BANDEIRA PORTUGUESA

A “GUERRA DAS BANDEIRAS”

DO AZUL-BRANCO AO VERDE-RUBRO

Nuno Severiano Teixeira

Depois da instauração da República, em 1910, o Primeiro de Dezembro, dia da Restauração, foi declarado dia da “festa da bandeira”. Mas, tal como o hino pode ser tema de controvérsia, a escolha da actual bandeira portuguesa deu origem a uma violenta polémica que mobilizou os intelectuais e a classe política e apaixonou a opinião pública nacional.

O significado de um símbolo abres-se sempre sobre o mesmo enigma - o mistério das suas origens. Não é diferente o simbolismo político. E, para compreender o significado da bandeira nacional, terá de desvendar-se a origem da sua simbólica, cuja chave reside mais na sua raiz política do que heráldica.

A bandeira portuguesa foi, durante a monarquia constitucional, a bandeira azul-branca, bipartida e encimada pelas armas reais.. Azul e branco eram já as cores nacionais desde a revolução liberal de 1820. Entre o vintismo e a contra-revolução, o simbolismo acompanha as vicissitudes da conjuntura política e o registo simbólico das cores vai-se inscrevendo em cada um dos campos em conflito: o branco em relação ao absolutismo, o azul-branco em relação ao constitucionalismo liberal. Triunfante em 1834, o liberalismo faz do azul-branco a bandeira nacional, que se manterá sem alteração durante toda a monarquia constitucional, até ao 5 de Outubro de 1910.

Como se chega então à bandeira verde-rubra da República, que é hoje a nossa? Qual a sua origem? Qual o seu significado?

Das origens ao verde-rubro

Uma genealogia do cromatismo verde-rubro na história das bandeiras portuguesas revela-nos um fenómeno, no mínimo interessante: sem que nunca tenha constituído a bandeira nacional, o cromatismo verde-rubro esteve associado a acontecimentos altos da história portuguesa de que se fez um símbolo: a Guerra da Independência, as Descobertas Marítimas, a Restauração. Verde e vermelho era o pendão da ala dos namorados na Batalha de Aljubarrrota; verde e vermelha foi a bandeira das naus dos descobrimentos durante o reinado de D. Manuel I; verde e vermelha seria a bandeira dos conjurados do 1º de Dezembro de 1640.

Não há, todavia uma continuidade entre estes primeiros símbolos e a bandeira republicana. O antecedente directo, se o quisermos, teremos de o procurar bem mais tarde, já nos finais do século XIX, na revolta de 31 de Janeiro. É verde e vermelha, de facto a bandeira içada pelos revoltosos na Câmara Municipal do Porto na manhã de 31 de Janeiro de 1891. Totalmente vermelha, com um círculo verde ao centro, a que se junta a legenda referente ao centro republicano a que se pertencia - Centro Democrático Federal 15 de Novembro. Esta bandeira é na sua essência simbólica, a bandeira da tradição democrática, republicana e socialista, hasteada em Paris, nas jornadas revolucionárias de 1848 e durante a Comuna de 1870. Sobre o fundo vermelho, símbolo da tradição política, inscrevem-se depois as insígnias e legendas dos clubes a que pertencem, como a da revolta de 31 de Janeiro.

O certo é que a primeira bandeira da República desfraldada em Portugal foi aquela verde e vermelha. E, malograda a revolução, a bandeira verde-rubra torna-se para os republicanos o símbolo inesquecível de uma República efémera e por ora vencida, mas que 20 anos de luta haverão de restaurar. E, ao longo dos 20 anos de luta da propaganda republicana, a simbólica verde-rubra do 31 de janeiro inscreve-se profunda e definitivamente no ideal da República. Quando chega a jornada revolucionária de 3 a 5 de Outubro de 1910, será verde-rubra a bandeira de Machado Santos na Rotunda, a qual vitoriosa a revolução substitui a bandeira azul-branca no alto do Castelo de S. Jorge.

Do azul-branco ao verde-rubro

Implantada a República, o Governo provisório, consciente da importância da simbólica na política, apressa-se a constituir a imagem do novo regime, isto é a determinar os símbolos em torno dos quais se poderá fazer a unidade nacional. A par dos problemas políticos mais urgentes, uma das prioridades é a questão dos símbolos nacionais. Por decreto de 15 de Outubro, é criada uma comissão “ad hoc” para a questão da bandeira e do hino nacionais, constituída por cinco personagens públicas da vida portuguesa de então. o pintor Columbano, o romancista Abel Botelho, o republicano João Chagas e dois destacados combatentes da revolução de 5 de Outubro, Ladislau Pereira e Afonso Palla. Em pouco tempo, a comissão apresenta o seu projecto de bandeira, que, após ligeiras alterações, é aprovado no conselho de ministro de 6 de Novembro. Estava encontrada a nova bandeira portuguesa. De imediato e antes mesmo que possa ser aprovada pela Assembleia Constituinte, o Governo decreta o 1º de Dezembro, data histórica da Restauração, dia da “festa da bandeira”. Será a primeira festa cívica do novo regime e a sua primeira liturgia de consagração política. Mas a escolha da bandeira verde-rubra e a sua consagração imediata, quando a decisão não era de modo algum pacífica e, sobretudo, sem que tenha sido sancionada pela Assembleia Constituinte, levanta uma violenta polémica que move os intelectuais e a classe política e apaixona a opinião pública nacional. Os partidários do azul-branco propõem mesmo um plebiscito.

