HISTÓRIA DO BANHO

A ÁGUA NÃO LAVA TUDO

Tomar um “duche” ou um banho de imersão é, no presente, um acto banal; uma rotina quotidiana de grande parte da população, um ritual institucionalizado. No entanto, uma conquista bem recente. Aceite sobretudo como rito de festa e de cortesia, o banho regrediu ou avançou consoante mudaram os preconceitos sobre a água. Durante dois séculos a Europa flagelada pelas várias pestes utilizou a água apenas para abluções. Lavar o corpo era abrir os poros à entrada de pestilências. Até que há cerca de um século a ciência o reabilitou.

Texto de Maria José Mauperrin

Expresso, 21 de Setembro de 1996

Definido como líquido incolor, transparente e inodoro, composto de hidrogénio e oxigénio, a água, estigmatizada por gentes de remotas eras, tem acarretado pesados e inusitados anátemas. Culpabilizada de tornar lascisvos os corpos que nela se lavavam, de abrir os poros à entrada de todos os males, confinaram-na à lavagem das mãos e da boca. A roupa nela a lavavam; com ela o rosto aspergiam. Secundarizada, deram-lhe serventia de limpeza excepto a dos corpos.

Atravessou séculos imersa nos obscuros desígnios de normas compulsivas: “Nul bain pendant mille ans”, como escreveu Michelet. Melhor seria dizer que a água não lavou tudo, nem os dislates que sobre ela muitos disseram.

Vagarosamente, foi readquirindo o estatuto perdido. A realeza iria usá-la como luxo e como medicina. No que foi copiada pela burguesia. A plebe contentou-se com a que corria nos rios e ribeiros. Nas fontes e nascentes encontrou benesses que mitificou de milagreiras.

O catolicismo oferece-a mas benta; o Islão di-la purificadora dos corpos.

HÁ 30 ANOS ERA ASSIM

A década era a de 60, nos começos. Não mais do que a 40 quilómetros de Lisboa, a pequena povoação preparava-se para as festas anuais. Ingénuas, as decorações já alindavam as ruas de terra batida. A banda ensaiava; descompassados e estridentes, os acordos desacordavam a noite. Ninguém parecia importar-se com isso, no dia da festa todos assoprariam afinados. Costureiras davam ponto sem nó; que o mulherio não perdoava: roupa a estrear, todos os anos, assim se media o pecúlio de cada um.

O senhor “Manel”, além da venda das hortaliças, alugava a casa, “um alto e um baixo”, como se dizia por aquelas bandas no Verão. Umas notas a mais que nem chegavam a sentir o peso do “sr. Manel” sob o colchão da cama. Dinheiro para gastar na festa. Todo inteirinho. Calças novas de ganga para ele, um vestido de chita para a filha pirralha e uma saia e uma blusa para a Sra. Maria.

Pronto o lado visível, preparava-se a família para o grande momento privado: o cerimonial do banho anual.

Cedo a senhora Maria acendia o lume de lenha no quintal. Panelão no fogo, água a ferver e vá de subir com o líquido fumegante para o quarto. O alguidar de barro era pequeno para a corpulência do senhor “Manel”. Atenta, a senhora Maria, púcaro em punho, lá ia deitando a água sobre o corpo ensaboado do marido.

Ó mulher, tenho sabão nos olhos. Deita-me água na cabeça. Depressa, isto arde que nem raios!”

A senhora Maria resmungava contra a pressa do homem que mal lavava a cabeça. Um banho por ano e mesmo assim apressado. O homem retorquia que mais tempo na água ainda apanhava uma doença.

A cerca de 40 quilómetros de Lisboa, a higiene era conceito de luxo. Em zonas interiores do país, não o podia ser menos: “Nasci na Beira Baixa e, na minha aldeia, com saúde, o banho era no rio”, lembra um conhecido escanção de Lisboa. Herança antiga porque referências as há nos clássicos: “Se hoje o meu amigo/ soubesse, iria migo,/ que ao rio me vou lavar.”

Se o corpo pedia terapêutica, a limpeza passava por outras provas: !Quando tínhamos de ir ao médico, íamos a casa do homem mais rico lá da terra, que tinha uma casa de banho com banheira e nos deixava tomar lá o banho”, recorda o escanção.

