ALMADA NEGREIROS

ALMADA NEGREIROS

Nascido na Fazenda Saudade, freguesia da Trindade, na ilha de São Tomé, em 7 de abril de 1893, José Sobral de Almada Negreiros era filho primogénito de antónio Lobo de Almada Negreiros, natural de Aljustrel, e de Elvira Freire Sobral, nascida na ilha, filha de um proprietário de roças. O pai era administrador do concelho de São Tomé, escritor e jornalista. Da mãe educada em Portugal, filha de uma natural de Benguela, herda José sangue africano. Elvira morre em 1896 e o futuro artista, depois de ter ficado algum tempo em casa dos avós e de tios maternos, em cascais, ingressa em 1900, com o irmão António, como aluno interno, no Colégio dos Jesuítas, em Campolide. Trata-se de um estabelecimento destinado á educação das elites que a República mandará encerrar em 1910,, indo Almada frequentar então o Liceu de Coimbra e posteriormente a escola Internacional de Lisboa. Data de 1911 a publicação do seu primeiro desenho assinado, em A Sátira; em 1912 já participa na I Exposição dos Humoristas. Director artístico de um jornal humorístico de tendências monárquicas e de vida breve, o Papagaio Real, só em 1915 Almada vai conhecer fama com o hoje lendário Manifesto Anti-Dantas e por extenso. O polifacético artista elegera o dramaturgo Júlio dantas, cuja peça Soror mariana então se estreara, como símbolo de uma geração acomodada e impante, e lançava mão para zurzi-la de um conjunto de frases de grande efeito que iriam fazer história: “Abaixo a geração! Morra o Dantas, morra! Pim! (...) O Dantas em génio nem chega a pólvora seca e telento é pim-pam-pum. O Dantas nu é horroroso! O Dantas cheira mal da boca! Morra o Dantas, morra! Pim!”

O caso teve tanto mais eco quanto o visado, escritor de êxitos como A Ceia dos Cardeais, resolveu tomar a peito os insultos e terá comprado pela surra a edição do Manifesto para a mandar destruir.

O ano de 1915 é de grande actividade para Almada, que além de participar na I Exposição de Humoristas e Modernistas, colabora no primeiro número do Orpheu (sempre referirá com orgulho ser o único que tartava Pessoa por tu) e prepara colaboração para o nº 3 que já não sairá. Escreve a novela A Engomadeira, os poemas A Cena do Ódio e As quatro Manhãs, e continua a desenhar num traço que vai refinando em originalidade e elegância. O ano seguinte é o da defesa intrasigente das pinturas do seu amigo Amadeo de Souza-Cardoso, das Novelas Mima Fataxa e Saltimbancos e do anúncio de K4, o Quadrado Azul, que só escreverá em 1917.

Uma das características de Almada - que alguns preferem como poeta e ficcionista a artista plástico, porventura sem grande fundamento - foi tentar todas as artes, nem que fosse através de incursões solitárias. No capítulo da dança, entusiasmado pelo poder inovador que os Baletts Russes de Diaghiliev representam (a companhia faz uma atribulada digressão a Lisboa em 1971), o órfico concebe bailados, imagina coreografias, desenha cenários e figurinos para um grupo de amadores que tem como principal figura a aristocrata Helena castelho Melhor. Almada actua como bailarino em A Princesa dos Sapatos de Ferro, com música de Ruy Coelho, e nesse bailado participa também o futuro realizador do superêxito cinemátográfico A Canção de Lisboa, José Ângelo Cottinelli Telmo. Esta obra e o Bailado do Encantamento, igualmente com música de Ruy Coelho, foram apresentados no Teatro de S. carlos, com estreia abrilhantada pelo major dr. Sidónio Pais, que entretanto se guindara pela força das baionetas à Presidência da República e ao qual Pessoa chamaria o presidente-rei. de referir por curiosidade que o produto dos espectáculoa se destinava às madrinhas de guerra, louváveis almas que mandariam algumas cartas aos soldados do Corpo Expedicionário Português empenhado na frente europeia e aos que tinham ido bater com os costados nas colónias.

