CORPO EXPEDICIONÁRIO PORTUGUÊS

A Alemanha declarava há 80 anos a guerra a Portugal

Para a Flandres à força

Portugal entrou na I Guerra Mundial a pensar no império de Àfrica e num lugar de honra ao lado dos vencedores na futura conferência de paz.

A República queria legitimar-se face a uma Europa que a olhava com desconfiança, mas nada lhe correu bem na frente externa e, na interna, a crise política e a agitação popular foram permanentes.

Texto de Fernando Correia de Oliveira

Quando, a 1 de Agosto de 1914, tem início o conflito mundial, pode dizer-se que a classe política portuguesa, se não foi apanhada de surpresa, estava muito mal preparada para fazer frente ao desafio imenso que os anos seguintes iriam ser para Portugal e o seu im´perio africano.

“Era confusa a situação em Portugal, no início da guerra, continuava a viver sobre o fio da navalha: se por um lado havia incoerência, ambiguidade e dependência, do outro havia perigo de morte; e, de tudo, o Governo da República simplesmente suspeitava”, diz o historiador Luís de Fraga. Incoerência, ambiguidade e dependência de um regime novo e sem estabilidade, estabelecido em 1910, perigo de morte para as colónias, que desde a Conferência de berlim estava na agenda das grandes potências.

Segundo outro historiador, A. H: de Oliveira Marques, tornou-se claro à maioria dos responsáveis pela política portuguesa que o interesse nacional estava em causa comum com os aliados, contra a Alemanha. Sabia-e bagamente das conversações havidas em 1913 entre a Inglaterra e a Alemanha para uma partilha das colónias portuguesas, como já tinha acontecido em 1898, quando as duas potências definiram as suas esferas e zonas de influência e as áreas que iriam ocupar no caso de Portugal - não possuindo os recursos necessários para o desenvolvimento das suas colónias - ser, mais dia menos dia, forçado a aliená-las, para poder fazer frente a décadas de contas públicas desastrosas no estertor do regime monárquico.

Debatendo-se com os mesmos problemas de falta de dinheiro e pouco ou nenhum respeito externo, o novel regime republicano aproveita o conflito mundial de 1914 para, por um lado, assegurar a defesa das colónias colocando-se ao lado dos Aliados, por outro tentar, “colocar-se no mapa” das potências europeias, entrando no conflito em teatro de guerra europeu.

O governo bernardino machado, apanhado de surpresa pelo deflagrar da guerra, faz o seu ministro dos Negócios Estrangeiros, Freire de Andrade, telegrafar no próprio dia 1 de Agosto de 1914 para o embaixador português em Londres, Teixeira Gomes. Quer que ele se informe no Foreign Office acerca da atitude que Portugal deve tomar. maior deferência, e dependência, em relação aos ingleses, não poderia evidenciar-se.

Em Paris, o embaixador João Chagas, um francófilo acérrimo, quer a entrada de soldados portugueses na guerra e, quanto mais cedo melhor. E nas notas que vai enviando para Lisboa procura pressionar o Governo para uma beligerância declarada. Em Berlim, o embaixador Sidónio Pais queixa-se da falta de informação, mas transmite a ideia que corre nos meios políticos do Reich: a entrar na guerra, Portugal irá fazê-lo ao lado dos Aliados.. Em Londres, Teixeira Gomes ataca os “guerristas” argumentando: “ A beligerância de Portugal só embaraçava a nossa aliada que, de resto, nos não defenderia em caso de aperto se a tivéssemos declarado em seu consentimento (...) Que ideia fará essa gente do que seja entrar em guerra, sem dinheiro, sem recursos de armamento, sem preparação de espécie alguma...”.

A célebre resposta britânica, dada pelo subsecretário de Estado Eyre Crowe no dia seguinte, é a de que Poertugal deve “conservar a sua neutralidade, colaborante, sem a declarar”. O termo neutralidade beligerante” usado por Crowe é ambíguo e mesmo inexistente entre os conceitos de dirreito internacional. Teixeira Gomes responde a 3 a Crowe “julgando interpretar os sentimentos do Governo e do povo português dizendo que, em qualquer caso, a Inglaterra nos terá a seu lado”.

