ANTÓNIO BOTO

O crucificado

Nasceu há cem anos um poeta crucificado e pouco divulgado, por motivos morais

FERNANDO DACOSTA

Um livro bastou, Canções, para dar a António Botto, nascido a 17 de Agosto de 1897, nos arredores de Abrantes, um lugar cimeiro na nossa literatura. “Elas foram nos anos 20 e 30, como ainda muito ulteriormente, uma das grandes forças da poesia moderna portuguesa, se bem que das menos confessadas e reconhecidas”, escreverá Jorge de Sena.

Botto emerge nos cafés e livrarias da Lisboa intelectual de então. Torna-se amigo de Pessoa, de Aquilino, de Pascoaes, de Régio. Convive com actores, cineastas, jornalistas, fadistas. Com grande audácia, assume publicamente a sua homossexualidade. É o primeiro escritor a fazê-lo, a exibi-lo entre nós. Isso dá-lhe, uma auréola de maldito - fascinante para uns, insuportável para outros.

A polícia, chefiada por Ferreira do Amaral, apreende as Canções. Faz o mesmo a obras de Raul Leal (Sodoma Divinizada) e Judite Teixeira (Decadência); a António Ferro proíbe, no dia seguinte á sua estreia, no São Carlos, a peça Mar Alto.

PURA FANCARIA

Um grupo de estudantes, como Marcello Caetano e Teotónio Pereira, publicam escandalizados (a 6 de Março de 1923), um manifesto contra Botto, dirigido aos “poderes constituídos” e a “todos os homens honrados de Portugal”. Fernando Pessoa, Aquilino Ribeiro, José Régio, Teixeira Gomes solidarizam-se com o visado. O último escreve uma carta-prefácio para nova edição de As Canções, que as autoridades não se atrevem (Teixeira Gomes era o Presidente da República) a confiscar.

Pessoa vem, por sua vez, a público com um Aviso por causa da moral. Nele, Álvaro de Campos verbera o comportamento dos jovens a quem exorta: “Ò meninos: estudem, divirtam-se e calem-se. Divirtam-se com mulheres, se gostam de mulheres; divirtam-se de outra maneira se preferem outra. Tudo está certo, porque não passa do corpo de quem se diverte. Mas quanto ao resto, calem-se. Porque só há duas maneiras de ter razão. Uma é calar-se, e é a que convém aos novos. A outra é contradizer-se, mas só alguém de mais idade a pode cometer.”

A crítica coloca-se do lado dos moralistas. Álvaro Maia achincalha (na Contemporânea) o poeta por “réu de nefando”, cujo livro qualifica de “rebotalho”, de “pus literário”, de “miséria impressa”, de “torpe exibição do amor trácio que só tem de especial o ser, em toda a acepção da palavra, uma porcaria”. Tomás Ribeiro Colaço designa (na revista Fradique) a obra de Botto como “pura fancaria”.

Pessoa não desarma. através dos heterónimos e dos jornais, carrega contra os que aviltam Botto. “Distingue-se com facilidade qualquer outro poeta, português ou estrangeiro, é o único a quem a designação de esteta se pode aplicar sem dissonância.” Ele “afasta-se de toda a moralidade no modo por que canta a beleza física”, e “de toda a imoralidade no modo por que canta o prazer”.

ASSÉDIO A UM COLEGA

Em 1942, é demitido do emprego (escriturário de 1ª classe do Arquivo Geral de Identificação) por desobedecer a ordens superiores, por assediar um colega de serviço e por fazer (e recitar) versos na hora de expediente. Passa a sobreviver de colaborações e direitos de autor. Escreve muito. Vende bem. O seu Livro das Crianças é adoptado oficialmente nas escolas irlandesas. As Canções atingem a 14ª edição. Inúmeros fados de êxito são baseados em poemas seus.

Luís de Oliveira Guimarães, que o acompanhou por tertúlias na Brasileira do Chiado, recorda-o como “um homem de talento, bastante irónico e inteligente. O seu comportamento sexual afastava, no entanto, muita gente do seu convívio, havia pessoas que não lhe falavam sequer. Era objecto de chacota quando entrava nos cafés, livrarias, nos teatros. Criou uma atmosfera muito má, muito negativa em torno de si. Com o passar do tempo, começou a sentir que não o respeitavam, não o admiravam como merecia. Isso fê-lo partir para o Brasil.”

A 7 de Maio de 1947, João Villaret, Amália, Palmira Bastos, Aquilino Ribeiro, homenageiam-no com um recital no São Luiz (repetido no Porto). Aquilino foi, na sua intervenção, magnífico; Villaret, avassalador. Muitos saíram com lágrimas, e com vergonha do teatro. A roda do destino desandará, porém, e em velocidade crescente, para Botto.

“Ele fingia que não ligava às ofensas que lhe faziam. Refugiava-se no sarcasmo, na crítica, sobretudo na crítica a si próprio, mas no fundo sofria muito”, lembra a actriz madalena Sotto, amiga e interprete do poeta. “ Quando resolveu exilar-se estávamos a trabalhar no projecto de um filme que começara a escrever. Ainda não tinha título, e o realizador deveria ser o Leitão de Barros ou o Lopes Ribeiro. A notícia publicada no Diário do Governo sobre a sua exoneração, por homossexualidade, desmoralizou-o, embora ironizasse dizendo: sou o único homossexual reconhecido no país. As pessoas tradicionais não gostavam dele. Ele, aliás, dizia-lhes na cara o que pensava delas, não tinha pejo em fazê-lo. Era um ser superior, e sabia que o era.”

ATROPELADO À BEIRA-MAR

Sete anos mais tarde pede para ser repatriado. Não consegue, porém, dinheiro para o regresso. As dificuldades económicas, a doença, afundam-no cada vez mais. O Rio de Janeiro faz-se-lhe uma cidade hostil. Não tem saída. auto censura-se no que escreve, reescreve. As suas crónicas na imprensa e na rádio, os seus recitais, as suas peças de teatro (Flor do mal, Nove de Abril, Alfama), os seus desenhos, os seus contos infantis, as suas reedições, não salvam. O público afasta-se. “Andou pelas ruas da amargura,. Chegou a recitar o fado em botequins de São Paulo. Felizmente tinha gente que o admirava”, recordava Beatriz Costa.

Ao atravessar a Avenida Nossa Senhora de Copacabana, no Rio, é atropelado por um carro do governo. Morre 12 dias depois, a 16 de Março de 1959.

A mulher, Carminda Silva Rodrigues, enviará do Brasil o espólio a João José da Silveira Barros, seu parente, que o doará em 1989, à Biblioteca Nacional. A doação será, no entanto, contestada por Carlos Tomás Botto, sobrinho do poeta, sob a alegação de o tio não ter casado com Carminda Rodrigues - a reedição das obras e o estudo dos originais encontram-se, desde então, suspensos. Foi a última crucificação sofrida por António Botto.

VISÃO, 14 de Agosto de 1997