TAPROBANA
Camilo Azevedo e Paulo Varela Gomes
o início do ano de 1506, o Rei de Portugal D. Manuel, “o Venturoso” foi informado de que um capitão português acabava de aportar à ilha de Ceilão, conhecida desde a Antiguidade pelo nome lendário de Taprobana.
O desembarque em Ceilão desempenhou um papel muito importante na propaganda desenvolvida pelos portugueses no início do século XVI. Sucedem-se as cartas de D, Manuel para o Papa em Roma e as procissões de acção de graças. A notícia era tão importante para o Rei como a chegada à própria Índia, porque a lenda tem sempre mais força que a realidade e o nome mítico da Tapobrana mais importância que muitos carregamentos de pimenta.
Com a chegada dos portugueses a Ceilão, fechava-se o ciclo aberto por Alexandre Magno; o sonho da unificação do Mundo sob um novo império, o quinto grande império da história mítica.
ilha de Ceilão era conhecida pela cultura do Ocidente europeu desde a época dos Gregos. As notícias que vinham de lá eram muito vagas, quase um rumor, quase um murmúrio de encanto vindo do próprio paraíso terreal. As primeiras lendas tinham chegado à Europa muito tempo antes de Cristo, através dos generais de Alexandre Magno, o príncipe grego chegou até às margens do Indo. Aí, nas fronteiras da Índia, os generais helénicos ouviram falar da ilha encantada. Estrabão, o geógrafo grego, chamou-lhe Taprobana. Outros designaram por este nome a ilha de Sumatra, mais a leste. Plínio, o Velho encontrou em Roma, já no início da nossa era, embaixadores vindos de Ceilão e descreveu a ilha como um paraíso político e social, uma utopia longínqua, com a qual comparou os costumes da sua pátria romana.
Deste modo, Ceilão esteve presente desde o início da História da Europa como um lugar entre a lenda e a realidade. Da realidade chegavam ao Império Romano a aromática canela de Ceilão e as suas pedras preciosas, transportadas até às margens do Mediterrâneo por mercadores orientais que atravessavam o oceano Índico, o mar vermelho ou a Pérsia.
Da lenda chegava à Europa a força do homem: Taprobana.
Ao aportar a Ceilão, os portugueses julgaram encontrar outra confirmação da crença de que todo o Mundo conhecera em tempos a doutrina de Cristo: no alto de uma montanha, sagrada para budistas, hindus e muçulmanos, está uma impressão na rocha. Muitos acreditam que é uma pegada. A pegada do primeiro homem criado por Deus, Adão. Milhares de peregrinos sobem todos os anos ao Pico de Adão, um dos lugares de maior força mítica existentes na Terra. Para os budistas, a pegada é de Buda, para os hindus de Xiva. Os Muçulmanos acreditam que é de Adão, para aqui vindo depois da expulsão do Paraíso.
Um europeu da Idade Média escreveu: “É a montanha mais alta da face da Terra; quando Adão foi expulso do Paraíso, um anjo trouxe-o pelo braço e pousou-o nesta montanha. De Ceilão ao Paraíso vão 40 milhas; ouve-se aqui o som das fontes do Paraíso.”
Na fabulosa Taprobana, aonde os portugueses acabavam de aportar, haveria então traços do primeiro homem que existiu, Adão. O ciclo do tempo estava fechado.
uando D. Lourenço de Almeida chegou a Ceilão, soube que existia aí um rei e que a sua capital era Cote. Decidiu enviar-lhe um embaixador.
O Rei, por seu lado, foi informado da chegada dos portugueses. Disseram-lhe que os visitantes eram pessoas estranhas, de pele clara, alegres e irrequietos, nunca estavam parados em lado nenhum e tinham canhões que faziam mais barulho que o trovão. Disseram-lhe também que comiam pedra e bebiam sangue... É que os cingaleses nunca tinham visto pão, que tomaram por pedra calcária, nem vinho, que pensaram ser sangue.
