a nossa erguer paredes e, começava eu a espigar, ia para trás do cemitério ensinar-me a jogar o pau! Apanhei muita negra nas mãos e nos braços, mas, honra lhe seja, aprendi o manejo todo. Graças a ele e à presença de Rita, que me incutia vontade de ser homem, pude varrer aquela desfeita com brio!

O Chico Pedreiro era a alma dum jogador! Dois homens a atirar-lhe pedras, as pedras a choverem umas atrás das outras por cima dele, e ele parava-as com o pau. Parece baleia e deixem-me confessar-lhes, eu nunca vi, mas tenho como verdadeiro. A tanto não cheguei eu, mas o mestre não perdeu comigo o tempo todo, haja em vista o colete do brutamontes de Santa Eulália que ficou varridinho como eira ao fim das debulhas.

Quanto ao alarve, quase tive pena dele, ao vê-lo lançado ao desprezo e eu mais apajeado que um herói que voltou da África de bater os pretos. O que é certo é que depois daquela minha avaria o danço não pegou mais. Bem sarrafulhava o arco da rabeca; bem tiniam os ferrinhos; todos me queriam à sua banda a sociar do mesmo copo. O Faustino, esse, pegou em mim ao colo e, meio pingueiro, gritava:

- Um homem que trata assim bem outro, sem nunca com ele ter tido negócio, se não fosse valente ficava-o a dever. Nunca eu me enganei com o camarada! A minha casa é dele. Tudo o que tenha é dele. Se gostar da minha Rita, dou-lha; não haja dúvidas, dou-lha.

AQUILINO RIBEIRO, O Malhadinhas, 1958

  

III

No Liceu (1915)

(...) Pois ficamos neste rés-de-chão menos mal, a dois passos do jardim, a um quarto de hora do Liceu, onde sou o senhor professor do primeiro e terceiro grupo. Sou-o mesmo assim por gracioso bambúrrio. Umas semanas atrás, sonhava menos com este magistério do que com a minha avó torta.

    O Liceu, isto é, o pessoal docente, recebeu-me com fria e silenciosa hostilidade. Que vias calcorreara o intruso para chegar assim de improviso à arce salomónica? Podem-se assim saltar os muros que têm vidros de cristal na cimalha? Conhecia dois agregados e esses me serviram de intermediários. Certos professores consideravam-se tão importantes e seguros da sua missão, que não tiveram que se inquietar com o advento dum estranho; outros permitiram-se fingir uma leve deferência para logo se porem em suas tamancas. Em princípio estava votado ao lazareto. Não se fez porém o vácuo em torno de mim porque mal dei a segunda aula, despedi pela porta fora, sem olhar para os lados. Os rapazinhos não tiveram tão-pouco tempo de formar uma ideia a meu respeito. Se em sua inópia mental algum pensamento acalentam em relação ao novo professor será descobrir qual o modo de se prevalecer dele, isto é, fundamentar a sua resistência ao esforço. Olharam-me para os sapatos, olharam-me para a gravata, olharam-me para as mãos. Quando me dirigi a eles com esta canhestria própria de quem nunca defrontou tal gado, vi-os suspensos. Que tal o déspota? Que tal o domador? Que tal o almotacé das notas? Que tal o nosso aio? «Eh, o tipo promete. Engasgou-se. O seu riso é branco.» Recobrei-me instantaneamente e deixei-os desconcertados, a fazer cruzes na boca. Deviam, sim, sentir-se o seu tanto defraudados, mormente porque não conseguiram deitar fora as unhas de felinos. A lição do dia era a geografia da África e eu encontrei-me perante a turma sem ter lançado sequer meio olho para o compêndio. No gabinete do reitor, preveni:

- Não posso dar aula. Não me preparei...

- Arranje-se como quiser, mas entretenha-me os alunos na classe.

Era um homem positivo, esperto, este reitor, e justamente pretendia que os lobinhos, se regougassem, regougassem onde não fizessem mal. E não fizeram. Tinha lido os roteiros dos navegadores, entre eles o de Álvaro Velho, e fiz-lhes uma palestra colorida e pitoresca ao estilo de Júlio Verne. Uma mosca que passasse no ar ouvia-se zumbir.

 Contudo, quando tocou a campainha, não esperaram que eu terminasse. Largaram de roldão. Estavam vingados do dever que lhes impus, à boa mente, de me ouvirem. Aquela comporta de açude pertencia-lhes para desafogo. De resto, era a maneira de manifestarem a sua decepção. Que espécie de professor era eu?

 Um sol brando dobava por cima dos pátios e corredores abertos, e a sua chama reverberava para as aulas quente e doirada, aconselhando à santa pândega e vida não-te-rales. Os professores acudiam à Biblioteca, sala de altas estantes, em redor, de carvalho envernizado, a fumarem o cigarrinho e desintoxicarem-se ao cavaco uns com os outros do carbónio escolar. A guerra fornecia-lhes o antídoto adequado. 

