05.1 Borba vista por Zé Russo - anos 50/80

Evento Hoje na TVI

Borba- os nossos Escritores

JOSÉ ANTÓNIO RUSSO DA SILVA

um mecânico escritor, de Borba

Dia 6 de Março (3a.Feira ) às 16 horas, José Russo no

Programa da TVI, "A Tarde é sua" com Fátima Lopes

.

José António Russo da Silva

Mecânico de Automóveis

Nasceu no Alentejo em 1945.

Aos 11 anos começou a trabalhar como Merceeiro.

Aos 12 foi aprender o ofício de Mecânico de Automóveis.

Aos 12\½ ficou órfão de Pai. Aos 14 ficou órfão de Mãe.

Aos 17 deixou o Alentejo, ruma a Cacilhas.

Estudou à noite e trabalhava de dia. Actualmente é empresário no ramo Automóvel, e nas

horas vagas escreve.

sábado, 3 de Março de 2018

Borba- os nossos Escritores

JOSÉ ANTÓNIO RUSSO DA SILVA

um mecânico escritor, de Borba

Dia 6 de Março (3a.Feira ) às 16 horas, José Russo no

Programa da TVI, "A Tarde é sua" com Fátima Lopes

.

José António Russo da Silva

Mecânico de Automóveis

Nasceu no Alentejo em 1945.

Aos 11 anos começou a trabalhar como Merceeiro.

Aos 12 foi aprender o ofício de Mecânico de Automóveis.

Aos 12\½ ficou órfão de Pai. Aos 14 ficou órfão de Mãe.

Aos 17 deixou o Alentejo, ruma a Cacilhas.

Estudou à noite e trabalhava de dia. Actualmente é empresário no ramo Automóvel, e nas

horas vagas escreve.

Da introdução do autor

«Sonhei com a terra onde nasci, como seria há quatro-centos anos atrás.

Escrevo em imaginário gerações do passado que colo-co no papel porque gosto de escrever.» ... e assim nasceu este romance que relata o que se passou ou terá passado desde a RESTAURAÇÃO em 1640... com a batalha de Linhas de Elvas e a decisiva Batalha de Montes Claros... até à assinatura do tratado de PAZ em 1668...

Apresentação

DO LIVRO

de JOSÉ SILVA

'Uma infância amarga e doce no Alentejo'

com Fotos de

Eduardo Gageiro

um mecânico escritor, natural de BORBA, com OFICINA de AUTOMÓVEIS na SOBREDA, Almada, a morar em Corroios, Seixal

ESTÓRIAS de um ALENTEJANO que, como muitos outros, decidiu viver e trabalhar nesta zona da MARGEM SUL onde podemos encontrar cerca de 100.000 ALENTEJANOS e descendentes…

QUANTAS ESTÓRIAS - como estas - PODEMOS TER MAIS???????

(Apresentação...)

Como diz o nosso Amigo comum, Adriano Bastos, na página dos "Amigos de Borba":

«José António Russo da Silva completou no passado dia 21 de Janeiro (2016), 71 anos de idade. Escritor, natural de Borba, bem cedo ruma para as terras de Almada em busca de melhores condições de trabalho e sobrevivência fixando-se em Vale de Milhaços, como empresário na área da mecânica automóvel.

O ano de 2016 será seguramente o ano da publicação de dois novos livros: as "Crónicas de uma vida" e "O Costela de Ferro".

Numa linguagem simples e descritiva, passam pelas suas crónicas personagens, ambientes da sua infância e adolescência. Tais ambientes marcadamente alentejanos em tempos de sofrimento, grande isolamento e de fome, são a sua matéria-prima para os dois livros a sair em breve.

Retratos de quotidianos que em muitos de nós avivam nossas memórias, de idênticas vivências onde a afectividade, camaradagem andavam de mãos dadas com o trabalho, medo e o escasso lazer. Tempos marcadamente longos e difíceis, que, pela escrita de José Russo nos são relatados, constituindo registos para um melhor conhecimento da segunda metade do século XX nas aldeias e vilas alentejanas.»

Adriano Bastos.

CRÓNICAS do ZÉ RUSSO

- Borba de Rua em Rua… - Borba Pessoas e Ruas do século XX

- Borba – MEMÓRIAS do séc. XX - anos 50 / 80...

