SALAZAR NO FEMININO

MEMÓRIAS

SALAZAR

NO FEMININO

LUÍS ALMEIDA MARTINS

Ter-lhe-ão agradado no jovem seminarista a magreza distinta, o ar reservado, o azul das olheiras o perfil sherlockiano. O certo é que Felismina, recém-estreada a dar aulas às poucas crianças que então frequentavam a escola oficial, se sentiu de imediato atraída pelo rapaz três anos mais novo, sempre vestido de negro, com quem se cruzava por vezes na Rua Direita e no Rossio. Ambos falavam sibilantemente, como toda a gente em Viseu e arredores. E nesse ano de 1905, a Beira Alta era um microcosmo de pinheiros e granito, povoado de homens e bichos numa comunhão de espaço sem limites, tão distante da Cascais das realezas, do Terreiro do paço dito opressor e das conspirações republicanas, como o céu dos catecúmenos das brasas de Satanás.

Veio a apurar que o rapaz se chamava António e que era de Santa Comba, freguesia do Vimieiro. da família falou-lhe ele mesmo quando se tornaram mais íntimos - do pai, feitor das terras dos Perestrelos, da madrinha, castelã, da mãe, Maria do resgate, que o dera à luz aos 44 anos e que nele investira todos os mimos que não dispensara ás quatro irmãs mais velhas, da casa de pedra e taipa, das couves e das galinhas. Apenas lhe calou as acelerações de pulso e a vertigem que experimentava ao pé de Júlia perestrelo, a filha da madrinha e do senhor das terras onde cavava o pai de sol a sol. Mas os encontros secretos entre duas horas canónicas, no adro da Sé ou no próprio interior do seminário sempre de olho posto na aldraba da porta, desvendariam por completo a felismina a complexidade atormentada do mundo interior de António de Oliveira Salazar.

Era um introvertido frequentemente assaltado por fundas depressões. Não tivera amigos em criança, era normalmente incapaz de se defender quando atacado, sempre que a mãe se preparava para castigar uma das irmãs intercedia por ela com lágrimas e beijos. Quando ia passar as férias ao Vimieiro, tratava dos muitos achaques da progenitora com um desvelo fora do comum , pernoitando no seu quarto e levando-lhe a malga com o caldo à cama. O pai e as irmãs, sempre entre a burra e a cabra, eram personagens apagadas de uma crónica de amor filial sem limites. Pela mãe rezava, por ela fazia penitências.

Os encantos de Felismina encontrara no seminarista de 16 anos foram-se esfumando com o tempo e ao sabor destes relatos. Além do mais, vir a ser mulher de padre não entrava nos planos da moça casadoira. Mas António adaptou-se bem à realidade a partir do momento em que descobriu em si reservas de desinibição bastantes para lhe soltarem a língua diante das provincianas mais frágeis e delicadas. apercebeu-se de que gostava das mulheres como um todo e de que essa metade do céu haveria de ser a permanente companhia da sua vida solitária.

Jamais viria a casar.

A OPÇÂO LAICA Agora, o que mais o ocupava eram os estudos de História, de Latim, de Francês, de aritmética - mas sobretudo esse corpus de ciências teológicas que tanto o encantava e que fazia dele um profissional da oração. A atracção pelo mundo feminino impedi-lo-ia no entanto de enveredar pela carreira da sotaina. ver as mulheres e passar ao largo sem delas se abeirar para colóquios em volta das preocupações que as afligiam era coisa que nem um cilício o ajudaria a suportar. arvorado em professor, passou assim a leccionar no Colégio da Via sacra e a aproveitar as horas de modorra e as de negrume á luz da vela para escrever artigos que veria publicados nos jornais dainstituição.

Em Outubro de 1910 dar-se-iam dois acontecimentos importantes na vida portuguesa: a República era implantada em Lisboa e telegrafada para o resto do país: um ex-seminarista beirão, de 21 anos, inscrevia-se na Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra. O primeiro abria caminho a 16 anos de democracia respirada a plenos pulmões depois de 700 de utarcia e 80 de constitucionalismo mitigado; o segundo possibilitava a imprescindível formação académica de um líder que outros se encarregariam mais tarde de inventar.