OS PERIGOS DA LUXÚRIA

Usavam-se as selhas de madeira ou as banheiras de folha nas casas mais afortunadas, nas zonas urbanas, para o banho semanal. A higiene diária não passava, para a maioria, da lavagem de cara e pescoço no lavatório do quarto. mas nem sempre fora assim.

Romanos e árabes haviam trazido para a península práticas que, em Portugal, iriam perdurar mesmo na Idade Média. Em A Sociedade Medieval, Oliveira Marques afirma: “O costume muçulmano das abluções diárias não deve ter influído pouco nos hábitos dos portugueses a sul do Tejo ou mesmo no Mondego.”

Banhar o corpo, porém ,não implicava então, um estrito conceito de limpeza. Na Grécia, o banho era uma extensão necessária da prática da ginástica; um banho revigorante, frio e breve. “Sanitas” significa saúde e não a eliminação da sujidade.

Em Roma e no Islão estava implícita a ideia de repouso e de convívio: uma prática social, um ritual simbólico.

O banho comunal na Idade Média e o banho turco, nas numerosas formas que assumiu na Europa, tinham fins semelhantes. Que a isso se refere Georges Vigarello, em O Limpo e o Sujo: “Em Setembro de 1462, o duque Phillipe le Bon ofereceu um jantar aos embaixadores do rico duque da Baviera e do conde de Wurtembeerg e mandou servir cinco pratos de carne para festejar nos banhos.”

A ideologia cristã, no entanto, viria a instaurar preconceitos e a impor uma outra moral e consequentes novos costumes. Não que a Igreja não se ativesse à limpeza dos corpos. Mais temia, contudo, pela “sujidade” das almas: os hábitos promíscuos eram uma porta aberta ao pecado. Havia assim que evitar os banhos públicos, locais “propícios à devassidão e ao amolecimento dos costumes” (em A Sociedade Medieval Portuguesa, de A. H. de Oliveira Marques).

Os usos instaurados eram, todavia, obstáculos difíceis de ultrapassar. Apesar de grande parte dos balneários ter sido encerrada ou mesmo destruída, nas grandes urbes, como Lisboa ou Porto, muitos houve que se mantiveram em funcionamento. O mesmo aconteceu em zonas menos populosas como Setúbal, Faro, Loulé, Tavira, Castro Marim, Alfaiates, castelo Bom: “Em Alfaiates, castelo Bom, Castelo Melhor e Castelo Rodrigo, os balneários estavam abertos todos os dias de sol a sol, destinando-se o domingo, a terça e a quinta-feira às mulheres” (em A Sociedade Medieval Portuguesa).

Para os detentores primitivos da moral e dos costumes, o “pecado” morava onde não o podiam controlar. No ano de 745 d.C., São Bonifácio, implacável, proibia que homens e mulheres se banhassem juntos e lançava o anátema sobre os banhos públicos ao apodá-los de “focos de vício”. Mas outras vieram a ser as regras de higiene dos mosteiros, Gregório, o Magno, o primeiro monge a ser papa, autorizou o banho dominical, que passaria a rotina monástica, e aconselhava banhos demorados desde que não se tornassem “numa perda de tempo luxuriosa”, (em Limpo e Decente, de Lawrence Wright).

No século VIII, o papa Adriano I recomendava ao clero que todas as quintas-feiras fizesse uma visita aos balneários, em procissão. Santa Inês, porém, como forma de penitência, morreu aos 13 anos sem nunca se ter lavado. Também a religiosidade de um peregrino - que, no século IV, se dirigia a Jerusalém - fizera com que não lavasse a cara durante 18 anos para não retirar o santo crisma do baptismo.

LIMPEZA A SECO

Nul bain pendante mille ans”, escreveu Michelet ao referir-se ao período da idade Média, anos que muitos historiadores, dos séculos XIX e XX, viram como paradigmas da imundície. Afirmação, contudo demasiado linear. Factores vários contribuíram para que a higiene inflectisse naquela época.