Zé Russo, o mecânico / escritor de Borba, autor já de dois livros:

Zé Russo

O 'mecânico escritor' de Borba

Uma infância amarga e doce no Alentejo

2010 07

Fibra Alentejana

2013 03

'Uma Infância amarga e doce no Alentejo' - 2010 07

'FIBRA ALENTEJANA - Romance histórico' - 2013 03

propõe-se deliciar-nos com algumas crónicas regulares que estamos a divulgar AQUI , com muito prazer...

Esperamos que muitos BORBENSES gostem também e nos mandem as suas memórias...

2015.11.05

Crónica 031 - 2015 0515 05

Dívidas de Gratidão

Falar de Joaquim Miguel Ganhão é de uma grande nostalgia. Já não sei como, nem quando me veio parar às mãos um recorte de um jornal a seu respeito, que suponho ser dos Brados do Alentejo, cuja data também não sei.

Quase tenho a certeza que o autor do pequeno texto foi o nosso querido conterrâneo Joaquim Miguel Ganhão, que já nos deixou há muitos anos. Foi um distinto e prodigioso professor do ensino primário, professor de música, escritor e poeta, homem multifacetado.

Na aldeia de Barro Branco concelho de Borba, onde foi professor durante cerca de quarenta anos, na única escola ali existente. Os mais velhos alunos recordam-no com grande saudade, e, todos são unanimes exaltando os seus feitos, que ao falar da sua impar personalidade ficam emocionados, de olhos aguados.

Este homem acessível, humilde e de sólida cultura, deixou-nos grandes legados e recordações, como ensaiador de pequenos grupos de crianças de idade escolar, em danças e cantares por ele ensaiadas, com roupas vestidas de trajos Alentejanos. Homem muito instruído, do qual pouco sabemos do espólio literário que cá nos deixou.

Joaquim Ganhão paladino do regionalismo, esteve sempre pronto a pugnar pelos interesses da nossa terra e a torna-la conhecida e prestigiada, teve a feliz e meritória iniciativa de consagrar e viver Borba. A Cidade de Borba. Reconhecida, deve curvar-se perante este facto que muito a honra e valoriza, e que certamente não tem palavras que possam enaltecer tão nobre homem.

Diz Ganhão que é bom apreciar o presente e precaver o futuro.

Mas também é bom, e significa um dever lembrar o passado, sempre que nele haja algo digno do nosso reconhecimento: e, se a gratidão é apanágio das almas nobres e dos espíritos bem formados, a ingratidão será indícios de sentimentos adversos. Joaquim Ganhão foi um distinto e brilhante Borbense, que nunca merece ser esquecido por todos nós conterrâneos.

Um grande bem-haja, onde quer que esteja.

Zé Russo

Solidão e Suplicio

Do Ti Chico

Acorda tarde de boca seca, espreguiça-se e sai da cama.

Abre bem a boca, estica os suspensórios e calça as botas.

Penteia-se, lava a cara e olha-se ao espelho envelhecido.

Caminha à pressa rua abaixo, trôpego de passos incertos.

A chuva forte rega-lhe o rosto, já vai de roupa molhada.

Ao longe vislumbra a taberna do Zé Gato, o vício aperta.

Entra, apoia-se ao balcão, e faz o que lhe dá mais prazer.

De copo de vinho na mão a tremer, não há nada a fazer.

E já com muito álcool nas veias, oscila nas pernas frouxas.

Suas palavras são lamentos, pouco firmes e sem-nexo.

Cabelo liberto, nariz e faces roxas, já vai cambaleando.

De comida não tem apetite, apoderou-se dele a fraqueza.

Nas trevas da vida lá vai caminhando, já sem delicadeza.

Depois passou a ser um porcalhão, e até já cospe no chão.

Leva as mãos trémulas aos bolsos, e gasta o que não tem.

Dá arrotos, ao coçar a cabeça, mas o Zé Gato é matreiro.

E, como já não tem dinheiro! Ele muda de taberneiro.

Desde que seu bom filho morreu! Lá no mato em Angola.

Uma vil bala o atravessou, com os inimigos emboscados.

A vida do Chico acabou! E para mais infelicidade ainda.

