PERO DA COVILHÃ

Começou pela Índia e acabou na Etiópia, onde o foram encontrar rico e carregado de filhos. Chamava-se Pero da Covilhã e é bem o protótipo do aventureiro, uma raça comum no século XVI português.

Pero da Covilhã um português das arábias

á quinhentos anos, mais dia menos dia, foi ele o primeiro português a por os pés em terras da Índia. Calcorreará, em seguida, demoradamente, as costas do oceano Índico e do mar Vermelho e conhecerá a bordo dos navios muçulmanos, as grandes rotas comerciais do Levante. Acabará por fixar-se na Etiópia, onde, várias décadas depois, outros portugueses irão encontrá-lo rico de corpo e lúcido de espírito. Chamava-se Pero da Covilhã e é bem o protótipo do aventureiro, uma raça que virá a ser comum no século XVI português.

Movidos frequentemente por razões obscuras, a ganância ou a marginalidade, mas também muitas vezes por simples espírito de aventura, estes corajosos andarilhos não hesitam em desafiar os ambientes mais hostis e revelam quase sempre uma prodigiosa capacidade mimética, integrando-se sem problemas de maior em culturas que lhes são completamente estranhas.

A esta família pertenceram, para além de Fernão Mendes Pinto (o mais conhecido), os inúmeros lançados ou tangos-maos que se embrenharam pelo interior africano, muitos deles “cafrelizando-se” em seguida, os soldados e mercadores que foram fixar-se nos pontos mais remotos da Ásia, os marinheiros que apareciam entre as tripulações dos barcos piratas nos mares da China, os primeiros exploradores do Brasil, um dos quais atingirá por terra o Império Inca (uma história que fica para outra ocasião). E claro, Pero da Covilhã.

Em demanda de Preste João

Um momento pode alterar por vezes toda uma vida. a de Pero da Covilhã mudou irremediavelmente no dia em que D. João II o encarregou, assim como a Afonso de Paiva, de uma missão altamente sigilosa: “Lhe haverem ambos de ir descobrir e saber do Preste João e onde se acham a canela e outras especiarias que daquelas partes (as Índias orientais) vão a Veneza por terras de Mouros”. as palavras são do padre Francisco Álvares que, na Verdadeira Informação das Terras do Preste João das Índias (1540) nos dá o melhor relato da aventura de Pero da Covilhã.

Sobre este relato construiu o Conde de Ficalho no seu belo livro Viagens de Pero da Covilhã que continua a ser o único estudo aprofundado sobre o aventureiro ( a 1º edição, raríssima, é de 1898, mas há reedição recente da Imprensa nacional).

A referida iniciativa de D. João II insere-se numa conjuntura particularmente importante da política de exploração marítima. O objectivo central é então atingir índia, contornando o continente africano, e, para a concretização desse propósito, partem de Lisboa, em 1487, duas expedições decisivas.

Por mar, Bartolomeu Dias deve continuar as viagens de Diogo Cão, avançar ao longo da costa ocidental de África e ultrapassar se possível (como de facto veio a acontecer, o seu extremo meridional. Por terra, em direcção ao mar Vermelho e até ao Índico, partem Pero da Covilhã e Afonso de Paiva, seguindo as vias tradicionais dos mercadores mediterrânicos. como foi dito, perseguem um duplo objectivo.

Por um lado, devem visitar e trazer notícias do Preste João, um grande e imaginário potentado cristão cujo reino os mapas fixavam já na actual Etiópia mas dilatavam para Sul (quase atingindo Sofala) e para Ocidente (até às proximidades do Golfo da Guiné). Por outro lado, deviam estudar no Oceano Índico as rotas das especiarias, nomeadamente as ligações entre a Índia e a costa oriental africana.

Para levar a bom termo essa missão em terras do Oriente, um dos atributos fundamentais era o bom conhecimento da língua árabe, Afonso de Paiva e Pero da Covilhã tinham-no.

De Afonso de Paiva sabe-se muito pouco, para além de que era escudeiro e natural de Castelo Branco. Aliás, a morte depressa vai afastá-lo como protagonista desta história. De Pero da Covilhã sabemos um pouco mais e o seu currículo mostra-o como o homem certo para a função que lhe era cometida, embora, ao ser contactado, tenha respondido ao rei que “lhe pesava por sua suficiência não ser tanta quantos eram seus desejos para servir sua Alteza, mas que aceitava a ida com leda vontade”. Falsas modéstias e mal disfarçado desejo de aventura!