António não tinha artes para adivinhar o seu futuro. Mas lia Charles Maurras e as encíclicas de leão XIII sobre a doutrina social da Igreja, proferia conferências no centro Académico de Democracia Cristã em que punha a tónica no papel da família no seio da sociedade, publicava artigos n’O Imparcial sibilinamente assinados Alves da Silva. Earranjava ainda tempo para frequentar sessões de boémia quantum satis sem as quais ninguém pode afirmar em consciência que passou anos da vida na cidade do Mondego. Torneava as dificuldades inerentes á época e ao meio para se dar a intimiddaes com raparigas, desde as tricanas de Hilário ás “meninas recatadas” que o acaso e o labor lhe punham no caminho, e com elas, sempre que possível, dava passeios pelo Choupal e pela estrada da Beira.

Também por esse tempo, e concluído o curso de leis, travou-se de amizade com o padre Gonçalves Cerejeira, antónio como ele e como ele tocado pela varinha que fada para voos largos. Como o futuro cardeal patriarca de Lisboa uma tarde encontrasse o amigo de cabeça atazanada por uma enxaqueca que já durava há dias impedindo-o de suportar a luz e prendendo-o à cama e aos pensamentos depressivos, desafou-o a mudar-se para o Convento dos Grilos, onde ele próprio tomara cela confortável e roupa lavada. Foi já na sua nova residência que o paciente de um mal que se revelaria ciclíco preencheu as papeladas do concurso para assistente da faculdade e que recebeu a notícia do bom êxito da diligência.

Um dia quente de agosto tomaram os dois António o comboio na estação de Coimbra B para só descerem na Gare de Austerlitz. Da Paris dos anées folles, que viram à vol d’oiseau, deram um salto a Liège, na Bélgica valã, para assistirem a um congresso da juventude católica. Foi a ùnica incursão além-Pirinéus do futuro ditador, que tão pouco viria a pôr o pé nos territórios africanos cuja posse por Portugal muito mais tarde defenderia contra todos.

Na Coimbra menina e moça veio António a reencontrar Júlia Perestrelo, e logo mexeu os cordelinhos para lhe dar explicações sobre matérias escolares. Aceleravam-se-lhe os batimentos cardíacos quando se sentava com ela à mesa e ambos se debruçavam sobre os textos de Júlio Dinis ou de castilho. Marcou-lhe uma vez como tarefa uma redacção sobre o amor, e tanto bastou para que a mãe da aluna acoresse a refrescar-lhe a memória em tom severo: ele não passava do filho do feitor e nesse lugar reverente deveria manter-se per omnia soecula soeculorum. O ofendido nunca perdoaria a afronta, mas escolheu outras ouvintes para o seu fio de voz. A ligação com Glória castanheira proporcionar-lhe-ia não só alguns devaneios com a própria como ainda a companhia das amigas alegres e estouvadas. E era em grupo que frequentavam as festas selectas da cidade e ouviam cantar o fado aos estudantes de cordas vocais mais talentosas. Simplesmente, Glória não era rapariga que deixasse as coisas pelo meio: queixou-se a António de ele não transpor distâncias -e o ex-seminarista rompeu por carta com uma frieza metódica e cortante.

Foi decerto a pensar ainda em Júlia que escreveu e fez imprimir uma crónica sentimental chamada Ela. Cerejeira, que veria sempre o amigo como um padre laico, não gostou e fez-lho sentir franzindo a testa.

data da época o encontro com Maria Laura bebiano, com quem viria a manter um longo namoro de alguns anos. natural de Coimbra, ruidosa e agitada de seu natural, a bela jovem estabelecia com o sorumbático professor o contraste que ele sempre procurava nos seus relacionamentos femininos. cedo ficou para trás o período em que baixavam os olhos sempre que se cruzavam na rua.