Sem amor e com grande crueldade! Sua mulher o deixou.

Foi grande solidão! Ao passar por ele faz doer o coração.

Dos bancos do jardim faz cama, e das botas travesseiro.

Tinha a manta como luar, e por companhia os morcegos.

Suplício passou, a cabeça não funcionou, no vinho se afogou.

Pobre Ti Chico! Apareceu-lhe a cirrose, e a morte o levou.

Teve muitos amigos, mas todos dele fugiram e desprezaram.

Mas nenhuns deles o ajudaram, que até no funeral faltaram.

ZÉ Russo

4/12/2015

Algemas

Nos reencontros entre amigos existem situações vividas boas e más de infância ou adolescência, que deixam mais fortalecidos os afectos e os sentimentos, e deixando as amarguras e as angustias mais apagadas. Muitas vezes revive-se coisas antigas, que se vão buscar ao baú da memória. E por vezes nunca se tiram desse baú cheio de mofo, senão quando encontram a pessoa certa. E foi o caso.

Estava-se a meio da década de oitenta do século passado. O Alentejano Arnaldo com quarenta anos de idade, a viver na outra banda do rio, deslocou-se numa quente manhã de verão a Lisboa para tratar de assuntos relacionados com o seu trabalho.

O estacionamento já nesse tempo não era fácil e no centro da cidade ainda era pior, conseguiu um lugar para o seu carrito num lugar reservado a deficientes, não reparando que estava a infringir as regras.

Minutos depois quando se dirigia para a viatura, estava junto dela um policia a verificar se tinha algum dístico de deficiente ou outro sinal que justifica-se ali o estacionamento correto ou incorreto.

-Bom dia! O senhor é deficiente?

-Felizmente não, mas não reparei na placa, se repara-se não tinha estacionado.

-Pois é! Pois é! É sempre a mesma história, por favor mostre-me os seus documentos e os da viatura.

-Com certeza aqui tem se faz favor.

-O senhor está autuado.

-Faça como entender senhor polícia. Sei que estou em infracção, está no seu direito. Foi mesmo um azar! Por tão pouco tempo fui logo apanhado pelas garras de uma ave de rapina, que me vai rapinar algum dinheiro que me faz falta para o dia a dia.

-Ave de rapina?

-Sim! É uma maneira de falar mas sem ofensa, Deus me livre tal intenção.

O polícia de óculos escuros e boné de pala quase a tapar-lhe os olhos, olhava atentamente os documentos, e analisava minuciosamente o B.I. olhando o dono do veículo com ar de surpresa e um esgar sorriso de felicidade na sua face. E com uma voz autoritária exclamou. O senhor Arnaldo da Conceição Ventura está preso por ofensa à autoridade.

-Preso?

-Sim preso! E bem preso, e vou algema-lo também. Levou as mãos atrás do cinturão e puxou pelas algemas. Com que então ave de rapina! Está tramado.

Arnaldo não queria acreditar o que lhe estava a acontecer. O polícia fez um gesto como para lhe colocar as algemas agarrando-lhe o braço exclamando. A esquadra para onde o vou levar, vai ser ali o restaurante Bom Jardim, pois já estou com fome e tu também ó Pica na Cifra, e de repente cresceu para ele e deu-lhe um grande abraço dado com muita ternura e afecto.

-Não te conhecia se não fosse saber o teu nome todo desde as carteiras da nossa escola, o qual nunca me esqueceu, Eu sou o Benjamim Trindade teu grande amigo e companheiro de escola, mais conhecido pelos amigos por Migalhas.

Voltaram a abraçar-se novamente e caminharam para o restaurante sem ligarem mais ao carro estacionado. Almoçaram e falaram bastante, pondo alguma curiosidade em dia de tantos anos passados sem se verem, graças ao B.I. e à boa memória do polícia.

Combinaram encontrar-se mais tarde, e assim fizeram, trocando contactos.

As alcunhas de ambos eram do tempo de escola. Arnaldo era o ‘Pica na Cifra’ por quando estava ao quadro da escola ficava sempre muito nervoso, e nas contas que fazia estava sempre a picar com o giz nos cifrões.