A chegada dos portugueses a Ceilão está na origem de uma expressão cingalesa que veio até aos nossos dias - “Parangue Kotté Guiá” - e que se traduz por “levar o português a Cote”, mais ou menos com o mesmo significado que o nosso “levar alguém à caça de gambuzinos”. A história é a seguinte: o Rei de Cote não queria que D. Lourenço de Almeida soubesse onde é que ficava a sua capital e o embaixador português foi levado por um percurso complicadíssimo de montes e vales para lhe fazer crer que a distância e Cote era muito maior que a meia dúzia de quilómetros que, de facto, separa as duas cidades. Mas o “Parangue” não se deixou enganar e foi disparando de vez em quando o seu mosquete. D. Lourenço de Almeida ficou assim a saber que Cote era mesmo ali ao lado.
uando os portugueses chegaram ao Ceilão, os grandes reinos budistas do centro da ilha já tinham desaparecido. Mas havia outros, agora no Sul, menos notáveis em realizações arquitectónicas e urbanas, mas de uma cultura ainda muito rica e profunda. Era o caso do reino de Cote.
A religião do Buda, palavra que quer dizer “Iluminado”, chegou a Ceilão vinda do Nordeste da Índia muitos séculos antes da era cristã. Ceilão é dos maiores centros do budismo existentes no Mundo e no passado estendeu a sua influência até ao Sudeste asiático.
O Buda era Gautama ou Sidharta, um jovem do vale do Ganges que, no século VI a.C, renunciou à fortuna e à juventude, para procurar a luz da sabedoria pelas estradas e caminhos. Descobriu então a via da salvação, o “marga”. Nasceu assim o budismo, uma filosofia que prega que é preciso livrarmo-nos da existência no Mundo, sempre dolorosa, sempre transitória. Na existência mundana, não é possível encontrar qualquer estabilidade, qualquer consolo, nada de absoluto. a única solução é praticar o bem, abandonar as coisas do Mundo e meditar. É no espírito que se trava a batalha decisiva.
Os crentes vêm aos santuários budistas meditar na via da salvação e levar a cabo uma série de rituais de culto, ligados à renovação do ciclo de vida pela água com que alimentam ritualmente a árvore sagrada do budismo. A árvore, a “figus” religiosa, é um elemento fundamental de qualquer santuário budista, uma espécie de representação da árvore primeira, debaixo da qual o Buda concebeu a sua doutrina.
Em cada santuário budista há ainda uma casa de oração, com a imagem do Buda, e uma ou várias “stupas”,. ou casas das relíquias, edifícios sem entrada, todos de perfil cónico, mas de forma diferente conforme a cultura budista que lhes deu origem. É que o Buda foi incinerado e as suas cinzas guardadas em vários relicários espalhados por todo o vale do Ganges, na Índia. Quando o budismo se expandiu pelo Tibete, China, Sudeste asiático e Ceilão, foram construídas - e continuam a ser - muitas “stupas”, para guardar as relíquias do “Iluminado”.
s reis de Cote eram herdeiros de grandes reinos budistas situados no centro da ilha, em regiões já abandonadas no século XVI. Na Idade Média, a capital da ilha era Anuradhapura, cidade situada no Norte. No século V da nossa era, reinava o rei Dhatusena, que tinha dois filhos, Mugalan, o mais velho, e Kasiapa, o mais novo.
Kasiapa tinha aquela ambição vulcânica que costuma provocar tragédias. Rebelou-se contra o pai, aprisionou-o e procurou obrigá-lo a dizer onde tinha escondido o tesouro real. Dhatusena levou o filho até à beira de um dos enormes lagos artificiais que os Reis de Ceilão mandavam construir para irrigar a área de Anuradhapura que tem uma estação seca muito prolongada. Entrou na água, voltou-se para o filho e disse-lhe: “Este é o meu tesouro.” Kasiapa trespassou-o com uma lança. E teve de se preparar a seguir para o inevitável, porque o irmão, Mugalan, tinha fugido para o Sul da Índia e preparava um exército para a vingança.