Moço de esporas e espião

Pero (ou Pedro) da Covilhã nasceu por volta de 1450 e, tudo leva a crer, na cidade de que colheu o nome. Devia ser de origem modesta, como o mostra o facto de ter como apelido um topónimo, situação comum entre gente comum, em vez do esperado patronímico.

Ainda adolescente, foi para Sevilha, onde, durante seis ou sete anos, serviu em casa do duque de Medina Sidónia. na bela cidade de Guadalquivir, então ainda mais penetrada da memória muçulmana, deve ter aprendido não só os segredos da vida como também alargado o seu património linguístico, passando a dominar o castelhano e o arábico.

regressado a Portugal, entrou ao serviço de D. Afonso V, na situação medíocre de “moço de esporas”. Depressa, porem será promovido a escudeiro, que era então, já grau de nobreza. ao lado de Afonso V, Pero da Covilhã deve ter participado na batalha de Toro, em que começam a cair por terra os sonhos de unificação das coroas portuguesas e castelhana alimentados por aquele monarca.

Meses depois volta a acompanhar o rei na sua infeliz viagem a França, em que a procura de auxílio para os seus projectos peninsulares embate na total indiferença do soberano francês. Para Covilhã, porém foi uma imersão importante na política europeia. Em 1481, por morte de D. Afonso V, o escudeiro passou para o serviço de D. João II, o qual vai, como é sabido, tentar uma modernização do estado, disciplinando a nobreza e reforçando o poder real. Tais tentações são, obviamente, mal recebidas pela alta nobreza que, em desespero de causa, organizará uma conspiração, provavelmente com o apoio de Castela, destinada a eliminar o monarca. Informado a tempo, D. João II manda decapitar o chefe da conjura, o duque de Bragança, enquanto muitos nobres, directa ou indirectamente implicados, acham por bem procurar refúgio junto da corte castelhana. É aqui que Pero da Covilhã entra, de novo em cena,. O rei encarrega-o de uma missão difícil mas que mostra a boa conta em que o tinha: envia-o para Castela, como agente secreto, para que este o mantenha informado sobre as movimentações e propósitos dos nobres homiziados.

Não deve ter ficado muito tempo por terras castelhanas. rapidamente o vemos encarregue de duas missões ao Norte de África, primeiro ao reino de Tlemcen (hoje uma cidade da Argélia), depois ao de Fez (no actual Marrocos). A intenção confessada dessas viagens era de carácter comercial as o facto de ir como enviado do oficial do rei leva a crer que se trataram de missões diplomáticas, mais ou menos confidenciais.

Seja como for, as duas estadas no Magrebe devem ter servido a Pero da Covilhã para familiarizar-se com a língua e os costumes árabes e terão pesado na escolha que sobre ele recairá de participar, em companhia de Afonso de Paiva, na expedição de 1487 ao Oriente.

Falsos mercadores

A preparação da viagem foi minuciosa. No decurso de várias conferências com os conselheiros do rei, incluindo os mais reputados cosmógrafos, devem os dois escudeiros ter recebido informações sobre o carácter e os objectivos da missão. Foi-lhes igualmente fornecida “uma carta de marear tirada de ‘mapa mundi’” ou, como sugere o professor Luís de Albuquerque, uma carta itinerária.

para as despesas da viagem foram-lhes entregues 400 cruzados, parte em moeda metálica, parte em letras de câmbio passadas pelo mercador e banqueiro florentino, há muito estabelecido em Lisboa, Bartolomeu Marchioni. O rei passou-lhes igualmente “uma carta de crédito para todas as terras e províncias do mundo”. Entendamo-nos: não se trata do primeiro “cartão de crédito” mas apenas de uma espécie de carta de recomendação em que o rei pedia, às autoridades dos países que atravessassem, auxílio e protecção para os seus servidores. Uma outra fonte, Gaspar Correia, ignora a carta de crédito e diz que D. João II lhes deu algumas pedras preciosas para venderem quando fosse preciso e assim proverem às suas necessidades, o que parece mais mediatamente eficaz.

