19 de Janeiro de 1923
Aniversário de nascimento de Eugénio de Andrade
(19 de Janeiro de 1923)
Quanto a mim, gosto das palavras que sabem a terra, a água, aos frutos de fogo do verão, aos barcos no vento; gosto das palavras lisas como seixos, rugosas como o pão de centeio. Palavras que cheiram a feno e a poeira, a barro e a limão, a resina e a sol.
Foi com essas palavras que fiz os poemas. Palavras rumorosas de sangue, colhidas no espaço luminosos da infância, quando o tempo era cheio, redondo, cintilante. As palavras necessárias para conservar ainda os olhos abertos ao mar, ao céu, às dunas, sem vergonha, como se os merecesse, e a inocência pudesse de quando em quando habitar os meus dias. As palavras são a nossa salvação.
Eugénio de Andrade
Photo in gens-isibraiega.blogspot.pt
Tudo me prende à terra onde me dei:
o rio subitamente adolescente,
a luz tropeçando nas esquinas,
as areias onde ardi impaciente.
Tudo me prende do mesmo triste amor
que há em saber que a vida pouco dura,
e nela ponho a esperança e o calor
de uns dedos com restos de ternura.
Dizem que há outros céus e outras luas
e outros olhos densos de alegria,
mas eu sou destas casas, destas ruas,
deste amor a escorrer melancolia.
Os navios existem, e existe o teu rosto
encostado ao rosto dos navios.
Sem nenhum destino flutuam nas cidades,
partem no vento, regressam nos rios.
Na areia branca, onde o tempo começa,
uma criança passa de costas para o mar.
Anoitece. Não há dúvida, anoitece.
É preciso partir, é preciso ficar.
Os hospitais cobrem-se de cinza.
Ondas de sombra quebram nas esquinas.
Amo-te... E entram pela janela
as primeiras luzes das colinas.
As palavras que te envio são interditas
até, meu amor, pelo halo das searas;
se alguma regressasse, nem já reconhecia
o teu nome nas suas curvas claras.
Dói-me esta água, este ar que se respira,
dói-me esta solidão de pedra escura,
estas mãos nocturnas onde aperto
os meus dias quebrados na cintura.
E a noite cresce apaixonadamente.
Nas suas margens nuas, desoladas,
cada homem tem apenas para dar
um horizonte de cidades bombardeadas.
Eugénio de Andrade
quinta-feira, 18 de Janeiro de 2018
18 de Janeiro 1984
ARY DOS SANTOS - morreu a 18 de Janeiro de 1984. Tinha 47 anos de idade
Auto-Retrato
Poeta é certo mas de cetineta
fulgurante de mais para alguns olhos
bom artesão na arte da proveta
narciso de lombardas e repolhos.
Cozido á portuguesa mais as carnes
suculentas da auto-importância
com toiicnho e talento ambas partes
do meu caldo entornado na infância.
Nos olhos uma folha de hortelã
que é verde como a esperança que amanhã
amanheça de vez a desventura.
Poeta de combate disparate
palavrão de machão no escaparate
porém morrendo aos poucos de ternura.
Photo in Portal Vermelho
«As Portas que Abril Abriu» - José Carlos Ary dos Santos
https://youtu.be/x5g5_cQB-9M
Não eram meus os olhos que te olharam
Nem este corpo exausto que despi
Nem os lábios sedentos que poisaram
No mais secreto do que existe em ti.
Não eram meus os dedos que tocaramTua falsa beleza, em que não viMais que os vícios que um dia me geraramE me perseguem desde que nasci.
Não fui eu que te quis. E não sou euQue hoje te aspiro e embalo e gemo e canto,Possesso desta raiva que me deu
A grande solidão que de ti espero.A voz com que te chamo é o desencantoE o esperma que te dou, o desespero.
José Carlos Ary dos Santos
Photo in Bibliblog - WordPress.com
quarta-feira, 10 de Janeiro de 2018
10 de Janeiro de 1926
Photo in https://en.wikipedia.org/wiki/J%C3%BAlio_Pomar
Júlio Pomar
"Júlio Artur da Silva Pomar[1] (Lisboa, 10 de janeiro de 1926) é um artista plástico/pintor português. Pertence à 3ª geração de pintores modernistas portugueses[2], sendo autor de uma obra multifacetada, centrada na pintura, desenho, cerâmica e gravura, com importantes desenvolvimentos nos domínios da tridimensão (escultura; assemblage) ou da escrita."
in Wikipédia
Photo in http://expresso.sapo.pt/
"Antes disso, vivia - e isto foi importante para mim - num quarto andar da Rua das Janelas Verdes, com o Tejo defronte - o Tejo como era na altura. O Tejo com movimento, com navios de carga, com fragatas, tudo. Passei do Tejo com movimento para as Avenidas Novas, que era uma coisa chata. Isso de ver o Tejo fez-me muita falta e talvez esteja na origem da minha mania de fazer bonecos. Essa falta de um espectáculo permanente talvez me tenha levado, por hipótese, a desenhar."
Júlio Pomar
O almoço do trolha, 1946-50, óleo sobre tela, 120 cm x 150 cm (in Wikipédia)
Photo in in http://wwwpoetanarquista.blogspot.com
Photo in https://www.wikiart.org/
"Como toda a gente, sou um bicho carregado de memória. Mas não tenho memória prática – não sei um único número de telefone, perco-me nas ruas, esqueço os detalhes das conversas ou das casas. Mesmo nos retratos que faço de cor: as coisas entram, são caldeadas e o que fica é mais um sentido, uma alusão a, do que uma soma de pormenores. W quando faço passar o modelo, o trabalho mais excitante começa no momento em que sinto a necessidade de apagar, ir desfazer a imagem registada no papel, para deixar agir um poder-elaborante, não directamente consciente."
Júlio Pomar em conversa com Helena Vaz Silva