LISBOA - DUQUESA DE ABRANTES

A Duquesa de Abrantes numa metrópole do Oriente

Laura Permon, madame Junot e, por via disso, duquesa de Abrantes, legou à posteridade 18 volumes de “Memórias de grandezas e misérias. Aquela que foi casada com um dos maiores generais de Napoleão viria a escrever para ganhar a vida. Dentre essa dúzia e meia de volumes, uma centena e meia de páginas recordam a sua estada em Portugal quando Junot aqui era embaixador de França. É a algumas destas páginas que vamos recorrer para traçar um breve quadro de Lisboa nos primeiros anos do século XIX.

A situação de Lisboa, escorrendo para o Tejo, a sua luz, foram para Laura Permon o primeiro deslumbramento. Tal como para quase os viajantes que aqui desembarcaram. Tal como um Filipe II que aqui veio buscar a coroa de mais uma parcela a governar, instalando durante alguns dias em Almada, com vista sobre a capital do seu novo reino.

Lisboa, é vê-la vindo de aldeia Galega, com o estuário coalhado de barcos. Depois, a cidade que “ se estende pelas colinas para o lado do rio e vai mostrando as suas cúpulas, os seus conventos, os seus palácios, os seus jardins e as suas hortas, que separam uma mansão de um mosteiro ou uma praça de um cemitério, fazendo-a assim assemelhar-se a uma cidade do oriente; e depois, ao longe, surgem essas quintas, esses jardins deliciosos, que rodeiam Lisboa como uma suave e magnifica cintura”.

A ideia de uma Lisboa, tão comum, de resto aos viajantes que ao longo dos século a têm visitado, reforça-se em traços, quer físicos, quer fisionómicos, e nos próprios comportamentos. É “aquele solo queimado pelo sol e as paredes duma brancura absoluta que, segundo os portugueses - judiciosamente , acrescento eu - impede a acção devoradora dos raios solares”.

É a “cor negra dos olhos e da pele morena. É o costume das damas se sentarem normalmente no chão, em alcatifas - no caso Carlota Joaquina, em Queluz, com meia dúzia donas” (Laura não deixa de dizer que “recordavam esses pássaros da América do sul” (...) a que chamam catatuas”...

Fique-se Carlota Joaquina, princesa do Brasil, de lado, que não perde pela demora. Voltemos à cidade. também Laura Permon, como uma vez mais, a generalidade dos viajantes estrangeiros, não deixa de por em contraste a cidade vista de longe, do Tejo, e a cidade vista por dentro. É a natureza que encanta. E, por exemplo, aquela “planície ridente e exuberante de vegetação”, com os seus vinhedos - Campo de Ourique, são ainda as “três ruas novas” abertas na Baixa por Pombal (“formosíssimas”).

mas, em alto contraste, são também as vizinhas ruas “estreitas”, enlameadas e tortuosas, habitadas pelo pior da gente do porto”, várias ruas e largos de Lisboa (que contêm, todavia, vestígios de cólera celeste; imundícies, cadáveres de cães, de cabras, de burros, de mulas que jazem entre os escombros, ameaçando a cidade com a peste, devido às emanações mefíticas desses montes de matéria, ás vezes em putrefacção”. E madame Junot explica: “Se não fosse o ar activo e salubre que a purifica, Lisboa parecia destinada a perecer da morte comum a todos os povos orientais”.

Se a Lisboa de 1806, já é bastante segura, a embaixatriz não esquece - como se o tivesse vivido - essa Lisboa de uma dezena antes, de quem lhe contavam histórias terríveis. Uma Lisboa nocturna e percorrida por ladrões, por assassinos de aluguer. Nesse tempo “as ruas de Lisboa só estavam iluminadas por umas lamparinas dependuradas ao pé das imagens da Virgem, que se vêem em quase todas as esquinas, mas a sua luz incerta guiava os assassinos na direcção das suas vítimas e não eram de nenhuma utilidade”. antes pelo contrário, como se vê.

De tal maneira que, “a partir da meia noite, ninguém se atrevia a sair sem armas, que muito raramente se mostravam úteis, pois as quadrilhas de ladrões eram demasiado numerosas para que se lhes pudesse opor resistência”. Era assim que até se dava a circunstância de os ladrões passarem salvo-condutos aos passantes que assaltavam, para que estes pudessem prevenir-se para o caso de novo assalto ter lugar mais longe e a vítima ter a possibilidade de indigência em que se encontrava...