A viagem pode começar. é o que acontece no início do mês de maio de 1487. Covilhã e Paiva seguem primeiro até Valência (provavelmente por terra) e daqui, de barco, vão para Barcelona, onde cambiaram as letras de câmbio por outras a receber em Nápoles, sua próxima escala. Em Nápoles onde aportaram no dia de S. João, levantaram o dinheiro na famosa casa bancária dos Medici e embarcam de novo, desta vez em direcção a Rodes, que pertencia então à ordem de S. João de Jerusalém , mais conhecida por ordem dos Hospitalários.

Em Rodes estanciavam então dois cavaleiros portugueses dessa ordem religiosa militar, os quais receberam com simpatia os seus compatriotas, pondo-lhes cama e mesa à disposição. Rodes era a última escala em terra cristã. Aos dois aventureiros esperava-os agora o mundo muçulmano e exigia-se-lhes a maior prudência. Talvez a conselho dos dois freires hospitalários vestem-se à maneira de mercadores e compram uma grande quantidade de mel para negociarem. Só então se fazem ao mar, rumo a Alexandria.

A estada nessa cidade do Egipto será atribulada, sobretudo às gravíssimas febres que os acometem. Alexandria era aliás, famosa pela sua insalubridade, causada pela escassez de água potável. um outro viajante português, António Tenreiro, que por lá passou, em 1529, não deixou de referir as “direitas e largas ruas e fermosas casarias” mas sublinhou também o carácter doentio da cidade, sendo de opinião que “se não fosse o bom porto de mar que tem, parece que não seria habitada de gente”. Como uma desgraça nunca vem só, Pero da Covilhã e Afonso de Paiva, além de estarem às portas da morte viram-se desapossados pelo representante do sultão, de toda a carga de mel que transportavam, já que, segundo costume local, o senhor da terra era herdeiro dos mercadores que ali morressem. Desta vez, porém, a morte não quis favorecer o chefe da cidade, o qual após reclamações que se adivinham demoradas e penosas, lá devolveu parte da importância de que se apropriara. Os dois portugueses puderam, desta forma, comprar outras mercadorias com as quais partiram para o cairo,

O cairo, era por essa altura, o maior centro mundial de comércio de especiarias e artigos asiáticos e nas suas ruas e bazares acotovelavam-se mercadores e viajantes de todas as proveniências, o que permitia a Pero da Covilhã e ao seu companheiro passassem e recolherem informações de que precisavam.

Pela Primavera de 1488 encontram um grupo de mouros do Magrebe, cujos hábitos e dialecto lhes eram mais familiares, e com eles partiram para Adém, a mais importante escala dos navios que faziam o comércio do Oriente pelo mar Vermelho, cuja entrada guardava. Em Adém os dois portugueses decidem apartar os seus caminhos.

Afonso de Paiva seguia para a Etiópia e Pero da Covilhã para a Índia. O reencontro ficava combinado para o cairo mas é quase impossível que, quando se abraçaram, não tenham pensado que se despediam para sempre.

Na costa do Malabar

Pero da Covilhã fez-se embarcar num dos grandes navios muçulmanos, as naus de Meca, que faziam a ligação de Adém com o litoral indiano. O seu primeiro destino foi Cananor, concorrido porto das costas do Malabar, e o escudeiro de D. João II foi, provavelmente, dez anos antes de Vasco da gama, o primeiro português a chegar á Índia. Tendo ouvido, por certo, falar das prodigiosas riquezas de Calecute, para lá se dirigiu de seguida.

A chegada a Calecute deve ter tido lugar nos finais de 1488. Pero da Covilhã viu-se imediatamente mergulhado num mundo requintado e exótico e não pode deixar de inebriar-se com os novos odores., fossem os que subiam dos armazéns de comércio ou os que perfumavam os corpos das mulheres.

Calecute era o principal mercado do oceano Índico e aqui se encontravam à venda “especiarias, drogas e muitas coisas ricas”: a pimenta, a canela, o cravo, a cânfora, o aloés, a noz moscada, o âmbar, o benjoim e outros arómatas, as pérolas, os rubis, as sedas e veludos, os marfins e as porcelanas. O enviado de D. João II, face a tanta riqueza, de ter sentido a cabeça á roda, apesar de ser homem que vira já muito mundo. Por certo reconheceu também, se acaso o não fizera antes, quão importante era para a coroa portuguesa levar até ali os seus barcos, uma vez ultrapassado o Sul da África. Não deve ter sido por acaso, que, tempos depois, foi a Calecute que vieram ter directos, os navios de Vasco da Gama.

