MIGUEL RELVAS

Os Relvas do Ribatejo

Foram figuras marcantes no Portugal do seu tempo. Mas o amor pelas artes ou a intensa paixão política não consegue esconder a aura de maldição que assinala o percurso da família Relvas. na lezíria ribatejana, entre a Golegã e Alpiarça, é ainda agora possível perceber os sinais duma existência que teve tanto de glória como de infortúnio.

Quando, à uma da madrugada de 4 de Outubro de 1910, o navio Adamastor fazia soar na barra do Tejo os primeiros tiros, estavam lançados os dados da revolução republicana. No entanto, as mortes prematuras de Cândido dos Reis e Miguel Bombarda faziam temer o pior.

Foi então que surgiu evidente o protagonismo de um abastado agricultor ribatejano, implicado na conjura desde a primeira hora: improvisou uma junta Revolucionária, instalou-se na redacção do jornal “A Luta”, montou enfim a teia de contactos e ligações que levariam a revolução a bom porto. Chamava-se este homem José Relvas.

Houve mesmo quem o apelidasse de “batuta da revolução”. Seria ele ainda quem da janela da Câmara Municipal anunciaria ao povo de Lisboa o advento da República. Mas, apesar do seu protagonismo súbito, o apego de José Relvas à causa republicana começara apenas três anos antes.

O seu percurso íntimo encontra-se na lezíria ribatejana. Para refazer o percurso, é preciso rumar à Golegã e buscar o Museu Municipal De Fotografia carlos Relvas fundado por seu pai, abastado agricultor da região.

Um fim de tarde sombrio ajudava ao triste aspecto que a mansão sustenta, não ocultando todavia sinais de antiga grandeza. Uma observação atenta depressa faz surgir os porquês do edifício: meninos de pedra sustentam ingenuamente câmaras fotográficas e no frontão principal, esculpidos, exibem-se os retartos de duas figuras da história da fotografia: Niepce e Daguerre.

O palacete, mandado construir por carlos Relvas em 1878, tinha uma função precisa: albergar o atelier onde com um espírito autodidacta ele se dedicaria à maior paixão da sua vida: a fotografia. Edíficio típico dos finais do século XIX, a casa foi já comparada no aproveitamento do espaço a uma igreja com o seu transepto, as capelas laterais onde ficavam as cãmaras escuras e o telhado de madeira de duas àguas muito inclinadas, que origináriamente eram de vidro.

“A casa custou oitenta mil escudos”, revela Céu Oliveira responsável pelo museu. para dar ideia da exorbitância deste valor, adianta-nos uma comparação: a lotaria era então de catorze mil. “Carlos Relvas não se poupara a despesas não só no espaço interior como no involvente. onde sobressaem as palmeiras vindas de propósito da China e do Japão para ornamentar o jardim.

Apesar da pobreza actual do espaço interior, é possivel encontrar ainda sinais das suas pesquisas. Passado o pequeno labotatório de revelação logo á entrada, surge na sala seguinte um dos seus inventos a “multiplying camera”, como seria designada na América. O sistema consistia na oposição frontal à máquina fotográfica de uma prancheta transportando várias objectivas. Essa prancheta era móvel, rodando sobre um ponto central, como um diafragma rotativo, permitindo assim a mudança de objectiva e a sua substituição sem as morosas operações até então utilizadas. Apresentado em 1873 na Exposição de Viena de Áustria, o aperfeiçoamento que viria a ser comercializado valeu-lhe a concessão da medalha do progresso. “Ele teve ocasião de conhecer os melhores ateliers da Europa, dos mais distinguidos colegas e consultar os melhores mestres”, podia-se ler a 7 de Maio de 1876, num editorial do “Diário Ilustrado” que lhe era dedicado. Carlos Relvas viajou intensamente por toda a Europa, adquirindo o que de melhor havia em termos de equipamento e participando em inúmeros certames internacionais. Como companhia habitual, levava a filha Margarida, também ela fotógrafa amadora, com trabalhos expostos internacionalmente.

A sua última ida ao estrangeiro terá sido porventura em 189, acompanhado já da sua segunda mulher, D. Mariana Relvas, a quem facultou também os seus conhecimentos de fotografia. A ilustrar a viagem ficou uma colecção de 30 fototipos onde se retratam alguns dos locais visitados, como o Parque de Bolonha em Paris ou o Puerta del Sol em Madrid. De resto, ele seria o introdutor no nosso país dessa técnica - a fototípia, processo de impressão que o francês Poitevin havia pouco inventara. A ele se deve também introdução das técnicas de colódio e do sal de prata no país.

Percorrida a escada de caracol em madeira, vinda expressamnete de Inglaterra para o seu “atelier” da Golegã, chega-se ao amplo “atelier” onde trabalhava. Para além de “toda essa multidão de adornos destinados ao ensemble da produções ‘photographicas’, como diria José Martins, encontramos aí um exemplar de estereoscápio - processo em que a sobreposição de duas imagens dá à imagem um relevo quase animado. Ali, uma imagem da Praça dos Restauradores em pleno Carnaval de 1903 surge cheia de movimento como se o polícia, a multidão ou os equilibristas se estivessem a mexer.