        Vinha da serra uma aragem que em sacadas bruscas esfarrapava no ar os gritos juvenis dos rapazes como de hilros voando. Mas trazia igualmente em suspensão o rescendor das mimosas temporâs, cortando com sua doçura olorosa o ar ponteiro. Os contínuos entravam e saíam com instruções: o senhor reitor que pedia ao Sr. Dr. Meneses para chegar à reitoria; o pai dum aluno que desejava ouvir o Sr. Dr. Amaral quanto às faltas do filho. E lá iam, de simples e lhanos que eram, hirtos e graves pela necessidade com a sua rigidez hierárquica de criar uma barreira entre a caderneta e a ignorância dos meninos, entre eles e a cegarrega dos papás.

 Se há profissão que fomente a autolatria e hipertrofia do eu é o magistério. Todos os magistérios. Cada professor é uma filosofia, uma política, uma universidade. A espécie de bastio vegetal em que se elevam podia não realçá-los aos próprios olhos? Podia depois a planta deixar de produzir frutos teratológicos?

        No ensino secundário, por certo o mais abalizado, querem os seus dramas de hiperestesia e recalcamento, cada professor pensa por sua cabeça e reage à sua maneira. Em matéria de guerra, consequentemente, cada um tinha  sua opinião, a qual, em seu juízo e no foro da família, não era apenas a melhor, mas no mundo das ideias a única lógica e humana. Como não havia de ser assim se as questões universais são as que mais apaixonam os homens de pensamento?! Por elas se batem e morrem. Reparei que no meu liceu, neste segundo ano da Primeira Grande Guerra, havia de grupo para grupo antagonismos irredutíveis. Via-os acirrados uns para os outros como teólogos sobre a natureza dum dogma.

(...) Chego à aula quando o contínuo à porta, alto, magro, interjeccional, olhos de irmã Ana para as escadas: vem, não vem? os meninos lá dentro em grande chinfrim, e o professor supranumerário a dois passos, na atitude do cão a quem vão atirar um osso. Ao aproximar-me, sinto bem no seu gesto que sofreu uma decepção. É um rapaz vestido de luto dos pés à cabeça, sobre o meão, trunfa gloriosa, quase carapinha, reles de figura, mas com uns olhos de bondade em que se reflecte alta chama interior. Faço-lhe uma vénia a que ele corresponde com outra e um sorriso benigno que me dizia:

- Ia tirar-lhe os ordenados de uma lição. Desculpe se lhe pareço precipitado. Andamos ao mesmo, isto é, a ganhar com que alimentar o cadáver e darmos a impressão de gente civilizada mediante o fato sem nódoas e a gravata sofrível.

Pergunto, mal-humorado com a última parte da mensagem que li no seu olhar - que sabe ele da minha vida? - pergunto ao contínuo, que me seguiu até à entrada para a aula, como se chama o homem.

- É o Sr. Dr. Vivaldo Roque. Vivaldo Roque Gomes, parece. Mas só é conhecido por Vivaldo Roque. Já aqui esteve o ano passado. Gostam cá pouco dele. Não sabe manter a ordem, é um bom homem.

        Compreendo: tenho que manter a ordem entre os jovens felinos. Vou de ímpeto para a cadeira de mestre e fico de pé a olhar a turma. A vaga vai amainando, em esmorço, de que se eleva singular para logo se extinguir uma ou outra voz, até cair no sussurro, este cicio manso do auditório, quando o pregador sobe ao púlpito. A turma é a minha conhecida dos Roteiros de África. Turma de repetentes do quarto ano, meios homens. Idade indecisa e perigosa. Encaro um deles que fazia grosso escarcéu com outro e bem percebera que o estava a observar.

- Vão nas Cruzadas, não é? - pronuncio com voz segura, mais segura e martelada que seria sem artifício, mas serena que a prova do fogo estava vencida. - Pois vão nas Cruzadas, vejamos o que de correspondente se passava em Portugal, uma vez que Portugal já era nação.

        Assestam-se sobre mim, como fanais que subitamente se acendem, dezenas de olhos. «Quero-lhes contar uma anedota... a tomada de Lisboa aos Mouros.» Se conseguir - digo com os meus botões - aguentar a turma sem que um destes gabirus malcriados cante de galo, ou desate noutras partes gagas, me peça para ir lá fora, sou capaz de ter dentro de mim, do meu entendimento e dos gestos em que se movimenta a minha natureza reflexa, um professor, não um pedagogo. Pedagogo é o professor esquematizado. Eu sou obra do engenho pessoal e da intuição. Sou uma adaptação do jeito e da boa vontade.