CITIZEN SALAZAR As discursatas e as artigalhadas conservadoras tinham entretanto criado uma certa aura de político Ancien Régime em torno do introvertido assistente de Direito. Em 1921, influenciado por outros, candidatou-se a deputado pelo centro Católico Português. Eleito para S. Bento, compareceria no entanto a uma única sessão do parlamento: não suportava Lisboa nem as querelas partidárias que depois da guerra de 1914-18 tinham subido de tom. Quatro anos volvidos, ei-lo de novo a fazer parte das listas - mas desta vez sem êxito. O golpe militar de 28 de maio de 1926 tranquilizou-o. A República enterrava as suas aspirações, e o poder forte instalado pelas fardas oferecia ao seu pensamento antiliberal campos de aplicação inesgotáveis. Sidónio pais tinha episodicamente indicado o caminho a seguir por quantos não se compadeciam com as liberdades de opinião e de associação; Mussolini erguera na bota italiana um estado corporativo de punho de aço assente na histeria das massas. Ele próprio, se pudesse, saberia muito bem o que queria e para onde iria. depois de um convite para a pasta das Finanças e de uma passagem efémera pelo Terreiro do paço, regressaria em força em 27 de Abril de 1928, armado de plenos poderes, para não abandonar a cdeira nos 40 anos seguintes. António, o protagonista da nossa estranha história, passa definitivamente a chamar-se Salazar.

Talvez a morte da mãe, entretanto sobrevinda, haja contribuído para a aceitação plena do cargo que antes lhe desagradara. para o psiquiatra José gameiro, o papel de maria do Resgate na biografia do filhoé tudo menos negligenciável. sem a presença física da deusa intangível no Vimieiro, o candidato a saneador das finanças públicas e privadas ficava decerto interiormente mais pobre, mas obviamente mais livre para a escolha e a fixação de outras devoções.

Maria Laura acompanhou na mudança para a capital o ainda jovem ministro e ditador da Finanças. Viviam separados, ele no Hotel Borges da Rua garrett e ela em casa de parentes, mas encontravam-se por vezes no gabinete austero das arcadas, onde a moça alegre e sentimental lhe deixava mensagens amorosas em francês elegantemente caligrafadas na agenda - “Je táime plus qu’hier, moins que demain” -, e diariamente na Pastelaria Bernard, vizinha do quarto de solteiro do ex-assistente de coimbra. Quando Salazar alugou casa na António Augusto de Aguiar, Laura ajudou-o na decoração. E foi na Bernard, diante das chávenas do café, que teve lugar a cena da ruptura, contada por Diogo Freitas do Amaral nas suas recentes Memórias a partir de um depoimento recolhido em 1980 junto da mulher nela envolvida e que dois anos depis viria a falecer. laura chegou um pouco atrasada, vestida de modo espampanante, atraindo os olhares das mesas circundantes. Salazar não gostou e lançou-lhe severamente que a mulher que com ele casar apenas há-de usar os vestidos que ele puder comprar-lhe com o seu vencimento. A jovem não quis ouvir mais e virou-lhe as costas fazendo-lhe notar que nunca ele lhe falara em casamento. Pouco depois casava e radicava-se em madrid. Franco Nogueira, o esforçado e dedicado biógrafo do ditador, não chegou nunca a apurar quem era a misteriosa M.L.B. que escrevia mensagens amorosas na sobrecarregada agenda do ministro. Quis o acaso que só agora viesse a ser revelada a sua identidade, fruto de um encontro fortuito do então presidente do CDS na capital espanhola.

A VISÂO vai mais longe, Rui Brito e Cunha, actual embaixador de Portugal em Moçambique, revelou-nos alguns pormenores a partir de conversas mantidas com Laura, proprietária da casa da calle velásquez, decorada por Duarte Pinto Coelho, onde viveu quando era cônsul-geral na capital espanhola. existiam ali umas almofadas com bordados da madeira e uma lanterna de ferro forjado de mau gosto que tinham “a marca” Salazar: as primeiras haviam sido bordadas por Maria laura para a casa da António Augusto de Aguiar, tendo-as Salazar posteriormente devolvido; a segunda fora oferta do próprio ministro das Finanças numa noite de especial arrobo poético-amoroso. “Tenho aqui um pesente para si”, disse o antigo seminarista estendendo um embrulho a maria Laura. Era a lanterna. retirou um quadro, pendurou-a na parede, ligou a ficha á corrente, pediu licença para apagar a luz e iniciou um longo monólogo de vinte minutos, explicando que cada um dos vidros coloridos simbolizava uma fase do dia - o amarelo o nascer do sol, o vermelho o ocaso. “Mas a maravilha das maravilhas”, sublinhou o então pequeno ditador, “é o azul-claro. Uma noite de luar”. Tremeu-lhe a voz e concluiu: “A luz do luar é a luz dos namorados”.