Com os grandes surtos epidémicos instala-se a convicção de que a água, por efeito da pressão e sobretudo do calor, abria os poros e tornava o corpo receptivo à entrada de todos os males. desde o século XV que os médicos condenavam a utilização dos balneários públicos e das estufas. Defendiam a teoria de que, “depois do banho, a carne e o hábito do corpo amolecem e os poros abrem-se e, assim, o vapor empestado pode entrar prontamente no corpo e provocar a morte súbita” (em O Limpo e o Sujo).

Não era apenas o perigo da pestilência que alarmava as gentes medievais. Os medos eram mais vastos. Uma mulher que tomasse banho na água onde os homens tivessem permanecido corria sérios riscos de engravidar. Assim se pensava.

Não menos caprichosos eram os cuidados a ter com o primeiro banho de um recém-nascido. Como a pele de criança, por demasiado sensível, não podia entrar em contacto directo com a água, dever-se-ia espalhar sobre o corpo “cinza de mexilhão ou cinza feita de cornos de novilho, ou ainda cinza de chumbo, bem triturada, e misturada com vinho”. Na crença de que o organismo perde muitas defesas depois do banho, outra receita havia para protecção do recém-nascido: “As crianças, ao saírem do ventre materno, devem ser envolvidas em rosas piladas com sal para confrontar os membros” (em O Limpo e o Sujo).

O banho não serve assim apenas para limpar a pele do bebé; a imersão na água quente destina-se igualmente a corrigir-lhe a morfologia: “Lembrem-se também, enquanto os ossos dos membros estão amolecidos pelo calor do banho, de lhes conferir, manuseando-os suavemente, a forma e a rectidão que devem ter para formar um todo perfeito” (ibidem). Hábito que chegou até às nossas bisavós com o uso da touca nos recém-nascidos para lhes moldar as orelhas.

Terá sido, por certo, por razões semelhantes que o então delfim de França, mais tarde Luís XIII (século XVII), só tivesse tomado um banho completo aos sete anos e lavado as pernas, pela primeira vez, aos seis.

Cai em desuso o banho, que tantos perigos acarreta. Limpa-se apenas o visível: “Lavar a cara de manhã com água fria é tão asseado como saudável”, Preconizam as normas de civilidade da corte, a partir do século XVI. Lavar é antes friccionar; limpeza a seco. Utiliza-se a água apenas nas mãos e na boca: “As crianças limparão o rosto e os olhos com um pano branco, que desengordura e deixa a pele na sua constituição e tom natural. A água prejudica a vista, provoca dores de dentes e catarro” (em O Limpo e o Sujo).

os indesejáveis odores corporais, sobretudo dos adultos, não permitem ser esquecidos: Para evitar o odor das axilas, que cheiram a bodum, é singular embeber a pele com trocisco de rosas.”

Jean Baptiste de La Salle, autor de um tratado de normas de civilidade, em 1736, não se esquecia de recomendar os cuidados a ter com os cabelos. Abolia a lavagem, mas mandava que se friccionasse o cabelo com pó de farelo seco. Operação que deveria ser feita frequentemente.

Este arremedo de limpeza marcará a imagem da aristocracia dos meados do século XVII. Quem, como a burguesia, não respeitasse o preceito era apodado de desmazelado e sujo. De tal modo se arreigou no imaginário da época que mademoiselle de Montpesier, prima de Luís XIV, numa altura em que se descuidou a apresentação, escreveu no respectivo diário: “(...) Não usava sinais no rosto nem pó no cabelo. A negligencia do penteado mostrava o meu cabelo sujo como um verdadeiro disfarce.” Bem ela sabia:”Uma dama só poderá ser considerada/ Se tiver a cabeça perfumada:”

“DONNER À LAVER”

Durante os séculos XVI e XVII a Europa não se lava com água. O banho público e privado desaparecem quase totalmente. A higiene passa a ser feita de outras maneiras com destaque para a “lavagem” com roupas. Receosa dos perigos imanentes da agua sobre o corpo, rejeita as abluções directas. Instaura-se como que uma fobia colectiva ao banho. São, nesses tempos, o último reduto da higiene corporal,. Para trás ficavam os banhos medievos, com toda a família e convidados a banhar-se na mesma água. Não tinha ainda a nudez o peso do “pecado”; outras eram as faltas de decoro. Estabelecia a etiqueta que à mesa não se devia “palitar os dentes com a faca ou limpá-los à toalha” (em Limpo e Decente). Outro dos preceitos de boa educação e linhagem a observar pelos medievos: “Se cospes na mesa ou em outro sítio /ter-te-ão por pessoa descortês.”