De Calecute, Pero da Covilhã deu um salto a Goa e daí partiu para Ormuz, escala obrigatória dos mercadores, que no Índico, seguiam em direcção à pérsia e á Síria. Cidade muçulmana, comercial e tolerante, aí podiam encontrar-se, segundo um escritor árabe, mercadores de “sete climas”.

O regresso adiado

A visita a Ormuz do “nosso viajante mostra uma compensação apurada dos grande fluxos mercantis do oriente dá fé do rigor com que entendia a missão que lha haviam cometido.

Não lhe escaparam, de facto, as duas cidades de comércio da costa indiana (Calecute e Goa) nem Adém e Ormuz, as chaves do mar Vermelho e do golfe Pérsico, de um aspecto importante lhe continuava, porém a faltar o conhecimento directo: da ligação marítima entre a África Oriental e a Ásia.

Com esse objectivo Pero da Covilhã faz a viagem de Adém para Sofala, porto do canal de Moçambique que não era só uma importante escala de navegação muçulmana do Índico como um autêntico empório do ouro, que aí afluía de três regiões do sertão africano.

Recolhidas todas a informações de que necessitava, Covilhã decide voltar ao cairo para se encontrar com Afonso de Paiva (que deixara há cerca de três anos) e juntos fizeram a viagem de regresso a Portugal. No cairo veio a saber da morte do seu antigo companheiro mas encontrou por outro lado, dois judeus portugueses enviados por D. João II á sua procura.

O padre Francisco Álvares refere a “grande manha” pela qual souberam uns dos outros e, de facto, há de ter sido necessário muito engenho da parte dos dois judeus, José, sapateiro de Lamego, e o rabi Abraão, natural de Beja, para, numa cidade com a dimensão do Cairo, chegarem á fala como aventureiro português, que nem sabiam sequer se já entrara na cidade. seja como for, lá entregaram as cartas que levavam de Lisboa.

O cumprimento d instruções recebidas fará com que Pero da Covilhã adie (adie definitivamente, mas isso ele só saberá depois) os seus planos de regresso à Pátria.

As ordens de Lisboa eram taxativas: devia “ir mostrar” a cidade de Ormuz ao rabi Abraão e procurar recolher o maior número de informações sobre o Preste João. as ordens destinavam-se também a Afonso de Paiva, mas esse já não estava lá para cumpri-las. Que outro remédio tinha Covilhã se não meter, outra vez, sandálias ao caminho! Antes, porém, escreve ao rei D. João II um pormenorizado relato de tudo quanto soubera da navegação e comércio do Índico, relato que, se José, o sapateiro judeu de Lamego, foi capaz de trazer intacto a Portugal, facto que se desconhece, há-de ter sido um dos mais fiéis instrumentos na preparação da viagem de Vasco da Gama à Índia.

Acabada de assinar a carta, Pero da Covilhã levará o rabi a Ormuz e volta, sozinho, ao porto de Adém. Que foi feito do dignitário judeu? É provável que enjoado do mar ou por razões mais sérias, tenha preferido regressar pelo caminho das caravanas que de Ormuz, seguiam para damasco e para Alepo.

Peregrino em Meca

Voltemos ao nosso escudeiro das sete partidas. Uma vez em Adém, deixa-se arrastar pela curiosidade e pelo espírito de aventura e resolve, nem mais nem menos, rumar a Jedah e, a partir daí visitar as cidades santas do islamismo, Meca e Medina. Todas essas cidades eram vedadas a cristãos e Pero da Covilhã precisou, sem dúvida de muita coragem e dissimulação para lá penetrar. Disfarçou-se, obviamente, de muçulmano e, com a cabeça rapada e descoberta e envolto nos dois panos brancos dos peregrinos foi, com certeza, um dos primeiros turistas cristãos a entrar nesses redutos sagrados do Islão.

De Medina, roído talvez pela má consciência de católico entre infiéis vai, pelos caminhos do deserto, até ao Sinai, onde existia o convento cristão de santa Catarina do Monte Sinai. pela primeira vez, em quatro anos, voltava a entrar numa igreja da sua religião.

