ÁLVARO CUNHAL

ÁLVARO CUNHAL

O príncipe vermelho

Está por fazer o filme da vida do líder histórico do PCP. Se déssemos outro nome à luta pela implantação do comunismo, ele poderia ter sido um Zorro, um Robin dos Bosques ou, mais de acordo com a mitomania moderna, um Indiana Jones. Mas, ao contrário dos outros heróis, Cunhal acabou por perder a sua dama. nem por isso a aventura tem outro sabor.

Os homens do mar gostam de contar histórias do outro mundo. Todos eles tiveram encontros com sereias, adamastores, ou viram saltar das águas o fogo de Santelmo. Mas, os pescadores de Peniche viveram mesmo um dia extraordinário, nos idos de sessenta.

Ao cair da noite, remendadas as redes e varados os barcos, com as mulheres costurando na soleira das portas e os filhos pontapeando bolas de trapos, os homens formam grupinhos no largo. Nunca mais de três pessoas à vez: conhecem bem a dureza das leis e têm diante dos olhos, paredes meias com o bairro, a prova do que acontece a quem desafia o poder. No forte, uma imponente edificação sobre as escarpas, estão encarcerados alguns dos mais acesos adversários do regime salazarista. Quem é dado a episódios romanescos e já ouviu falar do Papillon chama-lhe “ilha do Diabo”.

No bairro dos pescadores, palco de misérias e fantasias, ainda se fala à boca pequena do que acontecera poucos anos antes, quando um prisioneiro descera o paredão a pique sobre o mar e nadara até á praia. O fugitivo tinha levado meses a serrar a porta de ferro do “segredo”, com uma faca feita a partir de uma colher. Uma corda de lençóis e mantas ajudara-o a saltar a amurada. Chamava-se Dias Lourenço.

Assim, os guardiões do regime descobriram que o forte não era inexpugnável. Reforçaram a segurança. Mais ferros, mais cadeados, mais rondas. Mas, no silêncio fundo dos cárceres, conspira-se. pela calada, o povo canta: “Liberdade, liberdade/ quem na tem chama-lhe sua/ eu não tenho liberdade/ nem de pôr o pé na rua.”

Cumplicidades

A certeza de que os prisioneiros não se vergaram chega numa noite de Janeiro de 1960. os habitantes do bairro dos pescadores, que nunca gostaram daquelas vizinhanças com o forte-prisão, vêem desembocar no largo, aos grupos de dois e três, dez homens cujo semblante não engana ninguém. Rostos encovados, roupas mal enjorcadas, andar determinado. Trazem escrito na cara que estão a evadir-se.

Para chegarem ao bairro, tinham de seduzir um guarda, de manietar outro, de saltar barreiras, de descer uma muralha de 20 metros a pique. Tudo para desembocar junto das casas dos pescadores, onde qualquer pessoa poderá denunciá-los.

É um momento que vai alterar a vida de toda aquela gente, os que fogem do forte e os que os vêem passar. Sem alaridos, mas tocadas pelo medo, as mulheres metem as crianças dentro de casa. os pescadores suspendem os relatos de façanhas. Baixam os olhos. É preciso que ninguém veja nada, para nada ter a dizer quando a PIDE chegar.

Os dez desconhecidos atravessam o bairro em silêncio, a passo ritmado, sem pressas, mas sem perder tempo. Bastava alguém ter gritado “ó da guarda” para que as sentinelas do forte dessem o alarme. Mas ninguém fala. Mesmo os que não morrem de amores pelos “vermelhos”, intoxicados pela propaganda que alardeia banquetes de criancinhas e injecções letais na orelha dos velhos, calam-se ante a aparição dos evadidos. Qualquer coisa no olhar deles os emudece.

Sem o saberem, nesse momento tornam-se cúmplices de uma das mais espectaculares fugas das cadeias portuguesas. a que trouxe de volta à liberdade Álvaro Cunhal, o inimigo público nº 1.

LIBERDADE, LIBERDADE

Após 11 anos nos cárceres, grande parte dos quais em completo isolamento, o mais temido e mais bem guardado dos prisioneiros evade-se nas barbas da polícia de Salazar.

É ele um dos homens que abre caminho aos restantes evadidos do forte de Peniche. Fora o primeiro a saltar e também quem atara na muralha da fortaleza-prisão a ponta da corda de lençóis. No topo, as sentinelas, estranhamente, não dão por nada. mais tarde falar-se-á de cumplicidades, de subornos, ou apenas de sorte. passará uma hora, até que soe o alarme e os guardas empunhem das armas. Os holofotes varrem o bairro dos pescadores, as botas cardadas estremecem a noite. Mas, com a cobertura tácita da população e o apoio de camaradas que os aguardam em pontos estratégicos já estão a salvo. Em localidades dispersas, do Barreiro ao baixo Alentejo, estalam foguetes. Nas ventas do regime, o povo ri-se. Para salvar a cara, o Governo espalha a versão de que a fuga fora planeada e executada por comandos da URSS. Um submarino soviético teria recolhido os evadidos que, àquela hora, já estariam num país de Leste.