Imperdoável falta de civilidade e cortesia seria desrespeitar as regras instituídas do “donner à laver”. Consistia este protocolo em passar o “lava-mãos” - um lavabo e um jarro de água, ornamentados a oiro ou a prata - ao parceiro da mesa. Cerimonial que apenas poderia ser interrompido pela pessoa que, pela sua importância, sentava à cabeceira da mesa. O costume cai em desuso no século XVII, com a generalização do uso do garfo.

Também no século XIV era hábito em Portugal lavar as mãos antes e depois da refeições. Os criados traziam “justas ou gomis”, de prata ou de outro metal segundo a abastança do anfitrião, e “bacia” grandes, sobre as quais se colocavam as mãos: “Em banquetes de especial requinte, a água simples podia ser substituída por água de rosas ou outro perfume” (em A Sociedade Medieval Portuguesa).

Limpavam-se as mãos a “napeiras”. Se a etiqueta medieval dava grande ênfase á lavagem diária das mãos, cara e boca, não tinha a mesma preocupação com o banho. Inclusive, criticavam-se os hábitos de limpeza dos dinamarqueses por “pentearem os cabelos todos os dias, tomarem banho todos os sábados e mudarem de roupa com frequência” (em O Limpo e Decente).

A ORDEM DO BANHO

Quer o banho quer a lavagem foram praticados, através dos tempos, em algumas religiões e também na Cavalaria como um ritual. O islamismo (o Islão não aceitou a banheira por considerar que era o mesmo que remolhar o corpo na sua própria água suja) e o cristianismo atribuíram às abluções o simbolismo da purificação.

Ao lavar as mãos e declarar-se “inocente” pelo derramamento do sangue de “um homem justo”, Pôncio Pilatos mais não quis do que “purificar-se por entregar Jesus aos carrascos”.

O mesmo simbolismo de purificação pela água tinha o cerimonial da investidura na Ordem do Banho/Knights of the Bath. Instituída por Henrique IV de Inglaterra, aquando da sua coroação, em 1399, para se ser armado cavaleiro havia que cumprir um ritual que começava por entregar o candidato aos cuidados de dois escudeiros “de severos princípios, respeitados na Corte tanto pela educação como pelos feitos de Cavalaria”. Dirigido pelos dois escudeiros, um barbeiro escanhoava e cortava o cabelo ao futuro cavaleiro. Feito isto, conduziam-no a uma banheira “inteiramente forrada de linho e panos ricos”, onde, já dentro de água (fria), era visitado por dois cavaleiros “graves e idosos” que o informavam, instruíam e aconselhavam no tocante á Ordem e aos feito se Cavalaria, enquanto lhe despejavam água sobre o corpo.

os escudeiros retiravam-o do banho e metiam-no na cama, onde permanecia até enxugar. Era-lhe então vestida uma camisa branca e, por cima, “uma túnica de pano grosseiro e de cor avermelhada com longas mangas e um capuz como os dos eremitas”.

Terminados os preparativos preliminares, reapareciam os dois cavaleiros “graves e idosos” para o conduzirem á capela, precedido dos dois escudeiros “que gracejavam e bailavam ao som da música dos menestréis”.

O ritual exigia ainda uma velada de armas até ao amanhecer: “O toque simbólico dado com a espada para o armar cavaleiro - Knights of the Bath - vinha pela manhã” (em Limpo e Decente).

SEJAMOS ALEGRES

No século XV, em Nuremberga, na Alemanha, os Mestres Cantores/Meistersingers incluíam no repertório canções em que exzaltavam os prazeres ligados à prática do banho: “Àgua por fora, vinho por dentro, sejamos alegres.”

O banho não era entendido, também não ofora em séculos anteriores, como um acto de higiene. as estufas -salas de vapor - são sobretudo locais de prazer; o banho não passava de pretexto. “Aller s’étuver”, ir à estufa, tinha um sentido inequívoco: ir ao encontro da libertinagem.