Kasiapa abandonou então Anuradhapura e foi para leste, mais para o interior do Ceilão. Em Sigyria, um velho mosteiro budista instalado nas rochas e grutas de um local mágico, criou a sua própria capital. Num monte rochoso, a 200 metros de altura sobre a planície, mandou construir um palácio. Estendeu até ao horizonte outras casas e jardins, como se quisesse afirmar para sempre o seu nome maldito com obras mais dignas de deuses do que de homens. Reinou durante 18 anos, em meados do século V da nossa era. Nesses 18 anos nasceu e morreu o grande sítio de Sigyria. Nenhum europeu esteve em Sigyria até ao século XIX. Nenhum deixou memórias neste local mágico, em que a terra tropical se rasga e liberta esta rocha que parte ao assalto do céu. Sigyria permaneceu deserta, longínqua e misteriosa durante séculos, visitada apenas por grupos de peregrinos que aqui vinham pela estranha beleza do local e a memória da terrível lenda que lhe está associada...
O escritor britânico Arthur C. Clarke, autor de magníficos romances de ficção científica, vive hoje em Ceilão. Esteve em Sigyria muitas vezes. Num dos seus livros, “As Fontes do paraíso”, imaginou a grande rocha como uma porta para as estrelas. Sigyria é verdadeiramente a ombreira de outro mundo.
Quando Mugalan, o irmão de Kasiapa, voltou da Índia com um exército, o parricida desceu à planície com os seus homens. Estavam duas forças frente a frente, quando o elefante que transportava Kasiapa se assustou pela proximidade de um pântano e fugiu levando o Rei consigo. O exército debandou. Kasiapa suicidou-se e Sigyria ficou abandonada ao tempo e à lenda.
A rocha voltou a ser mosteiro, voltou a afastar-se do mundo, habitada apenas por monges, que, a pouco e pouco, deixaram cair em ruínas o palácio no alto da Rocha do Leão e o gigantesco complexo dos jardins e dos palácios da planície.
O palácio-fortaleza de Sigyria era o centro geométrico e espiritual de uma composição arquitectónica concebida à escala de um território imenso. Pela orientação e forma do palácio lá em cima estavam ordenados os jardins e as casas da planície. O Rei habitava no alto e a própria paisagem submetia-se à sua vontade de ordem e harmonia. Naquela época, em todo o Mundo, só alguns empreendimentos dos romanos no Ocidente tinham esta escala e esta ambição.
Ao longo de séculos, peregrinos e visitantes budistas deixaram inscritas em Sigyria poesias de homenagem às mais famosas obras de arte da civilização cingalesa, as pinturas feitas nas reentrâncias da Grande Rocha do leão, a que um historiador chamou a maior galeria de arte cortesã ao ar livre existente no Mundo. As pinturas representam as Apsaras, ninfas celestiais e, ao mesmo tempo, mulheres da corte. Sobre Kasiapa, o céu derramava flores e sorrisos.
Só já no nosso século alguns viajantes ingleses revelaram Sigyria aos olhos ocidentais. Viam ao longe, lá no alto, as ruínas do palácio. Olhavam de longe, com binóculos, as Apsaras sorridentes. A Rocha voltava agora à história pela mão da curiosidade dos europeus, depois de nela ter entrado -e saído - pelo sangue de dois reis.
s dinastias budistas continuaram até ao século XIII a construir santuários e cidades no centro do Ceilão. Pollonaruwa é uma cidade do Leste que foi capital entre o século XI e o século XIII da nossa era.
Parakrama Bahum, “o Grande, fundador de Pollonaruwa como capital, é conhecido por ter reformado os mosteiros budistas de Ceilão. Essa reforma correspondeu a uma importante mudança do culto: anteriormente, a “stupa”, que guardava relíquias de Buda, era a sua representação abstracta, mas, entretanto, um culto mais popular pedia representações concretas e compreensíveis, as imagens do próprio Buda, e as casas da imagem tornaram-se mais importantes que a “stupa”. A Casa das Relíquias circular de Pollonaruwa é a melhor demonstração do requinte que atingiu a arquitectura budista cingalesa entre os séculos VII e XII.
A universidade monástica e os mosteiros era os edifícios principais de Pollonaruwa. Os observadores católicos ficaram muito impressionados com os mosteiros budistas que encontraram no Sul de Ceilão: tinham celas para os monges, uma sala do capítulo, claustros. Exactamente como os mosteiros católicos...
