SALAZAR - O DITADOR SOLITÁRIO

SALAZAR

O DITADOR SOLITÁRIO

António de Oliveira Salazar nasceu há cem anos, que se completam nesta sexta-feira, 28 de Abril, e governou o País, ditatorialmente, durante quase quarenta. Morreu solteiro e, durante ,muito tempo, foi considerado avesso a mulheres, mas hoje sabe-se que teve vários caos amorosos, alguns prolongados. Ainda criança, era um solitário: à companhia das outras crianças, preferia o seu cão, e divertia-se a manter pintassilgos numa gaiola.

AFONSO PRAÇA

Quando, em 1916, disse ao cardeal Cerejeira: “Sabes? Sinto que a minha vocação é a de ser primeiro-ministro de um rei absoluto”, Salazar estava talvez, a ser sincero (Cerejeira foi sempre um dos seus maiores amigos e confidentes), mas enganou-se num pormenor que não é pequeno. Foi presidente do Conselho de Ministros primeiro-ministro), mas não de um rei absoluto: o rei absoluto também foi ele. Ao longo de quatro décadas, os golpes das oposições não conseguiram derrubá-lo. As manobras de salão, quase sempre ingénuas, foram insuficientes para o afastar. O próprio coração, frio como pedra, aguentou. O ditador só não resistiu à queda de uma cadeira: a sua carreira chegou ao fim em 6/9/68, tendo sido substituído por Marcello Caetano em 25 do mesmo mês. Salazar tinha então 79 anos.

Como foi possível tudo isto? “Ditador contra a sua vontade”, como pretende T. Serstevens, ou “um detentor do Poder que não lutou pelo Poder, mas a quem este foi imposto pelo céu como um fado imprevisto”, como escreveu Sieburgo? O próprio Salazar defendeu esta ideia diversas vezes, apresentando-se (e deixando-se apresentar) não como o político ávido de poder, sacrificando-se pela nação, mesmo que essa não fosse a vontade do povo. “Podemo-nos sentir capazes de governar, embora não tenhamos de modo algum gosto pelo poder!... E eu não tenho gosto pelo poder porque ele não me seduz. Não me dá nenhuma satisfação, nem ao menos a compensação natural das canseiras, das desilusões e dos sacrifícios que implica”.

Até que ponto estas palavras, proferidas em 1951, correspondem á verdade? A dúvida justifica-se, uma vez que Salazar deteve o poder ainda por mais dezassete anos e mesmo quando a doença o afastou, em 7 de Agosto de 1968, continuou , até á morte, como símbolo do poder, ele próprio convencido, na sua semi-lucidez, que era ainda presidente do Conselho de Ministros. mas uma pessoa que bem o conheceu e muito o admirou, Christine Garnier, não hesitou em escrever: “Parece-me... que Salazar se preparou, desde a mocidade, para assumir os mais altos cargos públicos e eu, mesmo sem o querer, fico um pouco céptica quando ele me assegura... que é indiferente ao poder”.

Compreende-se bem tal cepticismo. Embora afirmasse que detestava fotografias, fugindo “a todas as formas de publicidade”, Salazar não descurou nunca a sua imagem. Pelo contrário, soube garantir as condições que lhe permitissem criar uma “imagem de marca” e, se é preciso, podem recordar-se o Secretariado nacional da propaganda Nacional e as entrevistas de António Ferro, assim como a censura á imprensa que impedia a veleidade de qualquer crítica, mesmo que esta fosse expressa numa simples caricatura. Embora explicasse a sua relutância em assistir a cerimónias oficiais, com as exigências do seu cargo e que ele entendia sobre a sua prática (“Estado não me paga para que me entregue a mundanismos, mas para que empregue o meu tempo a resolver os problemas essenciais”), ele soube, sempre, aparecer quando achava oportuno. Nunca deu uma conferência de imprensa, mas deu inúmeras entrevistas a jornais estrangeiros, depois transcritas avidamente pelos de Lisboa, esmagados pela censura. Nunca saiu do País, enquanto primeiro-ministro, com excepção de breves idas a Espanha, junto á fronteira, para encontros com Franco. Nunca foi a África, ele que tanto teorizou sobre as defesas da colónias e redigiu, em 1930, o Acto Colonial. Não visitava ninguém, não tinha amigos, dá a impressão que não gostava sequer dos seus colaboradores, despedindo ministros com um simples cartão de visita, apenas os aconselhando a ir descansar. Seu grande admirador, Costa Brochado é lapidar: “Salazar não tinha amigos, não tinha família, não tinha grupo nem partido!”.

De onde veio este homem que alguns biógrafos descrevem como tímido, associal, orgulhoso, frio, medroso e instável, e que, apesar disso, em 1935, afirmava: “Infelizmente há muitas coisas que sou o único capaz de fazer”?

