COIMBRA

s.f. Manto fino e rendado com que as mulheres cobrem a cabeça.dicionário online de português

A mantilha e o seu uso em Coimbra

Num estudo publicado pela revista “Munda”, do Grupo de Arqueologia e arte do Centro, o dr. Nélson Correia Borges investigou o uso da mantilha, pelas mulheres de Coimbra.

É nesse contributo para a divulgação de tão interessante peça de vestuário feminino, que “bem poderia assumir os foros de trajo tradicional, com variantes regionais, tão característica de uma Coimbra desaparecida, hoje preguiçosamente cristalizada no que toca ao seu trajo típico, numa imagem estereotipada de de bilhete postal de 1900”, que aqui damos a conhecer, parcialmente.

“Ai! Eu ainda conheci mulheres formosas de mantilha. A graça com que elas apanhavam e refegavam na cintura! Como as nalgas se revelavam redondas debaixo do lapim! E o bamboar dos cabelos anelados sob o dossel negro e arqueado da coca!”

Camilo Castelo Branco

A mantilha de que vamos tratar nada tem que ver com a mantilha de rendas, de origem espanhola, que se destinava exclusivamente a cobrir a cabeça da mulher, e era usada sobretudo para ir à igreja até não há muitos anos. esta peça de vestuário, embora já desaparecida, é relativamente recente, uma vez que não foi introduzida em Portugal senão depois de 1900, trazida pelos vendedores ambulantes galegos, que a divulgaram de terra em terra.

Referimo-nos sim a uma peça de trajo feminino, de uso muito antigo entre nós, espécie de manto ou capa com alguma roda, que descia até abaixo do joelho ou mesmo até ao tornozelo, apresentando em cima como que arco, armado em papelão - a coca -, de forma variável, para abrigo da cabeça. O tecido utilizado era baeta, o durante, o camelão, o lapim, o “pano fino”, ou mesmo a seda, em geral preto, mais raramente na cor de pinhão ou roxa. Normalmente a mantilha era debruada com uma tarja de veludo, liso ou lavrado, da mesma cor do tecido, e não tinha colchetes nem botões; fechavam-na com a mão á frente.

Trata-se, pois, de um resguardo corporal do mesmo género da capoteira, capa, capote, capucha, capelo, mantéu ou bioco, com que por vezes se confunde, mas dos quais se aparta facilmente. As designações variavam de terra para terra, já que também variavam as formas.

RESTRIÇÕES AO USO

Parece-nos estar em presença de um costume peninsular antiquíssimo, já notado por Estrabão, que conseguiu sobreviver até ao século passado, tendo resistido um pouco mais nos locais afastados dos grandes centros. De facto, embora noutras latitudes se possam apontar exemplos semelhantes, é em Portugal e Espanha que o seu uso foi generalizado e se enriqueceu através de diversificações regionais.

No século XVII devem ter surgido abusos a que este modo de trajar facilmente dava aso, pelo que, em 1644 foi decretado que “nenhuma mulher andasse embuçada em Lisboa com penas graves e se executão, posto que se não esteideo pello mais Reyno”.

No resto do País, porém, a mantilha continuou a ser usada com honra e proveito da mulher portuguesa. Era peça de roupa muito estimada e, como tal doada ou legada em testamento. Assim acontecia um pouco por toda a parte, onde, por meados do século XVIII, segundo cremos, se processou a sua regionalização e consequente diferenciação.

Em investigação de arquivo a que temos procedido com finalidade diversa, encontrámos, ocasionalmente, referências à mantilha em Coimbra e na sua região, desde o século XVI.

Que a mantilha foi trajo muito do agrado da mulher de Coimbra, não restam dúvidas. Cidade de cunho predominantemente eclesiástico, onde os colégios e conventos se topavam a cada esquina, não admira que a mantilha fosse o correspondente feminino desse modo de trajar. Ao contrário da sua congénere de outros pontos do País, a mantilha coimbrã soube criar um centro de atenção no rosto da portadora, com uma coca que hoje nos parece espectacular.

Conhecêmo-la de gravuras e da descrição de alguns dos seus detractores.

PARA VER-A-DEUS

É a coca que verdadeiramente distingue e define a mantilha de Coimbra, só encontrando rivais na do Porto, Viseu e Braga que não lhe ficam atrás na singularidade. Estamos em crer que o desenvolvimento do tamanho da coca foi consequência dos toucados, por vezes muito elaborados, em moda, sobretudo, na última metade do século XVIII.

A que se deve o êxito desta peça de vestuário feminino, cujo uso tantos remoques e mesmo protestos levantava?

A mantilha, além de prática - punha-se sobre os ombros, fechava-se à frente com a mão -, tornava-se bastante económica, pois evitava a exibição de vestuários luxuosos. No fundo, o seu uso estava dentro do espírito das numerosas pragmáticas que os soberanos portugueses foram tentando controlar o vestir dos súbditos. Toda a mulher que precisasse de sair de casa imprevistamente não tinha mais do que embrulhar na mantilha, sem grandes preocupações, e seguir... Uma vez na rua podia girar sozinha, quase incógnita, sem ser estranhada, nem desrespeitada.

Mas a glória da mantilha era nas visitas de cerimónia e para ver-a-Deus, sendo, por último, só usada com finalidade religiosa. A mantilha nunca se tirava e, quando em visitas, só a pedido e a título de demora e de intimidade era deixada na sala de entrada. Ordinariamente quando as senhoras conversavam, a coca deixava-se cair para trás e na rua, a ponta podia ser puxada para a frente até tapar quase todo o rosto, se a mulher assim o desejasse.

Triste fim o da mantilha! Não foram apenas as modas novas, vindas de França, que lhe cavaram a sepultura! Nem os abusos praticados a coberto da sua sobra, em geral por quem se apropriava dela para actos menos lícitos. Por todo o lado era ridicularizada. certos elementos do sexo masculino não lhe poupavam as piadas, nem as perseguições. Não lhe perdoavam o “escape” que ela proporcionava à mulher. “Galinhas chocas!” - Assim chamavam ás embuçadas. Em Faro, o movimento consubstanciou-se mesmo numa proibição do uso do bioco, decretada pelo governador civil. Incapaz de resistir mais, a mantilha foi morrendo aos poucos com as últimas donas, apegadas ao seu jeito e discrição, como as senhoras de S. de Coimbra. Restavam as capoteiras, usadas teimosamente até ao fim do século, e elas próprias condenadas pela popularização cada vez maior do Xaile.

As mantilhas eram como um testamento de uma época arcaica de usos patriarcais e freiráticos, que a nova mentalidade romântica e liberal queria banir, época em, afinal, também muito haveria de positivo, ou pelo menos, genuinamente nosso, porque gerado na cultura pátria, tal como a portuguessísima mantilha.

EXPRESSO, 23/5/85