A 5, Londres reafirma a directiva para que Portugal não declare a sua neutralidade e, respondendo a um pedido de Lisboa para que o Governo britânico estudasse com urgência a defesa das colónias portuguesas contra qualquer ataque alemão, diz, através, do seu ministro dos Negócios Estrangeiros, Eduard Grey, que a aliança anglo-lusa continua em vigor em caso de ataque de terceiros ás colónias.

Por outras palavras, Londres não queria a ajuda portuguesa no teatro de guerra europeu (o Exército português, como os ingleses sabiam muito bem , era uma ficção) e prometia ajudaem Àfrica, para onde ia aconselhando que os esforços militares lusos se encaminhassem.

De 1914 a 1918, foram cinco anos de brasa em Portugal, e que tiveram de tudo: cinco presidentes da República, dez primeiros-ministros, outros tantosministros dos Estrangeiros, um governo de unidade nacional, duas ditaduras militares, conspirações monárquicas, greves e atentados, epidemias e milagres. Além de uma ida à guerra or teimosia. A guerra, para o porta-voz dos “guerristas”, Afonso Costa, era a maneira de dar á Europa “uma imagem diferente daquela que a República vinha dando até aí”, como outro historiador, José Gonçalves.

As escaramuças entre tropas portuguesas e alemãs em angola e Moçambique, começam em Setembro e Outubro de 1915. A 18 de Outubro dá-se em naulila, Sul de Angola, a primeira derrota lusa face às forças do reich. as notícias que chegavam á metrópole enfureciam militares e civis face á fragilidade e indecisão do poder político.

!A eclosão da I Guerra Mundial marcará uma nova fase nas relações entre a instituição militar e as instituições republicanas(...) a surpresa e a reacção dos militares do exército metropolitano às dificuldades que lhe surgirão na própria àfrica(...) criarão reacções em cadeia, desde o movimento das Espadas de 1915 até ao golpe de Estado (sidonista) de Dezembro de 1917”, escreve José Medeiros Ferreira.

Em 30 de Dezembro de 1915, Londres sonda Lisboa sobre a possibilidade de requisição de dezenas de navios mercantes alem~aes surtos em portos portugueses no continente, ilhas e ultramar, refugiados desde o início das hostilidades. A atitude de Londres devia-se às crescentes dificuldades com a obtenção de transportes marítimos, que escasseavam com a devastadora guerra submarina de que estava a ser alvo por parte dos alemães. O pedido a Lisboa foi feito “em nome da aliança”.

“Consciente do risco de que a requisição dos navios iria acrretar, mas reconhecendo as suas vantagens práticas para justificar uma intervenção que a Inglaterra claramente não desejava, o Governo português procedeu á requisição das embarcações” em 23 de Fevereiro de 1916, nota Olveira Marques. O Governo português requisitou 70 navios alemães e dois austro-húgaros.

Como seria previsível, a resposta da Alemanha foi a declaração de guerra (a 9 de Março, o embaixador alemão em Lisboa, Van Rosen, depositava o documento nas Necessidades), seguida pouco depois do corte de ralações diplomáticas com a Áustria.

A 10, o democrático afonso Costa pede a demissão de um Governo partidário que chefiava e, seis dias depois, está formado o Governo da União sagrada, composto por democráticos e evolucionistas, cedendo Afonso Costa a presidência do Ministério ao líder destes últimos, antónio José de Almeida. Os unionistas de Brito Camacho, a terceira força, sem entrar no executivo, afirmavam dar-lhe apoio. D. manuel II, exilado nos arredores de Londres tinha telegrafado ao Conde de Sabugosa, aconselhando os monárqicos portugueses a oferecerem os seus serviçois ao Governo, dada a situação de beligerância. três dias mais tarde, o embaixador em berlim, Sidónio Pais, regressa a Portugal.

Em Junho, Afonso Costa inicia os contactos internacionais necessários á coordenação com os Aliados para a entrada de Portugal na guerra. Vai a Paris, á Conferência Económica, e a Londres.

“O Governo da União Sagrada teve de cumprir a difícil missão de organizar uma força expedicionária que fosse combater em França, além das várias expedições a Angola e Moçambique que, aliás, datavam já de anos anteriores”, diz Oliveira Marques. “o Exército Português, em lenta fase de reorganização desde 1911, não estava em condições de ser, desde logo, enviado para os campos de batalha da Flandres e de aí sofrer o confronto com os modernos exércitos europeus”, reconhece.