“Mataste-o, canalha?”

Esta insegurança das ruas de Lisboa é confirmada pela generalidade dos viajantes que escreveu sobre a capital portuguesa, como por exemplo, Carl Israel Ruders, capelão que foi da Legação sueca no nosso país, na dobra do século XVIII para o XIX, de 1798 a 1802. A duquesa de Abrantes aliás, conta que os assassinos se refugiavam nas igrejas, especialmente as conventuais, onde a justiça não os podia ir prender, dada a espécie de extraterritorialidade de que gozavam os templos cristãos, privilégio com raízes na Idade Média. a duquesa explica a facilidade com que os assassinos aí obtinham refúgio por estes terem trabalhado, como diziam, para o abade ou a abadessa do mosteiro.

Era aí, às igrejas, que se dirigia quem tinha necessidade de contratar um assassino profissional para exercer vingança sobre um inimigo. A nossa memorialista cria, em abono da afirmação que faz, o caso de um cônsul dum país estrangeiro, cujo nome cala e que lhe foi contado pelo próprio. O cônsul contratou, precisamente numa igreja, o assassino de que necessitava para tirar vingança do seu inimigo por 2 mil e 400 reis, metade pago no acto de celebração do contrato e os outros mil e 200 reis a pagar depois da executado o serviço.

Melhores tempos, entretanto, corriam para o matador profissional, que resolveu, dado que não se sentia vigiado, deixar a igreja e recolher ao seu lar, sito no cais do Sodré. Só que, entretanto, também, o nosso cônsul tem um rebate de consciência e vai procurar o assassino. Laura Permon transmite o diálogo entre os dois, diálogo a que o tom patético-literário não consegue retirar de todo o sabor. Do estilo: Mataste-o canalha? - Fiz o que me disse. Quem podia pensar que, tendo condenado o seu inimigo perante o tribunal do seu ódio, ia absolvê-lo uma hora depois?”.

O diálogo romântico prossegue, com o profissional a encarecer o risco do seu trabalho e ossos do ofício, perante a consciência horrorizada do cônsul que, de qualquer maneira, ainda estava em dívida para com o trabalhador. O cliente “atirou-lhe a bolsa, sem querer tocar aquela mão ensaguentada...”. Mas, contado e recontado o conteúdo da dita, o honesto trabalhador verifica que a bolsa tem mais que os mil e 200 reis que lhe são devidos, e quer devolver o excesso ao cliente. Este, naturalmente, diz-lhe: Guarde-o todo”.

Ao que, assentindo, explica o homem do Cais do Sodré o que pensa fazer com o excedente: “Um dos meus camaradas foi morto por uns ingleses a quem não estava a atacar, pois só queria roubar... A viúva ficou na mais extrema miséria e nós cotizamo-nos para lhe pagar, uma pequena pensão... Se estiver de acordo, senhor os três escudos que sobram serão para a viúva de Sebastião e para umas missas de sufrágio pela alma de esse jovem, já que o senhor lamenta tanto a sua morte...” O cônsul disse, claro está: “Basta! Basta!, ganhou coragem e foi-se...

Entretanto tudo mudara em Lisboa com a vinda de um francês fugido aos ares revoltos da sua terra, o conde de Novion. Instalam-se lampiões na cidade e Novion, chefe da polícia, põe-se á frente de “uma força de 600 homens de infantaria e 200 de cavalaria, que todas as noites, e mesmo em menores secções durante o dia, percorrem em patrulhas todos os bairros da cidade” (Ruders). Isto, não obstante a oposição dos frades, segundo a duquesa de Abrantes, que conclui: “A cidade aparecia iluminada por lampiões desde Belém até ao Grilo. Estabeleceram-se pontos de vigilância e várias patrulhas percorriam todos os bairros”. E remata como se fosse hoje: “Finalmente aquilo era Europa!”

Vamos ainda, pela pena da mulher de Junot, mais atreita a bosquejar salões e aristocracias que gentalha ou populaça, vamos ainda por mão de D. Laura ver o Cais do Sodré, local de reunião das mulheres do povo, vendedeiras de bacalhau e peixe fresco”. E dando o seu juízo: “Não há nada mais repugnante...”