A alcunha do polícia Benjamim era o Migalhas não era nada simpática, mas ele era forte psicologicamente, o motivo era ele comer do almoço dos amigos, pois a maioria vivia longe, e outros embora morassem perto as mães trabalhavam no campo e levavam almoço. ´Nesse tempo não havia cantinas escolares, nem autocarros para os transportar’.

O dia do novo encontro chegou e o almoço foi na casa do Alentejo, onde os velhos amigos de escola se juntaram novamente.

Nas conversas que tiveram, Benjamim não teve vergonha nem complexos em recordar o seu passado, embora não tivesse orgulhe nele… mas a culpa não era sua, mas sim da sociedade medíocre em que se vivia em 1954-55, de fome e miséria. E começou comentando para Arnaldo.

-À minha mulher e filhos nunca contei absolutamente nada do meu pobre passado. Porque eles nunca iriam compreender, ou até acreditar certas coisas. Os meus filhos já estudam na Universidade…mas nunca os quis magoar contando a minha paupérrima vida, até à vinda voluntária aos dezassete anos para o serviço militar. Depois de terminado ingressei em seguida na polícia melhorando a pouco e pouco a minha vida.

-Benjamim! Falar de miséria para quê? Não fales do que não gostas.

-Preciso falar com alguém, faz-me bem! E vou falar dela contigo porque a conheceste de perto. Deixa-me falar senão rebento Arnaldo, mas não é por termos bebido uns copos ao almoço, é porque necessito mesmo desabafar.

-Então fala lá homem!

- Então cá vai! No Verão e no Inverno caminhava cerca de quatro quilómetros para cada lado para ir para a nossa escola, descaço, mal agasalhado, pés doridos pelo frio com as unhas muitas vezes a sangrar devido ao gelo e às pedras.

Tu sabes que nada comia pela manhã ao pequeno-almoço, apenas porque não tinha. O nosso professor trazia da sua casa café quente, pão, queijo ou toucinho cosido, para mim e para um outro nosso companheiro na mesma situação que eu. Nunca me deu nada directamente, nem na frente de ninguém, para que a caridade não humilha-se, e que a sua bondade me ferisse. Entregava a comida que trazia à senhora continua Dona Custódia e comíamos os dois necessitados, fora das vistas dos outros miúdos na arrecadação.

-Não fales mais de coisas tristes Benjamim. ‘Querendo mudar a conversa’. O nosso professor era um bom homem. sempre muito recto…mas muito exigente connosco. Nunca dava uma reguada a nenhum aluno enquanto os outros professores era a toda a hora. Mas tinha uma coisa muito má. Eram

as três filas de carteiras, onde fazia separação entre os alunos, bons, médios e menos bons ‘ burros’, e conforme era o saber assim era a fila. Nós estávamos quase sempre juntos na fila do meio os ‘assim a assim’. Era uma descriminação, alguns até choravam ao mudar de fila ou de carteira.

-Por falares nisso! Lembrei-me que tu uma vez foste muito mau para mim, estavas numa carteira logo atrás da minha, não respeitando o meu estado de pobreza e asseio, e com um elástico tentavas acertar nalguma pulguita que passeava no meu pescoço e divertias-te com a minha situação.

-Eram coisas de criança Benjamim! E por vezes somos maldosos sem pensar-mos no mal que praticamos.

-Não fiques triste por isso Arnaldo! O que lá vai lá vai! Eu não tenho pejo nenhum em o dizer. Mas em contrapartida tinhas coisas muito boas, eras o meu melhor amigo, repartias a comida da tua marmita do almoço comigo, bons pastelões com batatas e carne eu comia, além de boas sopas de feijão, até uma colher a mais trazias para mim, a tal colher que eu fui lavar na barrica da água depois de comer do teu almoço, e ia morrendo nesse dia, debrucei-me demais e mergulhei lá para dentro ficando de pernas para o ar e a cabeça dentro da água.

- Lembro-me bem! Fui eu que corri em teu auxílio e te puxei pelas pernas ajudado pelo Aristides, se tivesses só, tinhas morrido afogado.

-Hoje não desejo morrer… mas nesse tempo era uma sorte para mim, deixava de sofrer tanto. Desejei tanto a morte e tão novo que era. Sou pequeno, talvez devido à falta de alimento que tive.

