LISBOA - CIDADE UTÓPICA

A cidade utópica de Fialho de Almeida

Ligar por meio de viadutos, S. Pedro de Alcântara, e este à Graça ou ao Castelo, construir aqui um palácio de diversões, transferir a Lisboa do comércio e da indústria para a Outra banda, são algumas das ideias que Fialho de Almeida defendeu numa série de artigos subordinados à ideia duma “Lisboa Monumental, publicada em 1906 na Ilustração portuguesa. Onde também se advogava a demolição dos bairros antigos como Alfama.

Começar a monumentalizar Lisboa, começa-o Fialho pelo hoje “Marquês”, o que viria a ser a “Rotunda” do imaginário republicano, designação hoje confinda aos cachafundos da estação do metro. Para ela reserva o nosso autor o papel de “coração da Lisboa nova, da Lisboa do período cooperativista e colectivista”. E acrescenta: “Essa praça devia ser o Terreiro do paço socialista, duma Lisboa socialista, o coração proposital da nova vida cívica...”

E Fialho desce ao pormenor descritivo: “Nos quatro pontos cardeais, palácios de cúpulas, torres, colunatas, que escusavam de ser imensos, e seriam construídos pelas associações para sua sede”. Talvez porque era médico - embora não exercendo a profissão, para bem da humanidade - começa assim a enumeração das sedes das associações: “A das Ciências médicas, a dos médicos portugueses, e dos farmacêuticos, e dos enfermeiros, e das parteiras, num grupo; a Industrial, a Comercial, a dos Lojistas, noutro grupo...logo os intervalos ou bandeletas no círculo, preenchidos por palácios de comícios, exposições de pintura, produtos agrícolas, industriais, coloniais, conferencias, concertos - e no que sobrasse, residências privadas...”

Ainda na Avenida (da Liberdade), fazer no Salitre a ligação com a Praça do Príncipe Real, por meio duma alameda, “através dos jardins da Politécnica (hoje Faculdade de Ciências) uma saída rica e aristocrática, por onde as carruagens subissem e descessem, sob as árvores ligadas dos dois parques ( o actual parque Mayer e o Jardim Botânico a que se fabricaria, sobre a Avenida, a sua entrada de estilo grille, e um hemiciclo de estátuas ou colunas, onde muito bem podiam estar Brotero e Garcia da Horta, por exemplo...”

Uma outra ideia, já ventilada e defendida por Miguel Pais, um quarto de século antes, consistia na tentativa de aplanar Lisboa, através de viadutos (Miguel Pais propunha também túneis) que ligassem os cumes das colinas lisboetas: as pontes de s. Pedro de Alcântara ao Campo de Santana, por cima da Avenida, e a de Santana á Graça ou ao Castelo, por sobre a Rua da Palma”.

Depois de lamentar o arranjo da praça Saldanha (“cheia de casarões e cubatas imbecis, com um jazigo bacoco ao centro”), propõe um arco grandioso para o local em que a Avenida Ressano Garcia (hoje da República) toca o campo Grande: nesse ponto “dizia bem um arco do triunfo ou um grande hemiciclo de estátuas e cascatas, por cujas pontas as carruagens curvejassem, deixando um salon no recôncavo, para terasse de restaurantes e de cafés, e que ao mesmo tempo servisse de palco ou fundo sobre que fazer convergir as ruas do parque, e destacar perspectivas de maciços”.

Já para a avenida da Índia - que estende de Algés a Santa Apolónia - Fialho destina-lhe “estátuas de todos os heróis das descobertas e conquistas... galeria de ancestros ciclópicos, ferrabrazes lendários”. Estátuas também para a Avenida da Liberdade, mas “só monumentos pequenos de busto e sócio” representando “todos os modernos imortalóides da vida burguesa”, todos os heróis vegetes da recente epopeia ultramarina todas as celebridades minúsculas... - filantropos, políticos, comediantes, poetas, pintores, iróizes de África, almirantes de lanchas-canhoneiras...”

Igualmente o Cais das Colunas e o Terreiro do Paço merecem a Fialho num projecto de monumentalidade: Em toda a muralha e rampados do embarcadoiro que lá vemos (...) balaustradas (...) correriam por todos os rebordos, seguindo os muros parapeitos, bordando as rampas das escadas laterais e plano inclinado central, e essas balaustradas interrompidas em pontos simétricos por maciços pilares empoleirados de estátuas colossais, sentadas e agrupadas, ao gosto dos rios da Avenida, ou dos grupos alegóricos do pedestal da estátua de D. José - e que alternariam com outras, sustentando, em lanços de bronze, gigantescos faróis de electricidade ou gás” - e vá de distribuir pelo novo Cais das Colunas elefantes, cavalos, vitórias trombeteando, leões e centauros...