Até 1910. o Exército português era composto apenas por tropas do quadro permanente. Por decreto de 1911, era criado o serviço militar obrigatório e o sistema de oficiais milicianos. No entanto, esta reforma não passou do papel, dvido à resistência passiva dos oficiais do quadro permanente, que não aceitavam de boa vontade o aparecimento de melicianos ao seu nível. Com o deflagrar da guerra, o sistema teve de ser finalmente introduzido, não só porque era reconhecida a oposição dos oficiais do quadro permanente a uma eventual entrada de Portugal no conflito.

“Este facto viria a ter reflexos na forma como se processou a mobilização, a partir de 1916”, nota José Gonçalves. “Os oficiais milicianos foram mobilizados, na sua quase totalidade, para a Flandres, enquanto os do quadro permanente fizeram a guerra em àfrica - local onde todos achavam que Portugal devia, de facto, combater. É claro que, com problemas destes a nível da oficialidade, seria muito dificil mobilizar um Exército em condições para o comabte na Europa. Os oficiais milicianos não tinham experiência de combate, não conheciam as modernas técnicas de guerra, não sabiam impor disciplina nos seus homens”.

De qualquer maneira, em 22 de Julho, uma divisão de 30 mil homens desfila perante afonso Costa e Norton de Matos, o Ministro da Guerra. É o “milagre de Tancos, a preparação em vcerca de nove meses de um corpo expedicionário. “Grosso e medíocre”, como o classifica Pulido Valente, Norton de Matos tinha, no entanto, “talentos de organizador e homem de negócios”.

José Gonçalves desvaloriza tal proeza: “Em Tancos,(...) não se fez nada que já não se tivesse feito nas restantes unidades: marchas e mais marchas, treino com armas antiquadas, desconhecimento completo do que era uma guerra de trincheiras, inexperiência de exercícios fundamentais para o tipo de guerra da Flandres - granadas, morteiros, metralhadores, gases, etc.”. Pulido valente também não se comove com o “milagre” republicano, nome suspeito dado ao evento pela hagiografia jacobina. Segundo ele, Norton de Matos “improvisou tropas, comandos e armamento e, após algumas revistas cerimoniais, mandou tudo para a França, sem se preocupar excessivamente com as condições de vida e de luta do Corpo Expedicionário, que criara como pura peça de propaganda”.

A situação interna, devido ao esforço de guerra e à quebra dos abastecimentos, levara á escassez cada vez maior de géneros de primeira necessidade e a fome chegava aos sectores mais pobres, especialmente nas cidades. Muitos artigos passaram a ser racionados e no verão de 1916 registaram-se assaltos a padarias. Um revolta militar, chefiada por machado Santos, o “herói da Rotunda”, aborta em Dezembro.

Em 26 de janeiro de 1917 parte o primeiro contigente português para a frente da batalha em França, depois de, a 3, se ter conseguido um acordo luso-britânico quanto ao Corpo expedicionário, que seria chefiado pelo general Gomes da Costa.

“Em 5 de Dezembro de 1917, com o grosso do Exército combatendo na Flandres e em àfrica e o chefe do Governo em missão fora do país, algumas unidades de lisboa, apoiadas por elementos populares e com um esteio forte nos cadetes da escola de Guerra (que estavam prestes a embarcar para a Flandres, e não chegaram a ir, como “prémio”), revoltam-se sob a chefia do ex-ministro em Berlim, o major e professor Sidónio Pais”, escreve Oliveira Marques. “A revolta fez-se e triunfou, aparentemente contra a guerra e a chamada demagogia dos democráticos”.

Os primeiros decretos da junta revolucionária foram a anulação do desterro dos bispos, a reintegração de monárquicos na função pública, a abolição da censura de guerra. Esta última medida, permitindo aos jornais falar mais livremente sobre a hecatombe que ia paulatinamente arrastando os soldados portugueses pela lama nos campos da Flandres, servia para acentuar ainda mais os sentimentos contra a participação na Grande Guerra.