-Não digas isso! Todos nós temos tempos maus, e não há ninguém que não tenha problemas, uns mais, outros menos. Há na vida coisas piores como as doenças graves ou crónicas.

-Tua Mãe era uma Santa mulher, das poucas vezes que me levaste à tua casa, dizia-me: come mais! Come mais um pouco! Uma vez deu-me um copo de plástico, pasta de dentes e uma escova, eu nem sabia para que servia, por estas e muitas outras coisas, é que eu nunca falei à minha mulher e filhos da minha infância e adolescência. Nunca foste à minha casa…mas ainda bem! Para ver miséria? Não valia a pena. Meus Pais dormiam na cozinha com um biombo, para fazer de divisão junto da cama, era feito de sacas do adubo com as letras da C.U.F. estampadas nas sacas.

Eu e os meus irmãos dormíamos na outra casa, todos a monte em enxergas no chão, apenas tínhamos duas casas, o chão era de terra batida. As necessidades faziam-se no campo e em qualquer sítio. Só lavava-mos o corpo junto da pia de mármore do poço…mas era mais no Verão.

-Já chega! Pára! Estás já a ficar de lágrimas nos olhos e muito emocionado.

-Não faz mal! Pelo contrário, até me sinto bem em falar, depois de tantos anos passados. Quero que saibas que até um rato durante a noite mordeu a orelha do meu irmãozinho mais novo quando dormia. Foi grande o alarido, acordou-nos a todos, e minha Mãe nesse dia não pôde ir a trabalhar foi com ele para o hospital, mas felizmente não teve nenhuma doença.

As crises de trabalho nessa época eram grandes, os homens juntavam-se aos magotes concentrados no centro da povoação à espera de serem contratados para trabalhar aqui ou ali, a mando de algum lavrador para trabalhos de campo. Normalmente contratavam os mais fortes.

-Ó benjamim quem nos havia de dizer que tanto anos depois, o acaso nos ia juntar de novo, aqui na casa do Alentejo a almoçar e a falarmos das nossas vidas, desabafando coisas que dizes só a mim ter revelado, embora eu saiba de algumas das tuas chagas vividas.

-Sabes o que eu pensei quando te preparavas para me algemares? Este polícia é maluco! Não deve estar bom da cabeça! Algemar-me?

-Foi um grande divertimento meu, pois eu ao ler o teu nome conheci-te logo, e pensei: vou gozar com o Pica na Cifra …mas senão lesse o teu nome no B.I. não te conhecia, pois já tinham passado trinta anos que não nos víamos. Afinal este reencontro serviu rara cimentar mais ainda a nossa amizade doutros tempos e vai continuar certamente.

-A vida passa rápido e vamos nos reencontrar. Eu sei. Eu sinto. Uma despedida é necessária antes de podermos nos encontrar outra vez’ mas sem algemas’. E riam bastante.

Em seguida deram um abraço de despedida, até ao próximo encontro para outro bom almoço.

Zé Russo

8-1-2016

BORBA

TRÊS PERSONAGENS DA NOSSA TERRA

O Ti ANTÒNIO DIOGO E O TI ALEXANDRE

Vendedores de castanhas

Esta simpática personagem era o encanto dos mais pequeninos. No inverno vendia castanhas assadas, chupa-chupas, caramelos, tremoços e outras guloseimas, estava localizado no alto da praça perto do passo da vila na esquina junto ao café da velhinha senhora Joana da Cristina.

Durante algumas horas durante a noite a sua barraquinha era iluminada com um gasómetro que funcionava a carboneto, com uma luzinha fraca mas suficiente.

O Ti Diogo não podia trabalhar por não ter uma perna, daí esse modo de vida para poder sobreviver, deslocava-se em muletas com dificuldade, e também por ser muito gordo, era muito nervoso e falador, sabia da vida de todos os Borbenses, dava fé de tudo, era um verdadeiro cuscas.

No verão mudava de local de venda, passava para o parque e jardim da vila junto ao coreto, ali ficava a viver e a vender de todos os doces que a criançada gostava.

Os tremoços por ele vendidos eram dos melhores da vila, porque eram adoçados na vieira do lago ali bem perto com boa água corrente… mas de vez enquanto o saco dos tremoços aparecia com pequenos buracos, de onde alguns gaiatos mais atrevidos sem dinheiro para os comprar roubavam alguns tremoços, e ele ficava danado, até espumava pela boca.