Natural do Vimieiro Santa Comba Dão), António de Oliveira Salazar nasceu em 28 de Abril de 1889, às três da tarde, no seio de uma família modesta que vivia da agricultura (o pai era feitor da casa dos Perestrelos) e do comércio (uma loja de hóspedes, vinhos e petiscos), mas que, com o tempo, viu melhorar a sua situação. Quando nasceu, o pai (António de Oliveira) já passava dos 50 anos e a mãe, Maria do Resgate Salazar, ia nos 44, tendo já quatro filhas. O baptizado realizou-se em 16 de Maio, servindo de padrinho o Dr. António Xavier Perestrelo Corte-Real e sua filha, Maria de Pina Perestrelo, que não compareceram na igreja, fazendo-se representar por Francisco Alves da Silva, carpinteiro, e sua mulher Luísa da Piedade. Fez a instrução primária com um mestre-escola particular, funcionário da Câmara (no Vimieiro, não havia escola) e foram os pais que, a conselho do padre, lhe escolheram o destino, aos dez anos: António iria estudar para padre, em Viseu. Quando o informaram da decisão, aceitou-a, não mostrando alegria nem contrariedade. E em 10 de Agosto de 1899 fez, em Viseu, o exame da instrução primária e matriculou-se no seminário.

Nem alegria nem contrariedade. Seria de estranhar esta atitude passiva noutra criança, mas não em António Salazar que, em pequeno, “era medroso, tímido, acanhado, grave e sisudo”. Gostava de árvores e principalmente de flores, “mas a sua paixão eram os pássaros”. Para os ver voar, em liberdade, ou pousados nos galhos das árvores? Que ideia! tinha gaiolas, apanhava pintassilgos, cuidava-os”, mas “se lhe fugia algum, possuía-o um choro convulso e não descansava enquanto não o substituísse. Sabe-se enfim, que era uma criança de olhar pensativo”, brincava pouco, e à companhia dos rapazes da sua idade, preferia a do seu cão (o Dão), com o qual passeava pelos campos horas seguidas.

Estes traços impressivos do carácter da criança que, nos últimos anos do século passado, se isolava nos campos do Vimieiro, hão-de persistir pela vida fora e todos os seus biógrafos se lhe referem. quando, aos 30 anos, se decide pela política, Salazar “é um celibatário austero que não bebe, não fuma, não conhece mulheres”, embora em 1950, o cardeal-patriarca de Lisboa, D. Manuel Gonçalves Cerejeira, assinalasse: “ aprecia a companhia das mulheres e a sua beleza e, no entanto, leva uma vida de frade”.

Durante muito tempo, colou-se a Salazar “a reputação austera de um misógino”, talvez alimentada por ele próprio: “Persuadido de que a mulher que tem em mente a preocupação do seu lar não pode produzir fora dele um trabalho impecável, lutarei sempre contra a independência das mulheres casadas”. Mas não se pode atribuir à política e responsabilidade de ter ficado solteiro, como também se pretendeu fazer crer: quando optou pela política, não se lhe adivinhava qualquer perspectiva de casamento”. Por outro lado, sabe-se hoje, que existiram várias mulheres na sua vida - desde os amores clandestinos com uma professora primária, no tempo em que era seminarista em Viseu, até ao “affaire” com a jornalista francesa Christine Garnier.

A verdade é que Salazar era “um misantropo, um ser sedento de solidão, inacessível, e desconfiado”, que suportava “o contacto de outro solitário mas não de um grupo, um homem frio, desprovido de magnetismo, mais frequentemente cercado de fracos que de fortes, talvez por ser tímido, e desdenhoso para com os seus semelhantes”. Quando era professor na Faculdade de Direito de Coimbra “os seus olhos frios nunca revelavam aprovação ou descontentamento”. E Cerejeira, ao recordar os tempos de juventude, diz que ele era um “homem de gelo. Os seus alunos, que amargamente lhe censuravam a dureza, teriam ficado muito surpreendidos se vissem a sua emoção. A frieza de Salazar ocultava nessa época, como hoje, uma sensibilidade quase doentia. Sim, a frieza era o seu escudo e a sua defesa!... Hoje, como antigamente, o seu primeiro gesto é tímido. Hesita antes de se lançar na acção. Necessita de ser apoiado, e depois lança-se. Nunca vi tantos contrastes na mesma pessoa... Nele, chocam-se a todo o instante o cepticismo e o entusiasmo, o orgulho e a modéstia, a desconfiança e a confiança, a bondade mais tocante e por vezes a dureza mais inesperada”.

Não é, pois abusivo concluir que a criança que, no Vimieiro, evitava as outras crianças, preferindo a companhia do seu cão, se manteve um solitário pela vida fora. Nunca gostou do contacto com pessoas e, muito menos de enfrentar multidões, os seus discursos, sempre escritos destinados a serem lidos, eram “a manifestação de um espírito pouco inclinado ao contacto com as massas” e reflectiam o ambiente da cela e o isolamento em tinham sido escritos.

Medo, timidez, desprezo pelos outros? “Há várias maneiras de governar e a minha exige isolamento... O isolamento muito me ajudou, na verdade, a desempenhar a minha tarefa e permitiu-me no passado como hoje, concentrar-me, ser senhor do meu tempo e dos meus sentimentos, evitar que fosse influenciado ou atingido”.