Da má fama das estufas já davam conta registos de 14441, quiando em Avignon foi proibida a entrada de homens casdos naqueles locais, reconhecidos como lugares de prostituição. Quase 100 anos depois (1538), os moradores da Rue des Ètuves, em Lyon, apresentavam queixa contra a má vizinhança das estufas, onde se registavam “grandes escãndalos, rixas, homícidios e vários outrosd perigos inconvenientes” (em O Limpo e o Sujo). Francisco I não teve outro remédio: mandou encerrá-las. Em 1411, já Henrique V mandara encerrar as aestufas de Londres e seus arredores.

No século seguinte, não vai diferir as razões que levaram a França a tomar a mesma aitutde. as trangressões continuaram a ser muitas e graves: “abominações, roubos, homícidios, agitação”. Os acusados de perpretarem tais enormidades são denunciados como “homens e mulheres de má vida”.Cultura e desejo opõem-se; as estufas não servem a “ordem” estabelecida. Fechem-se as estufas. Por mais tempo vão subssistir os banhos na privacidade das casas e nos palcetes dos nobres. No entanto, o princípio do banho em privado não diferia do praticado em público: fruição e lascívia. A higiene não fazia parte do contexto.

As razões que condicionam o seu desaparecimento não são morais nem civicas, como as que levaram à proibição das estufas. os preconceitos eram outros. En redor da água e do corpo prevaleciam os fantasmas dos perigos mortais que o banho poderia acarretar. A ideia estava implantada: o corpo banhado fragilizava-se; permitia a entrada, pelos poros dilatados, de todas as pestil~encias.

EU CATO-TE, TU CATAS-ME

Avessa á água, na Europa, a partir do século XV, encontra-se outrra maneira de estar limpo. Não se lava o corpo, fricciona-se com panos embebidos em água e passa-se a mudar de camisa, com frequ~encia.

Cria-se um novo conceito de limpeza. mudar de ropua interior é limpar a pele, sem os perigos inerentes ao banho: “Se um homem transpirou a trabalhar, fica-lhe bem mudar de camisa “(em O Limpo e o Sujo).

A ideia genraliza-se e perdura. A higiene pessoal passa a ser simbolizada apenas pela roupa.

Nos meados do século XV, um estudante pobre contava o que tinha de fazer para se desembaraçar dos parasitas que lhe enxameavam o corpo: “Muitas vezes, no Verão, ia lavar a minha camisa nas margens do rio Oder; em seguida pendurava-a num ramo e, enqunato secava, limpava o meu fato, cavava uim buraco, onde metia um monte de bichos, cobria-os de terra e espetava-lhes uma cruz em cima”.

A limpeza a seco passava também pelo acto de catar. na cama à lareira, as amantes catam os homens amados; as servas catam os amos; mães e filhas catam-se mutuamente; as sogras catam os futuros genros.

Catar torna-se profissão de mulheres: “Instalam-se, no Verão, ao sol, debaixo dos telhados planos das casas baixas. Enqunato as ‘catadeiras’ as livram dos incómodos causados pelos piolhos, elas cavaqueiam” (em O Limpo e o Sujo).

A presença dos parasitas, na sociedade medieval, é tão notória que merce a atenção dos manuais de cortesia: “è feio e pouco digno coçar a cabeça à mesa e tirar do peito ou das costas piolhos e pulgas e matá-los em frente de todos os presentes”.

Os hiegenistas, no entamto, atribuíam à proliferação dos piolhos e pulgas, que frequentavam todas as clases sociais da Idade Média, outras origens que não a falat de limpeza e higiene. Os parasitas nasciam por efeito de “transpirações mal dominadas”.

Até ao século XVII vão existir sempre outras causas para explicar a exist~encia destas vidas parasitárias: “Os corpos cacoquímicos com abundãncia de humores ácidos possuem geralmente muitos destes animais”, garantia-se num tratado de higiene da época.

Compreende-se que, nos finais do século XVII, haja quem afirme que as casas de banho são supérfluas: “Podemos, se quisermos, construir grandes casas de banho, mas a limpeza da nossa roupa e a sua abundância valem mais so que todos os banhos do mundo”.