Já casada com magno Rodrigues, representante da caterpillar para a Península Ibérica, Maria Laura bebiano recebeu um dia em sevilha (para onde os acasos da guerra civil espanhola haviam empurrado o casal) uma carta de Salazar pedindo-lhe a devolução de toda a correspondência trocada. Encheu logo uma grande caixa com as cartas e enviou-a pela volta do correio.

Data de 5 de Setembro de 1928 uma seca notícia de escassas sete linhas publicadas no Jornal de Notícias, do Porto, segundo a qual o ministro das Finanças se casara nesse dia, em Santa Comba, com a irmã do seu subsecretário de Estado. Franco Nogueira sempre foi peremptório: houve decerto um erro nessa local; não existe qualquer registo de um casamento de Salazar, nem tão-pouco os seus amigos mais intímos têm ou tiveram conhecimento de tal cerimónia. Como, porém, não há fumo sem fogo, é de crer que o discípulo de maurras tenha mantido alguma ligação, mesmo que fugaz mas nesse caso intensa, com a irmã de Guilherme Moreira.

O VULTO DE SÂO BENTO Salazar, permanentemente acometido de crises de depressão e perseguido pelas fortes enxaquecas renitentes a qualquer fármaco, mudou-se para a Rua bernardo Lima com a governanta severa - D. Maria - que trouxera de Coimbra e que ali o servira e a Cerejeira. O seu convívio doméstico com a aia deu azo ao longo dos anos aos mais desencontrados comentários, mas nada prova que tenha havido entre ambos mais do que um relacionamento de patrão e empregada. Era esta que, com mão de ferro, chefiava as criaditas que desembarcavam do comboio para servir o “senhor doutor”, em cuja casa não se mantinham em regra mais que uns escassos dias ou semanas, pois a palma de D. Maria descia pesada sobre elas a cada mínimo deslize.

Salazar em breve adoptaria como filhas duas meninas de tenra idade, familiares da governanta, e com elas partilharia o tecto e os bens materiais ao longo de 20 anos. Micas e Maria Antónia engendraram involuntariamente em redor da sua existência algumas lendas pertinentes acerca da sua paternidade física do ditador. sabe-se agora em definitivo que não fora ele quem as gerara, mas se assim fosse não teria diferido de forma significativa a sua atitude para com elas. aconchegou-lhes a roupa na cama, ensinou-as a ler, a escrever e a contar. Sobretudo incutiu-lhes o vírus da sua educação seminarista, obrigando-as a repetir de cor s mais insignificantes subtilezas da chamada doutrina cristã. Nas viagens de automóvel para santa Comba, enquanto um motorista de outro mundo os conduzia isolado no seu casulo de silêncio, Salazar examinava a pente fino os conhecimentos das “afilhadas” apertando-as com sabatinas que elas temiam desde a véspera. Mas também disputava com elas uma espécie de jogo da malha, no corredor de S. Bento, já depois da mudança da “família” para a residência oficial.

O ditador separava por completo a sua existência pública da privada, como o médico monstruoso de Stevenson. A própria casa penumbrosa dividia-se em duas partes distintas, por onde ele era o único a circular livremente. de um lado, se era Inverno, com uma manta pelos joelhos, despachava com os ministros - sempre um de cada vez - e recebia as mulheres de alguns deles, a quem oferecia flores e galanteios desajeitados. Do outr, almoçava, jantava e conversava com D. Maria e as raparigas exclusivamente sobre temas domésticos. Era a governanta quem administrava a domus, mas ao pater familias competia fazer o orçamento e fiscalizar as despesas. se uns sapatos se gastavam, propunha a aplicação de meias solas. Ufanava-se ao afirmar que vivia exclusivamente do seu vencimento e que quando abandonasse o poder não levaria para a beira nem a poeira dos bolsos.

A essa época remonta o início de uma misteriosa ligação afectiva, traduzida em encontros e epístolas melosas. Franco Nogueira não sabe dar o nome à partennaire de Salazar neste episódio amoroso - e ninguém saberá enquanto o acesso ao seu espólio se mantiver interdito nas prateleiras da Torre do Tombo. Apurou o biógrafo, no entanto, que ainda em 1950, Salazar recebia dessa terna admiradora com quem passara a noite do Ano Novo de 1936.