O acordo luso-britânico de 1917 tinha determinado a integração do Corpo expedicionário Português (CEP) no XI Corpo do Exército britãnico. Mas Norton de Matos, seguindo a ideia de afoinso Costa de uma autonomia total para as tropas, tinha conseguido meses depois a independência do CEP face aos comandos ingleses. ComSidónio, o CEP volta, a partir de Janeiro de 1918, a estar dependente do XI. A 9 de Abril ocorreria a Batalha de La Lys, o principal desastre da campanha, e os historiadores inclinam-se ainda hoje na sua maioria para responsabilizar Sidónio pelo sucedido, embora novos trabalhos pretendam “rever” oa antiguerrismo de caudilho.

Para Oliveira marques, a “influência de pacifistas e germanófilos, ao nível ministerial, a colaboração de soldados e oficiais que se recusavam a combater, tudo isto fez diminuir o esforço de guerra e sabotar o moral das tropas. Os soldados da Flandres deixaram de ser rendidos”. E os oficiais que vinham de licença, já não voltavam, passeavam-se elegantemente pela baixa e pelo Chiado, para escândalo dos civis mais afonsistas. mas um homem da Flandres, Ferreira do amaral, afirma que Sidónio, “com a sua revolução, poupou aos governantes da União sagarada um terrível desaire. Pulido Valente considera, que “muito antes da revolução sidonista, faltavam reforços para render com suficiente frequência as tropas da primeira linha, não havia material do mais elementar, os soldados comiam o rançho inglês, que abominavam, a desordem era absoluta e o CEP inteiro adoptara como hino uma canção edificante “Fado do cavanço”.

O desastre na mítica Batalha de la Lys, ocorrida a 9 de Abril de 1918, foi fruto da imperparação congénita do CEP, da superioridade inevitável da artilharia alemã, um corolário das duas condicionantes ou um desastre provocado pela política antibeligerante de Sidónio Pais? O que se passou descreve-se em poucas palavras”, afirma José Gonçalves. A 1ª Divisão do CEP, aquela que estava na frente desde o início, havia recuado alguns dias antes, tendo o seu comandante. general Gomes da Costa, passado a comandar a 2ª Divisão. Esta ficou a tomar conta de todo o sector, aguardando que uma divisão britânica se lhe juntasse. No entanto, face à situação em que se encontrava a 2ª Divisã, o comando britânico ordenou também o seu recuo, passando todo o sector a ser ocupado por tropas britânicas. No momento em que se estava a iniciar esta operação (madrugada de 9 de Abril), oas alemães atacaram. Alvo escolhido. o sector português.

O resto sabe-se: A 2ª Divisão do CEP, apanhada de surpresa, foi literalmente arrasada. Desapareceram batalhões completos (...) À 1ª Divisão, que se encontrava na rectaguarda, coube a missão de avançar de novo e tentar suster o avanço alemão. Não o conseguiu os alemães romperam a frente e ocuparam quase todo o sector. Em poucas horas, o CEP ficou reduzido a um amontoado de tropas desorganizadas, dispersas, destroçadas. Houve 7 500 baixas, mais de mil mortos, sensivelmente metade dos caídos em toda a campanha portuguesa na Flandres. Em África, estiveram envolvidos mais de 50 mil homens, contando com um maçciço efectivo indígena. cerca de 31 mil em Moçambique e 23 mil em Angola. O número de baixas, entre mortos e feridos e inutilizados por doença, terá ascendido as 21 mil, também na esmagadora maioria indígenas. Nessa frente, poucos foram os portugueses que morreram. O total de efectivos embarcados para França foi de 55 mil homens. No fim, o CEP registaria 1938 mortos, 5 198 feridos e 6969 prisioneiros ou desaparecidos.

Valeu a pena? É um debate por encerrar. Não foi a Guerra que inventou os crónicos males portugueses, mas a todos agravou. O custo de vida subia, a fome aumentava, o povo revoltava-se. Duas epidemias (tifo e pneumónica) varreram o país. Em Fátimaa apareceu a Virgem maria. As colónias salvaram-se”, acidentalmente, poupadas pelo gongue da derrota alemã. E Portugal começo a olhar para o Exército como a instituição salvadora, ouvindo-se o dobrar dos sinos por um regime republicano que duraria menos de 16 anos e julgara encontrar a sua “missão” numa Grande Guerra.