Também assim pensava a Rainha Vitória de Inglaterra. Qunado subiu ao trono em 1837, não existia casa de banho no palácio de Buckingham. O Parlamento apressa-se a colmatar tal defici~encia com a atribuição de uma verba anula (cinco mil libras) para as despesas de “toilette” da soberana. Aprovava também os planos de instalação de água quente no quarto real, onde estava colocada a banheira.

Acontece que Sua Majestade havia recebido de herança a tina de mármore de Jorge IV. um desperdício para quem, como a Rainha Vitória, não tinha o prazer do banho. A tina foi demolida e o mármore serrado em placas para fazer as prateleiras dos fogões da sala do palácio de Buckingham.

Com tanto “asseio” a corte não é de estranhar que houvese quem vivesse de exterminar os parasitas reais, como os então reputados “TIFFIN & SON, exterminadores de Percevejos de Sua Majestade”.

SÉC. XVII - AS CASAS DE BANHO

Estar limpo passa a ser referência estimável a partir do século XVII. Criticados e mal vistos os que descuidam a aparência. Saint-Simon exalta “a limpeza requintada da senhora de Conti” e menciona o “porte nobre e limpo” da senhora de maintenon. O limpo hierarquiza-se; confere distinção.

Além da roupa, que “lava a pele”, o perfume, uma descoberta anterior ao século XVII, desempenha também, nesse tempo, um papel importante na arte da aparêmcia. O seu odor corrige o ar alterado e perigoso e tem igualmente fins terapêuticos: é considerado um excelente preventico contra a peste. Pensava-se então que o ácido do vinagre atava a podridão que se julgava acompanhar a peste. Em tempo de epidemia inspirava-se através de tampões impregnados de vinagre. mas o perfume é o melhor antídoto contra as inalações pestilentas. Além de seduzir o olfacto, o perfume é igualmente purificador. è a higiene ao serviço apenas do visível.

Erradicadas as grandes epidemias, o segundo terço so século XVII, ainda que longe de um pressuposto de higiene, traz novas relações com a água, pelo menos, entre os privilegiados. Inclusive, começa a aceitar-se o banho d eimersão, até então rarissimo. Ainda que continue a acreditar que a água penetre no corpo, trabalha os órgãos e altera-lhes as funções, no palácio de Versailles constroem-se compartimentos reservados aos banhos. Luís XV prefere a “àgua tirada do Sena à conduzida pelos canos”, (em “Arquivos da Polícia”, 1802, França).

As casa de banho aindão são raras. Em França, em 1750, em cada 100 man~soes, nem dez t~em casas de banho. quando Condorcet, em 1769, se vangloria de tyomar alguns banhos, há logo quem ironize: “(...) É por gosto e por ser signo dos peixes que toma banho?” (em O Limpo e Decente).Situação semelhante viveu uma senhora portuguesa, nos anos 20 do presente século, em Trás-os-Montes. De visita a familiares de uma aldeia perdida junto à raia de Espanha à falta de banheira e de bidé, pediu que lhe arranjassem uma bacia para lavar as partes pudendas. as lavagnes quotidianas levariam a sogra a desconfiar. E o reparo não se fez esperar: “Com tantas lavagens deve estar podre por baixo!”.

REAIS BANHEIRAS

Se no século XVII foi, por um lado, avaro no uso dos banhos não não descurou, por outro, novas normas de higiene.

Apareceram as sentinas públoicas e retretes com água corrente. A medicina deixou de o ser o que até ali fora: um misto de alquimia e de magia. Tornou-se uma ci~encia. Em 1724, um médico inglês, enquanto fazia a apologia dos “banhos frios”, lastimava que “especialmente entre os cristãos” tivesse sido descurada ou abandonada a prática do banho: “Sou de opinião que todos os que possam tomar regularmente um banho frio em suas casas, como se lavam as mãos numa bacia, o devem fazer duas ou tr~es vezes por semana no verão e de Inverno numa banheira” (em O Limpo e Decente). E, para que não houvesse subterfúgios para escapar ao banho, o clínico dava alternativas à falta de banheira: “Todos os que não dispuserem de tal comodidade que se metam no rio ou num tanque o mais frequentemente que puderem a fim de lavarem o corpo.”