A polémica polariza-se em torno de duas questões: uma, de primeira ordem, a das cores azul-branco ou verde-rubro; outra, menos acesa a das “armas”, em torno da esfera armilar e outras insígnias. Em defesa do verde-rubro manifesta-se a comissão, acompanhada por algumas das figuras mais destacadas do republicanismo, de Afonso Costa a António José de Almeida, passando pelo próprio presidente do Governo provisório, Teófilo Braga. a defesa do azul-branco é encabeçada pela figura não menos prestigiosa do poeta Guerra Junqueiro, acompanhado, entre outros, por Sampaio Bruno e Lopes de Mendonça.

De entre a totalidade dos projectos de bandeira então apresentados poder-se-á, segundo um critério cromático, determinar três tipologias distintas: uma verde-rubra; outra azul-branca; e uma terceira de conciliação. Mas que argumentos invocam as diferentes posições em favor das suas escolhas, numa palavra, que legitimidade reclamam para as suas bandeiras?

O verde-rubro: “Aquele que for pela bandeira azul-branca é um monárquico, um verdadeiro talassa!”

A comissão considera a cor como o elemento principal e, no que diz respeito à cor, o branco uma cor que se identifica coma alma portuguesa e, além disso, que figurou sempre na bandeira nacional. Ao azul, pelo contrário, não reconhece qualquer relação com a história ou a tradição nacionais. Surge apenas, em 1830 e, pior do que isso, chama à bandeira nacional o culto católico de Nossa Senhora da Conceição e está indissociavelmente ligado às “corruptas blandícias e suaves torpezas da dinastia de Bragança”. Com o vermelho tudo é diferente. Não só invoca a alma nacional e as “manifestações de lusa nacionalidade”, como tem longa tradição na história das bandeiras portuguesas. O verde sim, não tem essas raízes, mas foi uma das cores da revolução. As cores da bandeira deverão, por isso, ser o verde e o vermelho. Quanto às armas, será a esfera armilar, símbolo dos descobrimentos, e o escudo das quinas, símbolo da fundação da nacionalidade.

O azul-branco: “O fundo da alma portuguesa, visto com os olhos é azul e branco!”

Guerra Junqueiro foi, sem dúvida, o grande tribuno da bandeira azul-branca. Também para ele as cores deverão ser o símbolo da alma nacional, assim como as armas deverão sintetizar a história pátria. É partindo deste princípio e no tom poético que o caracteriza que defende o azul-branco: o branco é “candura, pureza, virtude sem-mancha”; o azul “serenidade, bondade, graça ingénua, alegria cândida”; o ouro é “glória, vitória, triunfo, êxtase e apoteose”. E defende assim o seu projecto: “Expulsa a realeza, caiu da bandeira inerte o diadema real. Só o diadema? - pergunta - E as cores? O azul-branco não se evolaram também?” Ao que responde prontamente: “Não. o campo azul e branco permanece indelével, é o firmamento, o mar... o sonho dos nossos olhos, o êxtase eterno das nossas almas...” Os castelos continuam de pé, inabaláveis de ouro e de glória, num fundo de sangue generoso...” “A coroa do rei, coroa de vergonhas, já não o envilece... No brazão dos sete castelos e das cinco quinas, erga-se de novo a esfera armilar da nossa glória...”

A conciliação: “O branco e o vermelho, o verde e o azul, brilhando amigamente em pavilhão taful...”

São inúmeros os projectos de conciliação com diferentes “nuances”, ora mais azul-branco, ora mais verde-rubro. O major Santos Ferreira, autoridade reconhecida em matéria de heráldica, defende então uma tese, que confere legitimidade aos projectos de conciliação. O azul-branco, sustenta Santos Ferreira, não são cores da monarquia. São as cores da monarquia. São as cores da fundação da nacionalidade e simultaneamente de reivindicação democrática da revolução liberal de 1820. São as cores da Nacionalidade e da Liberdade. Por outro lado “verde e vermelho são as cores da jornada gloriosa de 4 e 5 de Outubro” Esta dupla constatação fundamenta a sua proposta: “Conservemos a antiga bandeira Azul-branca, não só porque representa para nós a independência afirmada de oito séculos... mas ainda, principalmente, porque representa o heróico esforço... para a conquista da liberdade... E às cores verde e vermelhas, símbolos do epílogo dessa gloriosa e longa jornada iniciada em 1820, demos um lugar honroso nessa mesma bandeira.”