Mas em Carlos Relvas o espírito inventivo não se esgota na fotografia. depois de presenciar um naufrágio, inventaria um colete e um barco salva-vidas, testados com êxito na Foz do Douro a 3 de Novembro de 1883. Para além disso, foi ainda cavaleiro tauromáquico, esgrimista, músico, jogador, sempre num fervoilhar de actividade. Politicamente foi monárquico convicto. Padrinho de baptizado do rei D. Carlos, foi fotógrafo da Casa Real, recebendo ainda a Ordem de Nossa Senhora da Conceição de Vila Viçosa.

Sorte na política,

azar na família

Do seu poder e orgulho se contam histórias, como a daquela vez em que fretou um comboio de forma a que um seu correligionário comerciante de carnes, que tivera de se deslocar ao Porto por motivo de negócios, conseguisse estar a tempo de uma votação na Golegã. Com a sua influência, conseguiu que a comarca, até aí com sede na Chamusca, passasse à Golegã.

Mas se a história política e cultural lhe sorriu, o infortúnio marcou-lhe a vida familiar. Casado com D. Margarida, filha dos Condes de Podentes, família rica e ilustre da Beira Alta, teria cinco filhos. Liberata morreu aos dez meses; Francisco foi encontrado morto perto do Entroncamento - tinha 18 anos; Clementina enloqueceu - morreria a pedir esmola em Lisboa. restou Margarida, que viria a ter três filhos e viver perto da Golegã, na quinta dos Pinheiros, e José. Margarida Relvas, sua mulher, tanto quanto se sabe, morreria de desgosto, em 1887.

José Relvas, com a juventude ateada por um lado pelas ideias das Conferências do Casino e da Questão Coimbrã, viria a seguir a tradição liberal de alguns familiares: uma quarta avó vítima do miguelismo ou o avô materno liberal e par do reino. Tomando a direcção da casa agrícola num momento em que as suas dívidas se acumulavam, a sua experiência de gestão duraria até 1892. carlos Relvas morre em 1894.

A imprensa da época chama-lhe “ilustrado viticultor” e a fortuna que acumulou permitiu-lhe construir e rechear de forma valiosa o que será, porventura, o mais importante museu municipal do país: o Solar dos Patudos, em Alpiarça, construído segundo um projecto de Raul Lino.

Republicano convicto, José Relvas herda, no entanto, do pai a criatividade e sensibilidade cultural. À actividade de lavrador junta a política e a paixão de músico e coleccionador. No Solar dos Patudos, inicia-se então uma tertúlia onde figuras ilustres como Malhoa e Rafael Bordalo Pinheiro eram presença frequente.

Ali mantinha Relvas uma orquestra de amigos, onde tocava violino. regularmente escrevia sobre música na “Arte Musical”, tendo sido também fundador da Academia de amadores de Música e da Sociedade de Música de Câmara. Mas nos Patudos viria a reafirmar-se o trágico destino da família: os seus filhos João e Luísa morrem aos nove anos de febre tifóide; o seu filho Carlos suicida-se aos 25.

Após a morte do filho e uma curta passagem pela chefia do Governo, José Relvas desiludido da vida política refugia-se em alpiarça. No final da vida, passava os dias deambulando pela casa apreciando as obras de arte que laboriosamente reunira.

Uma colecção de pintura com cerca de 500 obras, onde se inclui um original de Leonardo da Vinci - “A Virgem, O Menino e S. João” - bem como um retrato de Scarlatti, compositor italiano do século XVIII. “Tem sido a nossa melhor fonte de receitas”, explica José António Falcão, actual conservador, referindo-se ao facto do quadro ser um dos poucos retratos do compositor, tendo de pagar direitos de utilização ao museu cada vez que a imagem é utilizada na capa de um CD.

Um quadro-retrato de Filipe V de Espanha, dado como desaparecido no Museu do Prado, reapareceu nos Patudos: tinha sido adquirido por José Relvas enquanto embaixador em Espanha. na colecção incluem-se diversas obras de Silva Porto, Columbano ou Malhoa.

Da casa ressalta também a preocupação de reconciliação com o pai, com quem teve alguns conflitos em vida. Uma sala é-lhe dedicada, surgindo aí, entre outros objectos, um retrato de Carlos Relvas montando o “Salero”, seu cavalo preferido e duas selas “à Carlos Relvas”, bordadas a veludo e guarnecidas em prata.

Uma rica colecção de azulejos com mais de 60 padrões nunca antes encontrados ou a única tapeçaria de Arraiolos tecida em seda são outras peças em destaque num espólio de cerca de 80 mil oblectos.

Mas sobre esta casa, o Solar dos Relvas, recai ainda, salienta António José Falcão, uma certa aura de mistério. Conforme conta, o piano em que o filho de Relvas costumava tocar encontra-se até hoje encravado por ordem expressa do anfitrião da casa. Junto a ele, um retarto póstumo de Carlos Relvas, o filho, pintado por Columbano.

Até há pouco tempo e também por vontade expressa de José Relvas, permaneceram encerrados os aposentos onde o filho se suicidou. Quando foram abertos, ainda se encontrou tudo intacto, do pijama manchado de sangue ao tabuleiro do pequeno-almoço.

Pedro Miguel Ferreira

Público, 2 de Abril de 1995