Os conselhos do médico setecentista não se atinham, porém apenas ao banho. recomendava aos homens mais débeis, aos intelectuais e aos sedentários que rapassem a barbva e o cabelo e conservassem a peruca na cabeça durante todo o dia.

Nesses mesmos anos os banhos do mar começavam a estar na moda. Russel, médico inglês (autor de Dissertation Concerning the Use of Sea-Water in Diseases of the Glands), aconselhava a tomar banhos de mar no tempo frio.

Outro clínico receitava aos doentes água do mar fervida com leite e cremor tártaro. E, aconselhava ainda, para expulsar os “humores venenosos através dos poros”, nada melhor do que banhos quentes de água do mar.

Enquanto isto, Luís XIV, o rei Sol, tinha instalado em Versailles, sete banheiras. Depois da morte do rei e com a subida ao trono de Luís XV, este ofereceu a mais sumptuosa a madame Pompadour - uma banheira octogonal, de mármore rosa, com tr~es metros de largura por tr~es de fundo. O fim do real artefacto foi o de passar a desempenhar as funções de lago de jardim.

Apesar de mais de 100 quartos de banho do palácio de Versalhes, parte da corte preferia banhar-se no Sena. O frio da água não constituía problema: despejava-se-lhe água a ferver. O método provou ser muito eficaz: a nobre senhora de Saint-Herém sofreu tais queimaduras num desses banhos que teve de ficar de cama...

Blondel, arquitecto de Luís XV, explicava no livro Maisons de Plaisance, publicado em 1738, que o quarto de banho da época tinha “duas banheiras: uma para lavar e outra para se passar o corpo por água limpa”.

LUGARES DE ALÌVIO

Além das banheiras, a corte contava com um utensílio indispensável que, de tão ousado, passou a ter várias denominações: “Chaises percées”, “chaises d’affaires”, chaises necéssaires ou simplesmente selles. Eufemismo para encobrir o nome retrete. havia que dignificar então o artefacto com nomes que não chocassem os reais ouvidos. Os reis, principes e os generais consideravam-na uma extensão do trono. Quando embaixador na corte de Luis XIV, lorde Portland sentiu-se muito honrado por ter sido recebido pelo Rie, quando este estava na retrete. Foi também do mesmo lugar que o rei anunciou o seu casamento com madame de maintenon. Um inventário do tempode Luís XV dá conta 264 “selles” no palácio de Versailles. Por ter ficado tão satisfeita com a retrete que mandara fazer, madame Pompadour conseguiu do Rei avultada pensão para o marceneiro.

É num baile em Paris, em 1739, que surgem, pela primeira vez, sobre as portas dos gabinetes, as inscrições: “Garde-robes pour les femmes” e Garde-robes pour les hommes”.

Na primeira metade do século XVIII em Inglaterra, as retretes de água corrente eram ainda uma novidade, Raríssimas e toscas, mesmo nas grandes mansões. No castelo de Windsor, para a rainha Ana, instalaram “um pequeno lugar de alívio de mármore”. A inovação era o chamado “lugar de alívio” ter “torneiras para que a água o limpe, ao cair”.

BIDÉS E VIOLINOS

Em habitos de higiene, os ingleses, se não tinham aderido logo ás novidades quanto a retretes, muito menos o farão em relação ao bidé. Avessos a modas vindas do exterior, pouco atendiam às recomendações dos grandes fabricantes de mobiliário da época, como Chippendale ou Sheraton, que diziam que os quartos de dormir deveriam estar providos de tofdos os móveis indispensáveis para “os casos acidentais da noite”.

Em 1770, o marqu~es de Argenson tornar-se-ia no maior divulgador desta peça de higiene íntima ao fazer um relato exaltado de como tinha sido recebido em audi~encia por uma senhora da nobraza sentada no bidé.

Nos princípios do sécuo XX, em Portugal, a higiene, sobretudo do corpo feminino, é eacto que tem de ser resgaurdado mesmo dos familiares mais intímos. A mulher tem de manter a aura da perfição: “Inclinadas sobre a larga bacia do nosso lavador a ensabonetarmos o busto, surge o horripilante espectáculo dos seios pendendo, se são volumosos, como duas tetas de vaca” (em Segredos das Nossas Avós, de Cecília Barreira, que cita o livro O que As Noivas Devem saber, de Alfredo Gallis, pseudónimo Condessa de Ti).

