OTELO E FIDEL CASTRO
A CONVERSA SECRETA
Na semana em que Fidel Castro discursa, em Nova Iorque, na sessão comemorativa do cinquentenário da Ratificação da Carta das Nações Unidas (domingo, dia 22) e no momento em que se regista uma reaproximação mínima entre Washington e Havana, a VISÂO revela em primeira mão os pormenores de uma conversa que se manteve secreta durante 20 anos: aquela em que o dirigente cubano anunciou a Otelo Saraiva de Carvalho, em Julho de 1975, a intenção de enviar tropas para Angola se as forças portuguesas não permanecessem ali para arbitrar os conflitos entre o MPLA, a UNITA e a FNLA.
Há vinte anos, nos finais de Julho de 1975, Otelo Saraiva de Carvalho visitou Cuba, de onde regressou ainda mais entusiasmado com o sonho do Poder Popular. No entanto o acontecimento mais importante da sua visita manteve-se secreto até hoje. Tendo apenas Raul Castro como testemunha, Fidel e Otelo conversaram sobre a hipótese de Cuba enviar soldados para Angola, depois da independência, para mediar o conflito entre MPLA, UNITA e FNLA. Otelo não deu grandes esperanças a Fidel e aconselhou-o a preparar as tropas. No regresso a Lisboa, contou a conversa ao Presidente da República, o hoje marechal Costa Gomes, e pediu-lhe que desse uma resposta ao líder cubano. Que se saiba, a resposta portuguesa nunca chegou a Havana. Costa Gomes afirma que não se lembra de nada.
ANGOLA AO ALMOÇO. Um ou dois dias depois da Festa Nacional de Cuba (já não se recorda com exactidão do dia), Otelo foi convidado para um almoço privado com Fidel Castro e seu irmão, Raul. Num restaurante perto da estância turística de Varadero, chamado los Canaviales, os três homens tiveram uma conversa que se manteria secreta. O assunto era Angola. A menos de cinco meses da data prevista para a independência da ex-colónia portuguesa, ganhava força o conflito militar entre MPLA, FNLA e UNITA, sem que Portugal conseguisse um mínimo de controlo. Otelo revela esse episódio, que influenciou o rumo do conflito angolano.
“Foi uma conversa muito secreta, na qual Fidel começou por me contar que tinha recebido há pouco tempo uma visita de Agostinho Neto, presidente do MPLA, que se mostrara muito apreensivo com o que estava a acontecer em Angola. Havia muitas forças em confronto: a FNLA, apoiada no Zaire e nos americanos, e a UNITA, apoiada pela África do Sul. Quanto ao MPLA, Agostinho Neto temia que ficasse isolado, uma vez que também estava muito dividido interiormente. O MFA, via Rosa Coutinho, tinha evitado que o MPLA se afundasse. Tinha sido uma directiva do MFA. Mas Agostinho Neto considerava que, se não houvesse apoio militar significativo, o MPLA seria esmagado. Segundo Fidel, Agostinho Neto já tinha contactado Costa Gomes, a quem pedira que as forças militares portuguesas ficassem em Angola, depois da independência, para arbitrar o conflito. A resposta de Costa Gomes tinha sido muito evasiva e Agostinho Neto não acreditava que o presidente português aceitasse o pedido. Desta forma, pediu apoio militar aos cubanos. Fidel Castro pediu a minha opinião, sobre isso, confessando que estava hesitante. Garantiu-me que se as forças militares portuguesas ficassem em Angola depois de 11 de Novembro, não enviaria tropas cubanas para apoiar o MPLA. Caso contrário, estava disposto a envolver-se no conflito. Eu disse-lhe abertamente que não acreditava que as tropas portuguesas podessem ficar em Angola depois da independência, tendo em conta a situação interna em Portugal, mas ofereci-me para levar uma mensagem ao Presidente Costa Gomes, a quem pediria que desse rapidamente uma resposta ao dirigente cubano. No entanto, aconselhei Fidel a preparar as suas tropas para seguirem para Angola. Quando cheguei a Lisboa, no dia 31 de Julho, fui directamente para uma reunião do Conselho da Revolução, que só terminou por volta das seis da manhã do dia seguinte, 1 de Agosto. Apesar disso, falei com Costa Gomes no seu gabinete do Palácio de Belém, e expus-lhe a situação. Só me disse que o assunto ficava com ele. Acho que Costa Gomes nunca respondeu a Fidel. De certa forma, esta conversa marcou o destino de Angola”.