Civilizada, racionalista “bonaparteana”, madame Junot explica: “É assim que o Cais do Sodré vem a ser o local onde se junta uma multidão de mulheres cuja ocupação aparente é vender laranjas e peixe, mas cujo ofício na verdade não é outro senão prever o futuro, empregando toda a inteligência que possam para lubridiarem os infelizes que as procuram em hora de perdição ou de desespero”.

Dona Mari’ da Penha e herr Fischer

E aqui, se o leitor dá licença, entram nesta pagina uma portuguesa e um alemão, a Dona Mari´ da penha, e o herr Fischer, a mulher de virtude e o soldado, e ainda vendedeira de castanhas assadas ao cais do Sodré e o amador de castanhas e de copos. Ofícios de um e de outro que, como o leitor vai já ver, os puseram a ambos em grandes perigos de vida e esperanças rápidas de morte.

Ora sucede que, numa noite, se emborrachou divinamente o amigo Fischer, homem duma foça hercúlea, e resolveu ir armar-se em engraçado e embicar com Dona Mar’ da Penha que, como de costume, estava às voltas com o seu fogareiro, exercício do seu humilde ofício de “castanheira” com assento e banca no cais do Sodré. Só que, diz a duquesa por interposta pessoa - o seu amigo conde de Novion - a popular dama estava de candeias ás avessas e dá em tratar herr Fischer de modos pouco elegantes, acompanhando gestos e maneiras com apropriada riqueza vocabular e locuções, metáforas, metonímias e outras figuras de retórica puras e castiças, nada criadas ou adoptadas pela gente comum da Ribeira Nova. O leitor imagina...

Mas, como reagiu Fischer que apesar de alemão entendia o suficiente da língua lusa para atestar as acusações de conduta nada duvidosa dirigidas à sua mãe amantíssima e à sua idolatrada esposa e companheira? Irritado com Maria, avançou para ela de braço levantado para lhe bater. Todos os que assistiam á cena se convenceram que a velha ia ser esborrachada, mas Maria só recuou um passo e com a mãozita, negra e descarnada, estendida, ameaçou o gigante, dizendo-lhe: Detem-te Fischer! Ou juro-te, pelo meu amigo Diabo, que te há-de pesar toda a vida!”

Ora chegando as coisas a este ponto, o que irá suceder? Fischer avança, estende ainda mais o braço para agarrar Mari’ Penha, a velha toca-lhe com um dedo e Fischer cai redondo no chão do cais do Sodré. O resto já o leitor o adivinha - o Fischer não dá acordo de si, vem os guardas da Inquisição, levam a Mari’ da penha, vem o doutor Picanço que faz a Fischer uma sangria. vem Fischer a si, sem lhe ter passado nada da borracheira, recusa-se a acreditar no que aconteceu e grita que viu entre si e a velha “um homem negro, no meio de chamas”. O caso torna-se, pois, um caso bicudo. Mas, se o leitor está de acordo ficamo-nos por aqui, por este combate entre o Golias e o David de saias do cais do Sodré, sem funda, mas com o Diabo a ajudar. Mas não abandonamos de vez a cronista e duquesa de Abrantes. Aqui mesmo ao lado, pode o leitor degustar a prosa de Laura Permon, traçado o perfil de algumas figuras gradas da (nossa) História Pátria.

Alguns retratos

Observadora arguta e apaixonada, Laura de Permon, esposa amantíssima de Junot, dá-nos nas suas memórias alguns retratos de personagens de primeiro plano na vida social portuguesa dos primeiros anos do século XIX. a rainha louca, os príncipes do Brasil, especialmente a princesa, são vítimas da sua pena cruel. Pena que se torna duma inesperada doçura quando descreve a condessa de Ega, a amante querida do seu marido, Andoche Junot.

D. Maria I

“A rainha estava louca. Tinha sido sempre de inteligência medíocre e a sua razão viu-se perturbada ao mesmo tempo pelas tragédias de França, pela proclamação da República e pela actuação quotidiana do grande inquisidor que era ao mesmo tempo medroso e valente. Medroso perante os perigos que ele próprio provocava e valente perante os infelizes que não podiam defender-se(...)