Ironiza o senhor “Condessa de Ti” sobre a utilização feminina do bidé: “Sentadas no clássico bidé a assearmos as partes pudendas do nosso corpo ou de pipo de irrigador em punho, somos simplesmente destestáveis de ridículo”.

BANHOS FRIOS E ÀGUA DESNEVADA

No século XIX começa a esbater-se o receio de tomar banho, sobretudo, por que são cada vez mais os médicos que recomendam a cura pela água. ao contrário do que se pensava em séculos anteriores, a água não abre apenas o corpo à terrível pestil~encia, também o abre à cura.

Aderem as mentes de novecentos á “àgua que cura”, mas continuam bastante fechadas à que lava. O banho é ainda excentricidade, salvo quando é receitado pelo clínico.

Há quem considere indiscutível o nome de Vivente Priessnitz, um aldeão suíço, como o homem que inventou a cura pela água. Os banhos e as aplicações de água ganham o estatuto de milagreiros. Sucedem-se os tratados de hidroterapia e multiplicam-se os estabelecimentos hidropáticos. O duche é a grande novidade que, quando alternado, quente e frio, é designado por “duche escocês”.

Nos princípios deste século, em Portugal, “as classes mais altas haviam aderido ao banho de ‘tub’, o actual chuveiro” (em História das Nossas Avós, de Cecília Barreira). “Pensava-se então que o chuveiro de água fria teria uma noção tonificante na pele e nos músculos.”

Ramalho Ortigão relatava, em banhos das Caldas e Águas Minerais, que Diana de Poitiers chegara aos 70 anos no apogeu da beleza. O segredo de tão extraordinária preservação devera-se, entre outras medidas, a dormir em “cama dura; o travesseiro fresco de marroquim; os banhos frios de cada dia e água ndesnevada”.

Os hábiots de higiene dos portugueses na segunda metade de novecentos, porém, estavam mais ligados ao receio pela água que haviam marcado os séculos anteriores, na Europa. Pelo menos, assim o recorda Sousa bastos, em Lisboa Velha, Sessenta Anos de Recordações (1850/1910): “Os lisboetas chegavam a ser acusados de ter medo da água.” Refere também o autor que, “naqueles tempos, era pequeníssimo o consumo de tinas”. Os que se lavavam usavam tachos ou bacias de cobre que, depois de areados, “prestavam-se para neles cozer anualmente a marmelada”.

Prescreviam também os tratados de higiene da mesma época que a mulher grávida deveria abolir os banhos por completo e substituí-los por abluções e loçoes.

Ainda que perto do mar, o lisboeta só ia a banhos por receita médica. Pior, neste caso, a cura do que a doença. As praias eram o vazadouro da ciddae: “Grande número de habitantes mandavam, ainda em 1840 e 1850, as criadas e pretas de serviço vasar nas praias grandes tijelas de casa com detritos, que se espalhavam pelo caminho” (em Lisboa Velha).

Corriam assim, os banhistas sérios riscos quando de manhã se atiravam às águas lamacentas e mal cheirosas da praia de Santos ou da Fundação.

Mais tarde apareceram as barcas de banho. Mas a higiene dos banhistas nada ganhou com elas. Mudava-se o método mas as águas continuavam as mesmas.

Não fedem agora ostensivamente as águas das praias da Linha. No entanto, muitas são as reservas que sobre elas impendem. No final do milénio, os hábitos de higiene dos portugueses não são, pelo menos na aparência, o que foram há 60 anos. O banho parece institucionalizado. Mas, num estudo sobre as Prácticas Culturais dos Lisboetas, encomendado pela direcção da Lisboa 94 ao Insituto de Ci~encias Sociais, num universo de dois milhões e quinhentos mil habitantes da Grande Lisboa, 57 por cento tomam banho diariamente. E 68 por cento apenas muda de cuecas e meias. No grupo etário dos 66 anos, todavia, só 19 por cento faz do banho um apráctica diária.

No que respeita aos cuidados de higiene, as mulheres da Capital levam a palma aos homens: 60 por cento das mulherres toma banho diário contra 54 por cento dos homens.

Quem disse contudo, que Portugal é Lisboa?.