De facto os primeiros contigentes cubanos chegaram a Angola nos primeiros dias de Outubro. Foram transportados de barco e desembarcaram em Porto Amboim. Oficialmente, Cuba só respondeu ao pedido do MPLA em 5 de Novembro. Foi então desencadeada uma operação de transporte de tropas, por via aérea, denominada operação Carlota, que, até à data da independência, 11 de Novembro, colocou em Luanda cerca de três mil soldados cubanos, afinal os principais responsáveis pela reviravolta registada na situação militar, favorável ao MPLA.
Sem disso se aperceber na altura, Otelo tinha estado no centro de uma decisão determinante para o futuro de Angola.
VISITA DIFÍCIL. Ainda hoje Otelo Saraiva de Carvalho recorda essa visita com uma ponta de emoção. Não esconde que Fidel Castro e Che Guevara eram dois dos seus ídolos e confessa que admirava muito a experiência da revolução cubana. No entanto, tem dúvidas quanto à “inocência” do convite que em Abril de 1975 lhe foi pessoalmente formulado por dois coronéis cubanos, em nome de Fidel Castro. O líder cubano convidava uma delegação do MFA, chefiada por Otelo Saraiva de Carvalho, a visitar Cuba e a participar nas festas do Dia da Revolução, 26 de Julho.
O estratego do 25 de Abril, na altura comandante do COPCON e governador militar de Lisboa empenhou-se na visita, cuja concretização, contudo, não foi fácil. O Conselho de Revolução só decidiu a autorizá-la depois de longa discussão, uma vez que os acontecimentos que se viviam (estava-se em pleno Verão Quente) não aconselhavam a ausência de um militar tão influente como Otelo. Apesar de tudo, a visita realizou-se e, em 21 de Julho de 1975, Otelo saraiva de Carvalho, acompanhado da mulher e pelos dois filhos do casal, Marq ues Júnior e mulher, três oficiais do três ramos das Forças Armadas, dois cabos fuzileiros responsáveis pela segurança pessoal de Otelo e o jornalista João Paulo Diniz embarcavam rumo a Havana.
“INSPIRAÇÃO” DO PCP. Mais tarde, Otelo leu algures que poderia ter sido o PCP o “inspirador” da visita, tendo mesmo enviado previamente Octávio Pato a Cuba com esta missão. Na altura, entre Otelo e o PCP existiam já graves divergências, e não custa acreditar que os comunistas portugueses confiassem em Fidel para “indicar” a Otelo o bom caminho. E de facto, nas várias conversas que tiveram não faltaram os “conselhos”, como recorda Otelo: “ O Fidel interessava-se muito pela revolução portuguesa. Pediu-me para lhe explicar como a tinhamos feito, qual tinha sido o plano operacional. Ele ia fazendo a comparação com as dificuldades da revolução cubana no início e ia-me chamando a atenção para esses acontecimentos, prevendo que se repetissem em Portugal. Aconselhou-me a aceitar os conselhos do PCP e a fazer um entendimento com Álvaro Cunhal, que ele conhecia e de quem tinha uma excelente opinião. Era, aliás, o único dirigente político português que ele conhecia. Fidel foi sempre muito cordial comigo e, mesmo no final da visita, quando eu já estava a embarcar no avião de regresso a Lisboa, subiu à cabina para me dar mais um abraço e dizer-me: “Cuida-te!”.