Por esses anos criara já o ditador a Mocidade e a Legião Portuguesa. A União Nacional era o partido único sem ter o nome de partido e a PVDE prendia e torturava impiedosamente os adversários do regime. Ele afirmava com orgulho ser desprovido de coração, o que não o impediria de verter lágrimas no dia em que - muito mais tarde - Micas deixou S. Bento para casar. Durante a guerra de Espanha apoiou abertamente os nacionales de Franco contra aqueles a quem chamava rojos e que mais não eram do que defensores da Constituição e da República. Alguns destes, que conseguiam atravessar a fronteira e entrar em Portugal crendo-se a salvo, eram de imediato recambiados para os fusis do governo de Burgos. O povo português acostumou-se a só falar de política por murmúrios assustados. Em Julho de 1937, um grupo de activistas mais decidido levou à práctica na Avenida barbosa du Bocage um atentado à bomba de que Salazar escapou ileso por um triz. “Vamos à missa”, disse fleumaticamente a vítima falhada para os acompanhantes, sacudindo o pó do fato. Em seguida, foi aberta a caça ao homem.

Saneadas as finanças e practicamente esmagada a oposição, Salazar dedicou-se prudentemente à tarefa de encomendar obras públicas de fachada que lhe perpetuassem a memória. a sua escola não era porém a dos ditadores italiano e alemão - não o seduziam nem as arengas do Fuhrer nem as encenações de Mussolini. José Gameiro interroga-se: teríamos tido um fascismo de massas se outra tivesse sido a personalidade do “chefe”? Tão-pouco o nacionalismo propugnado pelo erroneamente chamado solitário de S. Bento sofre comparação com as tonalidades agressivas das políticas externas de Roma e de berlim, pautando-se antes pela exaltação dos valores do passado á maneira dos antigos historiógrafos latinos e pela salvaguarda feroz e vigilante de um quotidiano e de um património pouco mais que rústicos. O nosso herói tinha horror ao progresso material e essa fobia servia-lhe de alibi quer para a práctica de apertadas economias de orçamento quer para o exercício de uma severa vigilância de costumes. pelas razões aduzidas, a sua resposta à crise do liberalismo vestiu mais uma casaca absolutista e pré-revolucionária do que as roupagens operáticas dos regimes totalitários nascidos da dissoluçãp da Belle Époque nos campos de batalha da Flandres.

Durante a Segunda Guerra Mundial, acumulando a pasta dos negócios Estrangeiros com a Presidência do Conselho, teveo antigo amante de Felismina artes para deixar o país á margem do conflito. Enquanto, em Espanha, o Caudillo vencedor da sangueira civil se desmarcava em abertas declarações de apoio ao esforço da Whermacht, Salazar observava cautelosamente o desenrolar dos acontecimentos sem abrir o jogo. Pesem as suas afinidades ideológicas com as potências do Eixo, teve sempre a manha de dar a entender que valorizava particularmente a seis vezes centenária aliança com a Grã-Bretanha. Num bom entendimento com Franco, evitou deste modo a ocupação do território, “sacrificando” embora as bases dos Açores ao esforço de guerra Aliado. Aplaudiram-no no termo do conflito os seus admiradores como um vencedor, enquato a oposição clamava ser mais do que nunca tempo de mudança. mas Salazar não desvoiou um centímetro o azimute da sua política e, depois de anunciar a próxima realização de “eleições tão livres como na livre Inglaterra”, viciou os dados do jogo ao ponto de estes lhe garantirem a vitória em sucessivos actos eleitorais.