Muito pelo contrário, Álvaro Cunhal está em Portugal e aqui viverá ainda mais um ano.

Esta fuga insere-se numa série de invasões de prisioneiros políticos conotados com o PCP. Em 1956, Jaime Serra, detido em caxias, faz um molde de sabão da chave do lavadouro e envia-o para o exterior. Um duplicado ajuda-o a fugir. Em 1957, Carlos Brito trepa aos telhados da cadeia do Aljube e equilibra-se sobre um cano de zinco até atingir um edifício vizinho, de onde salta para a rua. No Porto, Silva marques, actual deputado do PSD, subindo a um andaime que dava para o cemitério. Mas é um ano após Peniche que ocorre a fuga porventura mais espectacular. José Magro e Domingos Abrantes, entre outros, evadem-se do Forte de caxias ao volante de um carro do próprio Salazar. Uma viatura blindada, oferta de Franco, concebida para resistir a atentados bombistas. Em vão a GNR dispara sobre os fugitivos. O velho Hudson, com a matrícula HE-10-32, leva dois comunistas para a liberdade, deixando profunda mossa no orgulho do homem de S. bento.

PRÍNCIPE VERMELHO

Como é que Álvaro Barreirinhas Cunhal, licenciado em Direito, filho de um governador e descendente de fidalgos, vai parar às masmorras? Por nascimento e educação, ele nunca deixará de ser um aristocrata. Por mais que se misture com o povo, e aprenda a gostar de sardinhas assadas e tinto do barril, terá sempre porte fidalgo. Em títulos de jornais, chamam-lhe “o príncipe”. Como todos os príncipes, é também um homem que gosta do poder, e que o exerce, de forma por vezes cruel.

O primeiro Cunhal de que há notícia nasceu em Portalegre, por volta de 1640, no seio de uma família de criisttãos-velhos puros. As suas origens remontam a um barão de Santa Comba Dão - ironias da vida! -, e na árvore genealógica da família há um visconde do Ervedal, um conde de Ervideira, os marqueses de Praia e Monforte, além de influentes membros da Igreja. O leque complementa-se com grandes lavradores e proprietários de terras, de Coruche, Coimbra, Seia e da região do Alentejo. Também há aventureiros: um José António Cunhal, que nasceu em Estremoz em 1788 e foi morrer a Seia, com fama de valdevinos, era legionário no Exército de Napoleão.

Ao longo de séculos, os Cunhal fizeram proveitosas alianças entre a nobreza de cofres esvaziados e a burguesia endinheirada.

O pequeno Álvaro, nascido em 1913 na Sé Nova, em Coimbra, e baptizado em Seia, é filho do advogado Avelino da Costa Cunhal, que foi governador civil da Guarda e tinha veia de artista. A mãe, Mercedes Ferreira Barreirinhas, que se orgulhava das suas raízes fidalgas e gostava do poder do dinheiro, tentaria em vão influenciar a vida do filho, desde muito cedo atraído pela gentalha, fazendo amigos entre os pés-descalços e desdenhando dos favores da riqueza. É o segundo de quatro irmãos, dos quais apenas sobrevive a mais nova, Maria Eugénia. Esta irmã, poetisa discreta, tem sido a retaguarda do velho combatente: a única morada oficial que se lhe conhece é a dela, na Rua Sousa Martins, em Lisboa. Foi lá que a PIDE o procurou diversas vezes. De uma delas, Maria Eugénia é levada para os calabouços.

ASCENÇÃO

Quando adere ao partido Comunista Português, com apenas 17 anos e sendo aluno da Faculdade de Direito de Lisboa, torna-se algo privilegiado da polícia salazarista. Um ano depois, já ocupa posto destacado na liderança do partido. Com um grupo de dirigentes recém-libertados da cadeia, entre os quais Júlio Fogaça, cria um “PCP paralelo”. Opõe-se á actividade daquele a que chama “grupelho provocatório”, tomando posição contra o secretariado de Velez Grilo, Vasco de Carvalho e Cansado Gonçalves, que ficou para a história como o “grupo do Rossio”. Com golpes e contragolpes, num sistema de alianças que envolveu alguns dos camaradas que mais tarde repudiaria, Cunhal caminha para o lugar que seria o seu, de ideólogo do partido.

Uma visita à URSS em 1935 fá-lo descobrir “o Sol na Terra”.

Seguem-se tempos de vertigem. É uma testemunha privilegiada dos maiores acontecimentos da primeira metade do século. Esteve na Guerra Civil de Espanha, onde viveu a sua primeira experiência com armas. Em Portugal, na II Grande Guerra, seguiu os ataques das tropas nazis, ouvindo a BBC e assinalando com bandeirinhas os avanços das forças soviéticas. A retomada de Stalinegrado deu-lhe a certeza da vitória. Após a guerra, assistiu á reconstrução da Jugoslávia. Viu a instauração do regime popular da Checoslováquia. Deslumbrado pela causa, fecha os olhos aos excessos de pendor estalinista. Faz e perde amigos.