COMÍCIO COM FIDEL CASTRO. A delegação portuguesa, recebida com todos os requintes, visitou locais turísticos e os pontos obrigatórios da história da revolução cubana. Mas o grande dia era 26 de Julho, data do assalto ao Quartel de Moncada, com o tradicional comício presidido por Fidel Castro. O convidado de honra foi Otelo Saraiva de Carvalho, que falou, para 600 mil pessoas, segundo números oficiais. Num discurso de 20 minutos, previamente escrito em Portugal e traduzido para castelhano, falou dos objectivos das revoluções socialistas, da revolução portuguesa e da sua admiração pela revolução cubana. Hoje faz questão de assinalar:”Destaquei a importância da liberdade de escolha do povo e da sua capacidade de intervenção política”. O discurso foi transcrito, na íntegra, no Gramma, jornal oficial do PC cubano, ao lado de Fidel, que durou uma hora e vinte minutos.
Da visita, Otelo guarda hoje ainda alguns presentes, entre os quais três armas: uma Kalashnikov, uma pistola oferecida por Raul Castro e ainda uma pistola-metralhadora. Mas a recordação mais importante é sem dúvida a conversa secreta com Fidel. Otelo terá sido um dos primeiros portugueses a saber que militares cubanos iriam combater em Angola. Mas o que nem ele nem Fidel Castro previram foram os efectivos que o contigente militar acabaria por ter e, mais do que isso, que a guerra iria prolongar-se por tanto tempo, acabando por sair sem uma vitória militar.
COSTA GOMES
“NÂO ME LEMBRO DE NADA”
Confrontado com a revelação de Otelo Saraiva de Carvalho, o antigo Presidente da República, Costa Gomes, disse à VISÂO que não se recordava de alguma vez ter tido tal conversa. “Se o pedido de Fidel Castro me tivesse sido comunicado, com certeza que lhe respondia”, garantiu Costa Gomes. Sobre o pedido de permanência das tropas portuguesas em Angola, depois da data de independência, Costa Gomes garantiu também que nunca lhe foi formulado por Agostinho Neto, com quem diz apenas ter trocado palavras de circunstância durante a assinatura dos acordos de Alvor, em Janeiro de 1975. Admite, no entanto, que mesmo que tal pedido tivesse sido formulado, seria impossível corresponder-lhe, tendo em conta a situação que se vivia em Portugal.
JOÃO PAULO DINIZ
A ENTREVISTA QUE FICOU NO GRAVADOR
João Paulo Diniz, na altura jornalista do Rádio Clube Português, foi o único jornalista que acompanhou a visita da delegação do MFA. Lembra-se do tal almoço entre Fidel e Otelo, mas nunca soube do que ambos tinham conversado. O jornalista, no entanto, conseguiu um “furo”, que acabou por ficar no gravador. No último dia da visita, a poucas horas de voltar a Lisboa, Fidel Castro apareceu inesperadamente no local onde estavam alojados os portugueses e aceitou dar uma curta entrevista ao repórter português, que a havia solicitado no início da visita. Sentaram-se numa mesa, e Fidel respondeu ,, durante cerca de quinze minutos, a perguntas sobre as relações entre Portugal e Cuba e teceu considerações sobre a revolução portuguesa, que revelou conhecer com algum pormenor. Com tal material, João Paulo Diniz apresentou-se na redacção, em Lisboa. Mas como o clima era de “Verão Quente”, um responsável da altura, que João Paulo Diniz não quis identificar, aconselhou a adiar a transmissão da entrevista. Com o 25 de Novembro, a entrevista ficou, até hoje, no gravador. João Paulo Diniz pode gabar-se de dois feitos: é um dos raros jornalistas portugueses que entrevistou Fidel, e é, certamente um dos poucos jornalistas do mundo, senão o único, que, embora contra a sua vontade. conservou a entrevista inédita durante vinte anos.
Luís Marinho, VISÃO, 19 de Outubro de 1995