O AMOR DE UMA VIDA No campo sentimental, a sua existência ilusoriamente solitária ia conhecendo estremecimentos de emoção. Não tinham deixado de o perseguir os humores melancólicos que remontavam á época coimbrã, e as enxaquecas e a fobia ao sol tornaram-se mais do que nunca uma constante. Durante alguns meses. manteve-se em clausura na residência da Calçada da Estrela, entre os receios dos pupilos e clientes que o incitavam a falar ao menos pela rádio e a esperança vã dos democratas eternamente frustrados. Superada a crise e recuperadas a forma e o estilo políticos, prendeu-se de amores por carolina Asseca, uma viúva jovem e cativante que passou a acompanhá-lo em cerimónias públicas. Ela visita-o amiúde, passando os dois horas de intimidade na parte oficial da residência, e nos dias em que não era possível ele recebê-la iam entregar-lhe á sua quinta de Sintra enormes ramos de flores. Os telefonemas eram normalmente frequentes e prolongados. Não tardou que o país começasse a falar do matrimónio, e o próprio Salazar encarou a hipótese de se retirar para o recato dos seus quintais do Vimieiro, levando uma vida “normal” de homem casado. Mas fosse porque a Carolina Asseca não agradava a ideia de passar o resto dos seus dias no meio das árvores de fruto e das capoeiras, fosse porque a Salazar repugnava a ideia da desistência do poder, o projecto não chegaria jamais a concretizar-se.

Morto e enterrado Carmona, o general dócil que o servira duas décadas na Presidência da República, e inventado Craveiro Lopes para o substituir, Salazar recebeu em 1951 a visita insistentemente solicitada e outras tantas vezes recusada de uma jornalista francesa desembarcada do Sud expressamente para o entrevistar. assim entrou na sua vida “um vendaval loiro e perfumado” (as palavras são do próprio) chamada Christine Garnier.

Rompido o gelo inicial, estabeleceu-se entre os dois uma corrente de simpatia, cedo transformada num amor descabelado. Christine, uma trintona de pele clara que transportava consigo o charme prisiense, visitaria repetidamente Salazar e chegaria mesmo a passar uma temporada de férias na casa do Vimieiro. Ali se deixaram fotografar junto da fonte e nos degraus do tanque, com as prosaicas parreiras e a hera viçosa de ouvido atento aos segredos sussurados. Ela, de salto alto, traçava a perna com elegância, numa atitude simultãneamente coquette e enlevada, como se a presença a um palmo daquele sexagenário de casaco de linho branco lhe refinasse os sentidos de poseuse. O romance duraria sete anos, embalando Salazar ao longo daquele que terá siod o período politicamente masi tranquilo da sua permanência no poder. De permeio fora dado á estampa em paris o livro de Christine Vacances avec Salazar, uma crónica amorosa de exaltação do homem amado rapidamente traduzido para português não obstante as veladas censuras e as discretas manifestações de desgosto dos senhores do regime. Os telefonemas frequentes, a troca de cartas apaixonadas, os presentes do ditador para a jornalista marcaram obsessivamente esses anos em que Salazar se terá mais do que nunca sentido preso a uma mulher. Que ele possuía a ciência do flirt não padece de dúvida: sabia enredá-lo no seu encanto gaiato, fazer-lhe promessas se era caso disso, mostrar-se umas vezes paciente diante dos obstáculos mais do que pressentidos e outras bicá-lo com o ferrãozinho do ciúme. O suposto eremita de S. Bento cruzava pela primeira vez o seu destino com o de uma femme du monde livre e desinibida, admirada e cortejada no seu meio e conhecedora do bom manejo das armas com que se tratavam os torneios afectivos.

Certo dia, Salazar levou Christine a jantar em casa do seu amigo Henriques Chaves, presidente da Câmara de Évora e avô do embaixador Brito e Cunha. Este contou á VISÂO o que o jovem escutara do avô. Em síntese, que o ditador estava absolutamente pendente de tudo o que a francesa dizia, como um garoto enleado nos laços do primeiro amor. Sentaram-se os três num degrau da escadaria do palácio de D. Manuel, e Christine, sabiamente, levantava as saias quanto baste para que Salazar lhe visse as pernas acima do joelho.

Uma carta de despeito endereçada pela sua misteriosa namorada que remontava aos anos 30 (e outras terá decerto havido relativas ao romance com carolina Asseca) veio ainda fazer crescer a confusão na sua cabeça e aumentar-lhe as ninsónias. Desorientado, acabaria por fazer prevalecer o exercício do livre arbítrio, cortando rente a golpes de força de vontade a sua atracção fatal pela estrangeira.