A incursão como bailarino, embora com público bem mais numeroso, não tinha para Almada, nem de perto nem de longe, o poder de intervenção da Conferência Futurista efectuada no Teatro República na tarde de 14 de Abril de 1917. Ao estilo do marketing mais apelativo, houve inclusive a preocupação de avisar que alguma da linguagem utilizada poderia chocar ouvidos femininos. Rezam as crónicas todavia, que muito difícil seria escandalizar as duas senhoras presentes, sendo uma delas uma conhecidíssima figuar da noite lisboeta, a cabo-verdiana Preta Fernanda, e estandoa outra estabelecida no mesmo ramo. Desconhece-se o que terão achado do Ultimatum Futurista às Gerações Portuguesas do Século XX, declamado certamente com garra por Almada, do Manifesto Futurista da Luxúria, de madame de Saint-Point, que ele traduzira, e do texto do “papa” do futurismo, o italiano Marinetti, Music-Hall et Tuons le Clair de Lune.

Em 1919, o artista parte para Paris (o pai fixara-se ali em 1900; constituíra segunda família e acabaria por falecer na capital francesa em 1939). Exerce ocupações tão díspares como empregado de armazém e dançarino de cabaret; desenha e escreve nomeadamente uma Histoire du Portugal par Coeur e a peça num Acto antes de Começar, que virá a ser a sua obra teatral mais representada.

Pouco depois de pisar solo lisboeta e de revisitar com certeza A Brasileira do Chiado, Almada vai embarcar em mais uma experiência, desta vez no cinema, surgindo num papel de galã no filme O Condenado, baseado numa peça de Afonso Gayo e produzido por uma empresa de vida breve. Não se conhecem cópias que tenham chegado até aos nossos dias, mas sabe-se que a película contava com a única aparição da famosa actriz Virgínia num filme, e o crítico António Ferro tece elogios à intervenção do poeta de orpheu. Até rumar a Madrid, o que aconteceré em 1927, Almad, além das realizações no domínio das artes gráficas (cartazes sobretudo, mas também capas de livros), faz desenhos humorísticos e textos para jornais, particularmente o Diário de Lisboa e depois o Sempre Fixe, e dá a conferência A Invenção do Dia Claro, que Fernando Pessoa editará. Escreve O Menino de Olhos de Gigante, O Càgado, o poema Presença, Pierrot e Arlequim, Personagens de Teatro e o seu único romance, Nome de Guerra. Colabora na Contemporânea com o lápis e a caneta, pinta óleos para a Brasileira do Chiado, faz pinturas decorativas para o Bristol Club e auto-retratos. Profere conferências, alimenta polémicas e começa a demonstrar uma paixão que se arrastará ao longo da vida e o conduzirá a iluminações pitagóricas: o mistério do Políptico de São Vicente.

O período de Almada na capital espanhola, que se prolongará até 1932, embora marcado por dificuldades materiais, dá testemunho de que os seus talentos foram apreciados e a sua companhia prezada. Frequenta as tertúlias da moda e faz amizade com personaliddaes como o poeta Frederico Garcia Lorca, conhece Valle Inclan e Unamuno. Lança mão da colaboração gráfica nas mais diversas publicações, desde o ABC ao Balnco y Nero, passando por uma assídua participação como ilustrador na revista teatral La Farsa. Recebe apoio da família do jornalista português Joaquim Novais Teixeira, que retratará, e sofre alguns desgostos de amor. Além de ter feito trabalhos decorativos na Cidade Universitária, são-lhe encomendadas as decorações de um teatro, Muñoz Seca, e dos cinemas Barceló e San carlos, estas últimas encontradas por Ernesto de Sousa (responsável pelo filme Almada, um Nome de Guerra), que conseguiu trazê-lo para Portugal. Tinham de ser minuciosamente restauradas e destinavam-se à colecção de um conhecido banqueiro. O aventuroso resgate dessas obras das mãos dos castelhanos era uma história que o realizador muito gostava de contar.

Como dramaturgo os dias de madrid proporcionaram a Almada inspiração para escrever El Uno, Tragedia de la Unidad, constituído por duas peças (Deseja-se Mulher e S.O.S.) e O Público em Cena. Considerada a sua melhor criação teatral. Deseja-se Mulher - que Lorca disserem ter de passar 30 anos para que aceitassem -, só seria levada à cena pela Casa da Comédia, dirigida pelo dr. Fernando Amado, em 1963. Sabe-se que Almada muito apreciou o trabalho de jovens e talentosos actores como Norberto Barroca, Manuela de Freitas, Fernanda Lapa, Santos Manuel, Maria do Céu Guerra, Zita Duarte e Eládio Clímaco, hoje conhecido como apresentador de televisão.