No convento há de ter encontrado refrigério moral e repouso físico e, refeito de corpo e alma, fez-se outra vez, ao mar Vermelho. Corria provavelmente o ano de 1493 quando vai aportar a Zeila, vila comercial da Etiópia. A partir daí interna-se nesse país ( o lendário reino do Preste João) de onde não mais sairá.

A aventura etíope

A Etiópia, ou Abissínia, era um reino antiquíssimo, fundado segundo a lenda, por um filho de Salomão e da rainha de Sabá. Cristianizado no século IV, o reino etíope ficara ligado, desde então, à igreja copta de Alexandria, que o arrastará para a heresia monofisita. O avanço Muçulmano do século VII isolá-lo-à, durante quase oito séculos, de outras comunidades cristãs pelo que a religião que aí sobreviverá será um vaguíssimo cristianismo, bastante longe da ortodoxia. de qualquer forma foi essa memória que alimentou na Europa a lenda de um poderoso rei cristão ( o tal Preste João) que os portugueses passaram a almejar ter como aliado. Na realidade, o “negus” da Abissínia estava longe de ter a força esperada, sobretudo porque um poder tipo feudal lha minava a influência e provocava frequentes lutas internas. Do ponto de vista económico, o reino oscilava, no fim do século XV, entre os requintes de antigas grandezas e manifestações da maior pobreza e atraso.

De Zeila, Pero da Covilhã partirá ao encontro de “negus”, que o recebe “com muito prazer e alegria” e a quem entrega cartas que levava de D. João II (pelo menos é o que conta Gaspar Correia) e uma chapa de latão que tinha gravada em várias línguas a inscrição: “El-rei Dom João de Portugal, irmão dos reis cristãos”.

O”negus” morrerá pouco depois e Covilhã ver-se-á envolvido nos complicados processos de sucessão. parece, porém não haver dúvidas de que sempre foi tratado com simpatia e respeito embora, dizem os cronistas, impedido de regressar a Portugal.

Esse suposto impedimento cheira demasiado a mentira piedosa destinada a justificar a permanência do herói em terras bárbaras, pois, com a liberdade de que gozava da estirpe que era, dificilmente Pero da Covilhã poderia ter sido impedido de abandonar o reino etíope. Para além disso deve ter sabido da posterior instalação dos portugueses no oriente e nada fez para os contactar.

Seja como for, recebeu “muitas terras e rendas, com um grande condado com muitos vassalos” a passou a viver com a riqueza e o aparato de um grande senhor abexim, sendo muitas vezes chamado à corte para ser ouvido o seu conselho. esquecido da mulher que deixara em Portugal, volta a casar de novo e terá uma “ranchada” de descendentes.

O padre Francisco Álvares viu-o “com sua mulher e filhos”. A extensão da prole leva-nos mesmo a suspeitar, mau grado a discrição das informações, de efectiva poligamia, a qual, apesar da influencia cristã continuava a ser prática corrente por aquelas paragens. bem instalado na vida e quero crer que feliz, esses foram eventualmente os “impedimentos” que lhe foram fazendo esquecer o regresso á pátria.

Quando a embaixada portuguesa à Etiópia, de que fazia parte o padre Álvares, teve a surpresa de encontrá-lo em 1520, já devia ter dobrado o cabo dos setenta anos, dos quais quase trinta entre os etíopes. é fácil imaginar a emoção com que abraçou os compatriotas e, reencontrada a língua, nela lhes contou as suas aventuras.

Não manifesta, porém, a mínima intenção de regressar com eles. Limita-se a enviar, por essa comitiva, um dos filhos, um jovem mestiço “negro como pera parda” para usar a saborosa linguagem de Gaspar Correia. carrega-o de ouro e manda-o a Portugal com carta ao rei, em que lhe pede para o filho “que o fizesse honrado em satisfação dos seus serviços”.

O jovem filho de Pero da Covilhã não sobreviverá as dificuldades da longa viagem para Lisboa. Quanto ao pai desaparece das notícias em letra de forma. Há-de ter acabado bem velho, rodeado de netos e de respeito e a lembrar-se, quem sabe?, da remota cidade da Covilhã que, desde pequeno, trocara pelos caminhos do mundo.

Arlindo Manuel Caldeira

Expresso, 31 de Dezembro de 1988

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