O espectáculo dos suicídios

E - aqui sim, aqui Fialho acerta em cheio - propõe-se também dar vida e animação ao Terreiro do paço: “O recinto iluminado e magnifico de obras de arte, a praça com mais luz e autorizada uma tenda e terrasses para cervejar e sorvetear nos meses de calor, aí tornaria o lisboeta a tomar fresco, pelas noites e tarde, nesse Terreiro do paço, famoso outrora, em tempos de D. Maria I e D. José, quando era moda fazer a laje...”

Voltando ainda aos viadutos, Fialho extasiava-se com a perspectiva: “Percorrer em manhãs e tardes essa Avenida a 80 metros do solo, bordada de passeios e refúgios suspensos sobre mísulas, vendo por baixo ferver a bicharia dos bairros pobres, a Avenida estender-se em regueiros brancos e verdes, de asfalto e folhas de árvores, na estonteação do ar livre, com horizontes de voo de águia, seria um destes prazeres sibaríticos que os cogitadores de quimeras agradeceriam a Deus, como antevisão do paraíso dos maduros. Que vagabundagens por ali, nas noites quentes, perorando no ar pulcro, sobre a madorna bronca do burgo, as velhas que fazem chispar o olhito rugoso, de papagaio, de D. Gualdim!

E deixe o leitor que interrompa as “lunatices” de Fialho, para lhe dizer que este “D. Gualdim” há-de ser Gualdino Gomes, companheiro de boémia do nosso autor e de outras figuras de fim do século. Um Gualdino, literato improdutivo, que ouviu uma vez de Fialho esta tirada: “as tuas obras, bem sei... Vinte e cinco cartas a vinte e cinco amigos a pedir vinte e cinco tostões emprestados...” Gualdino este que não era melhor língua que o nosso alentejano e, tendo Fialho casado tarde e rico, um dia lhe atirou: “Ó Fialho, que horas tens no relógio do teu sogro?”

Votemos aos viadutos de Fialho, que não hesita em apontar esta como uma vantagem dos mesmos: “Que curvejos de quedas de ali abaixo, quando ás aproches da canícula estuga o suicídio os cérebros, a pretexto duma firma imitada numa letra, ou dum monsieur topado na cova conjugal, em suspensórios!”

a maior bizarria desta monumental Lisboa visionada por Fialho talvez seja ainda a ideia de construir um palácio no Castelo de S. Jorge - “alguma coisa ofuscante, assim como um gigantesco solar de policromias e de rendas, ferro e cobre dourado, faiança e mármore branco, o que quer fosse da cabeça desta cidade imensa de colinas, desta rainha deitada em que tudo são ombros e joelhos, por falta duma coroa heráldica que sobre um morro clássico altivamente a sagre e lhe dê brilho.

E o tal palácio para quê?

Ora: “Roleta, mulheres, circos de Verão, teatrofones, música clássica, atlética, mascaradas, festas de carácter pitoresco e popular, tudo isto poderia incluir-se num Yoshiwhara feérico e colossal, casino e circo, biblioteca e restaurante, velódromo e frontão, hall de concertos e teatro de ópera, nesse recinto do chamado Castelo de S. Jorge, adentro da cinta de muros onde foi outrora o rouqueiro da cidade (e isto sem lhe bulir nas pedras históricas) e hoje gorgulha uma infecta caserna de soldados.”

Demolir Alfama

Arranjar também os cais de Lisboa, outra das preocupações de Fialho, recorrendo para isso aos terrenos da Outra banda: “Acumular(,,,) na outra margem a Lisboa comercial e febril, de grande labuta e grande tráfego, ir para essa margem empurrando à formiga muitas industriais que por Alcântara e Poço do Bispo funcionam no meio de bairros, por elas infectados; desobstruir, por uma gradual e lenta transferência, a beira-mar de Lisboa velha, dos hangares, barracões e feios depósitos de mercadorias que ali se juntam, vedando ao lisboeta de gema a margem do seu Tejo...”

Finalmente , Fialho retoma ideia já antiga, que um homem do ofício, u, engenheiro Miguel Pais (entre outros) previra. a construção duma ponte ligando as duas margens do Tejo. Neste aspecto ignoro quais terão sido as reacções á proposta ( que o próprio ainda não considerava urgente) de Fialho. Recordo aqui uma reacção à proposta de Miguel pais da construção duma ponte entre o Grilo e Montijo: “Tu estás doido? Pretendes atravessar o Tejo com uma ponte de mais de uma légua! Se continuas com essa mania vais decerto parar a Rilhafoles!”

Deixemos Miguel pais e terminemos, agora sim, com outra ideia de Falho hiegenista, ideia corrente na época, e que os deuses ajuizados não quiseram que fosse para a frente. aqui vai ela e que o tal engenheiro nos não ouça: “É minha opinião, e a de todos os médicos que rigorosamente tem escoldrinhado a insalubridade irreparável daquele verdadeiro monturo medieval, que o bairro de Alfama, como o do castelo, Santa Apolónia, Mouraria, etc., devem ser por completo arrasados e defeitos pois, sem essa destruição, impossível se faz estancar tantos sinistros focos da patogenia completo que os distingue...” e por aí adiante...

Francisco António Almeida

Expresso, 27 de Junho de 1987