Tudo indica que ao colocar um ponto final na história romanesca com Christine - que em breve casaria em França com um compatriota - terá também posto cobro aos cevaneios amorosos maios ou menos públicos. Aos 69 anos, os invernos anos iam-lhe pesando, e o terramoto político das eleições de Humberto delgado exigia a mobilização da totalidade dos seus recursos mentais. Havia que reprimir, que esmagar, que pisar, que assegurar a perenidade da cadeira do poder, agora que pressentia o risco de ser apeado e de terminar sem glória uma carreira estranha e única. Tornou-se-lhe transparente a ideia forte de que apenas morto sairia de S. Bento e passou a agir em conformidade com essa certeza faraónica.

Os ventos, aliás, sopravam de outros quadrantes.

DEPOIS DA QUEDA Com o país agitado pelas acções espetaculares de delgado e henrique Galvão, Salazar assistiu perplexo á anexação pela União Indiana dos territórios de Goa, Damão e Diu, logo seguida do eclodir da guerrilha anticolonial em Angola, em Moçambique e na Guiné. Mergulhado nas ideias feitas do passado mostrava-se incapaz de compreender e aceitar o fenómeno da emancipação dos povos colizados, essa importante linha de força do pós-guerra. Como Churchill no caso de Singapura, exigira à magra guarnição goesa uma resistência mártir, no que não foi, para sua ira, obedecido. “Rapidamente, e em força para Angola” foi o mote que imprimiu aos primeiros envios de tropas destinadas a combaterem pela salvaguarda do mito de “uma presença multissecular” em “províncias tão portuguesas como o Minho ou o Algarve”. Isolado no contexto das nações, desapoiado pelos próprios Estados Unidos de Kennedy, apesar de o anticomunismo ser o grito e batalha de Lisboa como de Washington, o Portugal que Salazar condenara a um papel digno de chacota aguardava apenas a morte de um ditador que se eternizava como o rolar das estações.

Nos últimos e conturbados anos de vida, entrereve ainda os momento de ócio com aventuras galantes inconsequentes. Não se tratava já de espevitar a chama de sentimento elevados, mas antes de satisfazer as necessidades físicas mais básicas. Parceiras que com ele contracenassem nesse palco de comédias de situação nunca lhe faltaram, como nunca tinham faltado nas décadas anteriores, inclusive nos períodos em que mantinha na aparência relações sentimentais estáveis. Selectivo, escolhia criteriosamente essas interlocutoras dos sentidos, recrutando-as entre as candidatas da “boa sociedade” cujos privilégios ele ajudara a manter como ninguém.

A fatal queda de uma cadeira de convès instalada no terraço do Forte de S. António no Estoril, onde costumava passar algumas temporadas, afastou-o irremediavelmente da ribalta ao provocar-lhe um hematoma cerebral de que jamais recuperaria plenamente.

De Setembro de 1968 a 27 de Julho de 1970 - o dia da sua morte, há 25 anos - viveu uma vida vegetativa, primeiro internado no Hospital da Cruz Vermelha de Lisboa, depois mentalmente incapacitado na residência de S. Bento, onde os vassalos fingiam ir escutar e acatar as suas directrizes. No caminho para casa, sentado no banco detrás do automóvel preto, tomava-se ainda de liberdades para com as enfermeiras que, rindo nervosamente, o censuravam. As inibições do jovem seminarista de Viseu pertenciam cada vez mais a uma galáxia perdida no tempo e no espaço, com Felismina e Júlia Perestrelo a acenarem-lhe de um mundo soterrado. a práctica do poder absoluto ao longo de 40 anos derrubara a barricada da timidez, sem por isso ter mudado o homem nem levado de vencida os seus mais intímos terrores. Como o cidadão Kane de Orson Welles, António de Oliveira Salazar ter-se-á lembrado nesses dias dos botões de rosa da sua infãncia tão próxima e passado em revista as etapas agitadas da adoração infrene pela mãe. Fazendo-se diplomaticamente acompanhar do marido condoído, uma Christine Garnier de cinquenta e poucos anos sempre louros e agitados veio ainda visitar o enfermo com o seu rasto de parfum e estender-lhe a mão para ele beijar.

E como Inês de castro, depois de morta rainha, sentaram-no moribundo ao cantinho, num trono de mantas de xadrez, e prolongaram a representação até fartar. mas já não era drama, era comédia

VISÂO, 20 de Julho de 1995