“Quando falava com a rainha, o seu tom era tão veemente que a pobre princesa não lhe podia resistir. Já alienada sofria de ataques terríveis, gritando que via o Diabo, e a gente zombeteira dizia que os seus gritos eram muito mais violentos quanto mais se chegava a ela o grande inquisidor.”

D. João VI

“Não podia cair um trono em mãos menos dignas de o sustentar. De uma ineptitude quase total, sem instrução de nenhuma espécie, caçando como um pele-vermelha, sem nada enfim, que o favorecesse e, além disso, com um aspecto físico repelente, tal era o homem a quem Portugal obedecia quando o imperador (Napoleão) decretou a queda da Casa de Bragança.

“Quem não teve a sorte, como eu tive, de ver Sua alteza Real com o uniforme dos hussardos, imitado do de Junot, não faz ideia do que é grotesco (...) era divertidissímo ver a maneira que tinha de levar a peliça no ombro direito, como um desses mercadores ambulantes de roupa velha. e aquela pança, dificilmente contida por umas calças apertadas! E as pernas bailando nas botas vermelhas!”

D. Carlota Joaquina

“A princesa do Brasil teria um metro e sessenta de estatura na parte na parte mais alta do seu corpo. E digo isto porque uma queda de cavalo lhe tinha de tal maneira diminuído um quadril que coxeava horrivelmente e a clavícula, também deslocada, tinha tomado uma direcção contrária à da sua companheira.

“Resultava de tudo isto que o peito da pobre princesa era, como o resto do seu corpo, um enigma da natureza, quando esta se propõe enganar-se (...).

“A cabeça, se fosse formosa, teria podido neutralizar em parte a deformidade do corpo, como acontece com muitos corcovados. mas a natureza tinha querido completar a sua obra e sobre aquele corpo lamentável pôs a cabeça mais estrafalariamente feia que já se viu neste mundo.

“os olhos era pequenos, desiguais e sempre malévolos ou trocistas. O nariz, pelo seu costume da caça e de uma vida errante e agitada, estava geralmente vermelho e inchado, como o de um suíço. a boca, que era o mais curioso daquele rosto repelente, tinha várias fiadas de dentes negros, verdes e amarelos, dispostos em escadaria, como a franja duma cortina ou uma flauta de Pã...

“A pele, áspera e escura, para que a sua fealdade fosse maior, estava cheia de borbulhas, que supuravam quase sempre e dava náusea olhá-las.

“(...) Aprendeu a disparar e a montar a cavalo. E via-se-a por montes e vales e planícies perseguindo os javalis, a que assustava, e aos pobres cervos que, só de olhá-la, se aterrorizavam...

“(...) tinha as inclinações mais inverosímeis... Ma o relato das suas aventuras resultaria simplesmente asqueroso, sem nenhum dos efeitos cómicos que se apreciam nas narrativas de Boccaccio ou no “Heptamaron” da rainha de Navarra. Aqui o não era galantaria, nem sequer abandono... Não passava de depravação, delírio infame de quanto a mente mais fogosa e ao mesmo tempo mais esgotada pode imaginar no campo das sensações...

“não tinha amante fixo, explicava, porque não queria que nenhum homem lhe batesse , como Godoy à sua mãe, e porque a encantava a sua liberdade... Da qual, claro, se servia sem restrições... Só deus sabe os caprichos que teve e o que fez para os satisfazer!...

Condessa de Ega

“A Condessa de Ega era filha do Conde de Oyenhauser e sobrinha do marquês de Alorna, um dos homens mais notáveis de Portugal e supersticioso e fanático ao ponto de pretender que nalgumas noites ceava com a Virgem Maria ou com o rei D. Sebastião.

“(...) era jovem e encantadora. O seu talhe esbelto e gracioso, os seus olhos azuis muito doces e luminosos e a sua cabeleira de um ruivo delicioso, davam-lhe o aspecto duma adolescente do Norte, ao mesmo tempo que a graça incomparável das belezas do Sul revelava que tinha nascido sob os céus da península.

“A sua instrução era vasta e o seu engenho finíssimo e muito francês davam á sua conversação um encanto que eu soube apreciar enquanto privei com ela.”

Expresso, 27 de Junho de 1987.