        Contei aos alunos em tom de história da carochinha a chegada à barra do Douro dos Cruzados, frísios hérculeos, flamengos ruivos e sanguíneos, ingleses bem esfalcados, todos com dentes agudos como cimitarras para o destroço de problemáticas ucharias. Traziam todos a cruz vermelha no ombro e o rosário à cinta. Depois da arenga que lhes dirigiram em latim Pedro Pitões e João Peculiar, bispos do Porto e de Braga, pareceram azabumbados, diga-se em abono, menos pelas razões do que pelo trabalho da lauta ceia que lhes ofereceram no Paço. Então haviam de passar em frente de Lyxibona, a infiel, e deixá-la a rir-se deles? - Não paga a pena - assim responderam ao invite cerrado que lhes dirigia o Príncipe pela boca dos bispos. Fosse o que Deus quisesse, no dia seguinte, havendo desfraldado as velas para o sul, aqueles dois magnates da Igreja acharam meio de se infiltrar a bordo duma das naves.

Lyxibona, encarrapitada no morro, com meia dúzia de casebres a resvalar pelo pendor, branca, inacessível e quase longínqua, não tentava a seus olhos de gerifaltes. Era possível rendê-la? Talvez. Mas valia uma missa? Que tesoiros podia encerrar aquele aglomerado que cheirava a pobre e mofino à légua, com seus adarves lisos, verticais imbricadas em verticais, só açoteias, só cubos, albornozes rotos e miserandos cueiros a secar nos panos das muralhas? Aquilo podia lá ser rico! Lyxibona dava ares dum burgo de pescadores - e ali estavam no esteiro, vazadas em terra ou amarradas a uma estaca, as tartanas e setias meias podres e sórdidas a atestá-lo - e eles, sem prejuízo de seu ardor religioso, o que cobiçavam eram pedrarias, oiro cunhado e lavrado, marfim, armas preciosas, tapetes do Oriente. Tinham lá disto? Tinham visto alguma vez essas riquezas?

Aquilino Ribeiro, extractos de Domingo de Lázaro, in Estrada de Santiago

IV 

A quarta turma

A semana transcorreu célere e calma, pouco dando que falar. Apenas na quarta classe houve uma bruega  de nada que se saldou em meu galardão.

A quarta turma, para onde varreram todos os repetentes do quarto ano e todos os que passaram as alpoldras  do terceiro com pé molhado, ganhou fama, bem merecida aliás, da mais indisciplinada do Liceu. Bastavam as laminas para fazer levedar uma turma de Luíses Gonzagas. Adicionadas ao rebotalho  aluvial do ano, pode imaginar-se o que seria o precipitado.

Os professores efectivos, macacos de rabo pelado, quando se tratou da distribuição do serviço, furtaram-se-lhe o melhor que puderam. Designaram-me a mim para tal redondel,   com outros de somenos categoria e tão desvaliosos como eu. Dos espadas apenas o Dr. Meneses, pelo regalo de ter ensejo de pôr em evidência a sua rijeza e destemor, aceitou pertencer ao elenco.

Em verdade os alunos da quarta turma, em cujo lábio começava a negrejar a penugem da adolescência, eram gado bravo. Uma vez criado e reconhecido por eles próprios tal conceito, ipso facto se viam obrigados a ser chinfrineiros. Era questão de personalidade. O ser notável na zaragata acaba mesmo por se tornar um problema de brio. Quem se resigna a perder créditos que o tornam saliente e magnífico?

O liceu pode considerar-se o esperançoso alfobre  da sociedade burgueso-cristã, onde cada planta procura vingar sobre a densa truculência das demais. Há os meninos-prodí¬gios, e os infelizes derretem os miolos a manter-se no escalão; há os que vestem bem, para os quais a supremacia consiste em ser janota ; há os fumadores, que se supõem escravos de tal vício, e quando entram para as aulas é a cuspir a petisca  e quando saem a primeira coisa que fazem é acender o paivante ; há os que não estudam patavina e armam em vítimas de tais e tais professores, a título de inexplicável embirração ou ódio político; há os boémios, porque a boémia, em países do fado e da pasmaceira, dá certo tom; há os revoltados, os inconfor¬mistas e inaptos para tudo que não seja deixar-se viver, e vêm a constituir, no futuro, as sarandalhas  que o mar social periodicamente arroja à costa. E abundam os engraçados mariolas que não perdem a ocasião de fazer uma partida ao chato do professor, bem como de partir as lâmpadas eléctricas com uma pedra fortuita, desenhar um corpo obsceno na lousa ou rabiscar qualquer frase indecente nas paredes da sentina.

Eis o piccolo móndo que o professor do liceu tem primeiro a domar, depois de desemburrar, em último grau a sublimar em boas e úteis qualidades cívicas, entre as quais conta em primeiro plano saber conduzir a bom porto e por águas mansas o barquinho pessoal.

A quarta turma era isto: filhos-família ralaços, conflituo¬sos, petulantes , piadistas, espécie de colónia de incorrigíveis, Chegava-se à porta e a sala sussurrava como uma colmeia de abelhas no pino do Verão. Contínuos, mestres, reitor trata¬vam-na um tanto à maneira de ménagerie . Convinha levar tridente  quando se lá entrava.

Aquilino Ribeiro, extracto de Domingo de Lázaro, in Estrada de Santiago