O artista regressa a Lisboa em 1932, o ano em que o “papa” do movimento futurista aqui se desloca. Marinetti é trazido por António Ferro, tido, com Júlio Dantas e Adães Bermudes, por “um dos mais categorizados inimigos do futurismo” - e a polémica chega às colunas do Diário de Lisboa, com Almada a desejar ao ainda admirado poeta “uma feliz viagem de regresso à sua grande pátria, onde o espera o seu lugar bem merecido de académico do fáscio italiano”. O facto mais marcante da sua intervenção depois da vinda de Espanha é, porém, a Conferência Direcção Única, proferida em Lisboa, no Teatro D. Maria II, e em Coimbra, na Associação Académica, onde regressa ao tema 1+1=1, para definir a solidão, e recorre a diversas alegorias, concluindo nomeadamente que “queremos a colectividade portuguesa à altura de si própria, vista de todos os lados da terra”. E o artista escreve em Artes e Artistas que “a nossa atitude é a de indivíduos em marcha para a colectividade e absolutamente confiados no estado”. Será Almada o autor do cartaz que apela ao voto na nova Constituição.

Em 1935, o artista casa com a pintora sarah Afonso, que lhe dará dois filhos. o hoje arquitecto José de Almada negreiros e paula, uuma poetisa talentosa falecida prematuramente. Nos anos seguintes pinta óleos, realiza trabalhos gráficos (sobretudo cartazes e selos, um dos quais com a frase de salazar “Tudo pela Nação”), escreve poesia e faz o seu primeiro trabalho em vitral , para a Igreja de Nossa Senhora de Fátima, ao qual se seguirá o do Pavilhão da Colonização na exposição do Mundo Português. São seus os frescos do edifício do Diário de Notícias. Desenha os cenários para a ópera Inês de Castro, do seu amigo Ruy Coelho, mas a grande colaboração para o palco dessa época está na autoria dos cenários e figurinos da Dulcineia ou a Última Aventura de D. Quixote, de Carlos Selvagem, apresentada no nacional pela Companhia Rey Colaço Robles Monteiro. Surgem trabalhos gigantescos das gares marítimas de Alcântara e da Rocha de Conde de Óbidos, mas vitrais (Igreja do santo Condestável, em Lisboa, e capela de São gabriel, em vendas Novas), muitas exposições, alguns prémios. Em 1954, Almada pinta o famoso retrato de Fernando Pessoa para o restaurante lisboeta Irmãos Unidos (pintará um segundo retrato do poeta em 1964). Concebe painéis cerãmicos e as decorações das fachadas na Cidade Universitária da capital. faz também cartões para tapeçarias, tudo isto á mistura com muitos outros trabalhos, conferências, entrevistas, poemas e não poucas revelações polémicas sobre os painéis de São Vicente. O seu gosto pelo oculto já se traduz em quadros como a Relação Nove Dez (1957), premiado extraconcurso na I Exposição Gulbenkian.

São do mesmo ano, 1965, o seu último texto para teatro (Galileu, Leonardo e EU) e os belíssimos cenários e figurinos para o Auto da Alma, de Gil Vicente, levado á cena no Teatro São carlos. Trajos e adereços dessa produção estiveram patentes no Museu do Teatro, em 1993, numa exposição comemorativa do centenário do nascimento de um homemque tanto do seu talento ligou ás artes cénicas e tanto prezou o espectáculo. O último grande acto deste artista de todas as artes foi sem dúvida o painel para o átrio da Fundação Gulbenkian, enigmaticamente intitulado Começar. mas a verdadeira apoteose para este actor maior da nossa cultura surgiu certamente com o calor do público no Teatro Villaret, durante a gravação do Zi,p-Zip, e com as repercussões da sua presença nos pequenos ecrans.

Extraído da Revista “Visão”, de 14 de Junho de 1995, artigo de Pedro Rafael dos Santos