Está legitimada a conciliação de duas simbólicas e os projectos multiplicam-se e são tantos que merecem mesmo a paródia de um projecto síntese: “Projecto nacional de conciliação para todos os paladares”.

Esta longa e acesa polémica não tem resultado,. O Governo provisório, por princípio ou por receio, nunca aceita o plebiscito e a Assembleia Nacional Constituinte, na sua sessão de abertura, ao mesmo tempo que decreta a abolição da monarquia, sanciona o projecto verde-rubro da comissão para a bandeira nacional. Está definitivamente consagrada a nova bandeira portuguesa.

A simbólica: entre o significado manifesto e o significado latente

Qual é o verdadeiro significado da bandeira verde-rubra? Será a o das cores correspondentes à alma nacional, ou das armas que evocam a memória heróica dos grandes feitos? Será o significado, aviltado pela vulgata, do verde da esperança e do vermelho do sangue dos heróis? De facto, se procurarmos sobre o discurso de legitimidade nacional, invocado para justificar o cromastismo verde-rubro, encontramos um discurso outro, cujo registo de legitimidade se encontra não tanto ao nível das razões nacionais, mas sim da tradição republicana. A vitória da bandeira verde-rubra significava a vitória da ala mais jacobina do republicanismo e consagrava integralmente os princípios da propaganda republicana.

Na simbólica da bandeira poder-se-á dizer que as cores são o elemento de continuidade histórica. Ambos, porém, totalmente, conformes com os princípios republicanos. Ao banir o azul-branco, a bandeira da República bania, de um só golpe, a marca simbólica da “monarquia corrupta de Bragança” e a alusão ao culto católico da padroeira, no respeito pela tradição antimonárquica e anticlerical do republicanismo mais radical. O vermelho herdado da bandeira do 31 de janeiro é a cor das revoltas populares de 1848 e 1870, marca indelével da matriz política democrática da tradição republicana. O verde herdado das bandeiras de 31 de Janeiro e 5 de Outubro é a cor destinada por Augusto Comte aos “pavilhões das nações positivas do futuro”, marcando assim a matriz ideológica positivista do republicanismo. O escudo das quinas e a esfera armilar evocam dois momentos altos que o republicanismo opunha à decadência do monarquismo constitucional - a fundação da nacionalidade e a epopeia marítima - , deixando assim o traço nacionalista e colonial da ideologia republicana. a bandeira verde-rubra, antes de ser bandeira nacional, é essencialmente a bandeira da República.

Em busca da legitimidade

Durante a monarquia, a bandeira dos estados era o estandarte da casa real. a bandeira era o símbolo da terra e do povo na medida em que o era do seu soberano. A bandeira nacional era a bandeira da dinastia reinante e a usa legitimidade era até então uma legitimidade dinástica. A república afasta em definitivo a legitimidade dinástica. Contudo, a bandeira verde-rubra não tem ainda uma legitimidade nacional. Nem todos os portugueses se reconhecem na bandeira nacional. E não só os monárquicos como boa parte dos republicanos, como demonstrou a grande polémica. É que a simbólica verde-rubra comportava uma carga fortemente republicana e estava indissociavelmente ligada ao regime. A legitimidade da bandeira republicana era uma legitimidade essencialmente política. Só tempo e, sobretudo, a travessia das vicissitudes políticas do próprio regime, que se vão inscrevendo na memória colectiva, vão conferindo á bandeira nacional uma legitimidade nacional. Mas, mais do que tudo isso, é o episódio militar da Grande Guerra, onde se defendem, sob a bandeira verde-rubra, os destinos portugueses na Flandres e a integridade do território colonial em África, que lhe confere a conotação nacional. Na memória colectiva, Naulila e La Lys vêm juntar-se à já longa genealogia da gesta heróica dos portugueses e, assim, recuperar o passado, legitimando o presente. A passagem do tempo e dos regimes - a Ditadura Militar, o Estado Novo, o 25 de Abril - sempre sob o mesmo símbolo, desenvolve uma relação de identidade entre a imagem da República e a imagem da Pátria, que tendem a confundir-se no imaginário político nacional. É ao fim deste longo e complexo processo que a bandeira republicana ganha a legitimidade verdadeiramente nacional que é hoje a sua.

Suplemento “Fim-de-semana”, do Jornal “Público”, de 30 de Novembro de 1990