Durante o encarceramento do líder em Peniche, Júlio Fogaça que, entretanto, fora expulso do PCP “por razões morais” - um eufemismo que os comunistas da linha dura adoptaram para discriminar os homossexuais - regressa ao secretariado, após penosa autocrítica e público perdão. Em 1957, no Congresso reformista, Fogaça apresenta um relatório para a “transição pacífica para o socialismo e a unidade anti-salazarista”. Na cadeia, Cunhal discorda e faz saber que está zangado. Quando volta á liberdade, acusa-o de “desvio de direita”. Seguem-se tempos difíceis para o “companheiro da primeira hora”, um homem que passara pelo Tarrafal e sofrera atrozes torturas, fora humilhado pelos camaradas de partido e caluniado até ao fim da vida. Até 1980, ano em que morre anonimamente, Fogaça não será reabilitado.

Outra expulsão humilhante é a de Martins Rodrigues, antigo braço direito do líder, que sai do PCP acusado de “roubo de uma máquina de escrever”. Ressabiado, o renegado funda a primeira organização maoísta portuguesa, a Frente de Acção Popular e o Comité Marxista Leninista. Também são tensas as relações de Cunhal com Mário Soares, afastado do partido por desvio aberrante para a social-democracia, e de Piteira Santos, por pecado de “titismo”.

No partido, suspeita-se que a última detenção de Cunhal, em 1949, terá sido por denúncia de um companheiro. O suposto delator, Manuel Domingues, aparece morto, em 1951. fala-se em execução.

LENDAS

Entretanto, a lenda do revolucionário percorre o país. A PIDE tem muito por onde procurá-lo, em Portugal e no estrangeiro.

Desde os 22 anos, Cunhal sabe o que é viver na clandestinidade. Aprende a vestir-se e a comportar-se como um rural. Acoita-se em casebres, come batatas sem conduto, dorme no restolho. Usa diversos nomes, Duarte, António (nome do irmão mais velho, que morreu cedo), e partilha das tarefas do campo, enquanto difunde os ideais comunistas. de uma vez chegou a estar oito anos no Norte. Aí conhece gente como o Lambaça, o contrabandista e passador de Cinco Dias, Cinco Noites, novela publicada sob o pseudónimo de Manuel Tiago.

Agora que conhece bem o povo, comunga das suas carências e anseios, Cunhal sabe como gerir o descontentamento. Foi o seu dedo por detrás das grandes greves de 1943, 1944 e 1947. Preso duas vezes, em 1937 e em 1940, voltará a ser detido, pela última vez, em 1949. Iniciará, assim, o longo percurso da Penitenciária de Lisboa (onde morre Militão Rodrigues, em greve de fome) até Peniche, de onde sairá na ponta de um lençol.

Cunhal, com o traquejo da clandestinidade, em que uma pessoa muda de nome, de afectos e de vícios, para manter intactas as suas convicções, torna lendária a sua passagem pelas cadeias. De tudo faz mistério, um hábito de vida inteira. É conhecido como o homem que não fala.

Conta-se, entre outros, um episódio de tortura, que visava localizar a origem de um molho de chaves que a PIDE encontrara em seu poder. Conhecido pela sua resistência à dor física e à pressão psíquica, Cunhal sempre se manteve mudo. Quando os carrascos descobriram que as chaves era da própria casa do prisioneiro, perguntaram-lhe: Por que é que não nos disse? Teria poupado tanto trabalho...” Cunhal terá respondido: “Eu não estou aqui para vos poupar trabalho.”

UMA VIDA

Escapa das malhas da PIDE quando, em finais de 1961, se muda para o estrangeiro. Na URSS, é recebido com honras de herói de Estado, como um grande líder da Frente Ocidental. Desloca-se frequentemente á Roménia, onde vivem a sua companheira de então, Isaura (“Luísa”, nome de guerra) e a filha única, Ana. Em meados de 1960, radica-se em Paris. tem a noção de que não pode fazer a revolução portuguesa à distância de Moscovo.

Mais perto do país, passeia-se de boina basca no boulevard Saint-Germain, onde os pides se misturam com os exilados portugueses. Agora chama-se António de Sousa.

Só regressa a Portugal três dias depois do 25 de Abril. Ele que tanto lutou pela queda do antigo regime, é tomado de surpresa pela revolução. Ninguém o avisou.

Mas vem a tempo de entrar na corrida para o poder. da cadeia ao Governo, o percurso de Cunhal engloba outros 20 anos de glórias e derrotas. è uma rodagem dura para o partido, que se movia melhor na clandestinidade do que á luz do dia.

Hoje, aos 83 anos, o velho senhor continua igual a si próprio. Mesmo depois da queda dos países de Leste, acredita que a luta da sua vida fez sentido. Para a humanidade viver bem consigo mesma, defende o comunismo a longo prazo, o socialismo a médio prazo e uma democracia avançada no final do século. Com o seu mundo a desmoronar-se, comporta-se como um iluminado. É um guerreiro, o último dos moicanos.

Álvaro Cunhal, quase tão velho e provavelmente tão sábio como Moisés, quando atravessou o deserto, ainda insiste em conduzir o povo eleito. Que por acaso, somos nós.

Revista “Visão”, 24 de Abril de 1996