De facto, os portugueses perceberam muito mal o budismo. Confundiram-no com as religiões que tinham encontrado na Índia, religiões com muitos deuses, a que chamavam o gentilismo. Ribeiro, por exemplo, foi um português que veio para a ilha aos 18 anos de idade e esteve cá mais de 20. Pois pensou sempre que o Buda era S. Tomé. os cingaleses diziam-lhe que Buda não era originário da ilha e tinha vindo para cá evangelizar os habitantes. Ribeiro, que sabia que S. Tomé tinha feito o mesmo, e cheio da sua arrogância europeia e católica, pensou sempre que o Buda era uma versão adulterada de S. Tomé e que o budismo não passava de uma versão adulterada do cristianismo.
Mas muito poucos portugueses conheceram as soberbas ruínas do centro de Ceilão porque, quando estiveram por cá, não vivia já quase ninguém nessas áreas. O primeiro europeu que visitou e mediu as ruínas de Anuradhapura foi o franciscano Francisco Negrão. Julgou-as tão sumptuosas, ficou tão impressionado que pensou que tivessem sido feitas pelos romanos. Negrão era um frade nascido na Índia e de origem italiana, considerado um especialista nas culturas orientais. Fernão Queiroz, o cronista, conheceu-o e leu os seus escritos. Também ele falou sobre moedas romanas encontradas em Ceilão, sobre letras gregas em santuários budistas, também ele quis encontrar uma origem europeia para a cultura cingalesa.
Em Ceilão como na Índia, os europeus quiseram ver a concretização do seu velho mito, de que o mundo oriental fora em tempos dominado pela cultura do ocidente, a única que considerava legítima.
o princípio, o governo português na Índia, e o Rei, em Lisboa, não quiseram envolver os portugueses nas questões de Ceilão. Uma feitoria era tudo o que lhes bastava. Mas a história interna da ilha e a ambição de controlar as suas riquezas ditou outro destino aos portugueses, muito para além destes modestos planos iniciais. Um destino bem diverso daquele que encontraram noutras regiões do Oriente.
O Rei de Cote teve três filhos e dividiu por eles o reino. Um destes herdeiros ficou com o Reino de Citavaca. Para se opor ao irmão que herdara Cote, chamou em seu auxílio o samorim de Calecute, a mais forte potência hindu da costa do Malabar. Ora, Calicute era o principal rival do poderio português no Índico. E o Rei cingalês de Cote, para se opor ao seu irmão de Calecute, recorreu ao auxílio militar português. Os portugueses entraram no Oriente através de brechas abertas na rivalidade dos reinos orientais.
Imersos nos problemas internos de Ceilão, os colonizadores começaram a alimentar um sonho de permanência, um sonho imperial na ilha encantada. Quanto mais se envolviam no Ceilão, mais queriam envolver-se. O cheiro da canela, a riqueza dos arrozais, o aspecto paradisíaco da terra, constituíam atractivos irresistíveis.
O cronista Diogo do Couto foi um dos muitos portugueses que passou por Ceilão. Escreveu acerca da nossa presença na ilha um frase que os historiadores cingaleses costumam citar, não sem algum orgulho: “Ceilão, desde que descobrimos esta ilha, foi sempre para o Estado da Índia como outra Cartago para Roma. Porque, pouco a pouco, foi consumindo, em despesas, gente e artilharia, tanto que só ela tem gasto com as suas guerras mais do que todas as outras conquistas deste Oriente.”
Com esta frase, Couto comparou as guerras dos portugueses em Ceilão com aquelas que se travaram entre Roma e Cartago na Antiguidade e que quase resultaram na exaustão completa do poderio romano. Mas em Ceilão, nas costas do Coromandel, nos mares da China, em Malaca e até em Goa, havia muitos portugueses que pensavam que todo este sacrifício e despesas eram bem empregues, porque Ceilão tinha posição estratégica certa, a dimensão e as riquezas ideais, para ser a sede de uma civilização lusíada na Ásia.
Esse objectivo em Ceilão falhou. os portugueses criaram no Oriente um espelho do Império, sim, mas muito a norte, na costa ocidental da Índia, em Goa.
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