Era ele que alugava no verão calções, para a miudagem tomar banho no lago, situado por detrás da fonte das bicas, onde havia uma barraquinha em pano junto ao lago, era ali que vestia-mos os calções.

Nesse tempo quase toda a criançada sabia nadar, era o nosso local de brincadeira, havia ali bons nadadores, que até chegavam a atravessar o lago

de costas com um cigarro aceso na boca. Entre todos eles destaco, o saudoso Manuel Baptista já desaparecido.

Havia alguns que se divertiam a atirar moedas para dentro de água, para nós mergulharmos a apanha-las, mas só podia acontecer quando a água do lago estava limpa e transparente.

As nossas toalhas para nos enxugar, eram a pedra quente das paredes do lago, naquele sol quente do Alentejo.

Nesse tempo longínquo ainda não havia piscinas, e muito menos moedas para o aluguer dos calções, os tanques onde banhava-mos eram diversos, como a quinta da prata, onde hoje é o lar da Santa Casa da Misericórdia, mosteiro, horta do Mateus Canelhas, e outros tanques de rega das hortas, mas a nossa preferida era a albufeira embora longe.

Também havia uma outra barraquinha de um outro senhor, também já velhinho, numa esquina junto à taberna do senhor João Caxatra, era o Ti Alexandre que vendia doces e castanhas assadas para a criançada, e também para alguns outros apreciadores de castanhas, que iam beber uns copitos de vinho, acompanhados de castanhas assadas.

Este Ti Alexandre era mais sociável com a miudagem, brincava, e até contava anedotas, onde grupos de miúdos se entretinham a ouvi-lo. Era muito bem-humorado, gostava da uma boa piada, aproveitava a vida de forma alegre e com um sorriso nos lábios.

Tinha uma maneira de ser e um à-vontade incomum, embora tivesse muita dificuldade na locomoção por se deslocar em muletas para poder andar, para ele ser deficiente não era problema.

Um bem aja para ambos, foram muito interessantes para a criação dos miúdos desse tempo.

O Ti URBINO

Homem dos sete ofícios

Esta simpática e grande personagem de Borba, Urbino Jesus Catarino é inesquecível. Era o homem dos sete ofícios como se dizia na terra. Muito prestável, educado e amigo da criançada.

Caminhava sempre depressa, era como se andasse aos pulinhos como se fosse dono do mundo. Bom dia menino, boa tarde menina, sempre muito educado.

Embora pequeno no tamanho mas foi um grande homem, contribuindo para o bem-estar e boa vivência da sociedade Borbense.

Nesse tempo era o maior obreiro e organizador sem dinheiro, dos Bombeiros Voluntários de Borba, sem condições nenhumas.

Havia um único e velho carro de bombeiros Oldesmobil de oito cilindros em linha, adaptado para apagar fogos, era o Senhor Urbino que passava horas a arranjar diverso material, como mangueiras e outros utensílios.

Este carro nem sempre trabalhava quando tocava a fogo no sino da torre num som de aflição. Gritava o tocador do sino lá de cima da torre. O fogo é em tal sítio no monte «tal». Das poucas vezes que o carro trabalhava lá ia o Senhor Urbino em cima a comandar as operações em pé junto do condutor.

Quartel de bombeiros não havia, o velho carro ficava em armazéns cedido por favor de alguém, como num barracão da Senhora Dona Violante, ou num velho armazém na Corredoura, ao lado da taberna da Dona Cecília.

Na época de Natal a sua oficina de electricista era frequentada pela criançada, para ver o seu bonito presépio, nesse tempo o mais bonito da terra, também era ele que vendia os bonequinhos para nós fazermos nas nossas casas o presépio.

Era um encanto ver os seus passarinhos soltos pela oficina, com uma vedação em rede para não fugirem para a rua, era bonito ver alguns poisados nos seus ombros, canários, periquitos e outros.

Além de electricista e canalizador, era aferidor de medidas de madeira para cereais, outras para líquidos, e também balanças, pois

ninguém podia vender nada sem ter um selo colocado por ele para não haver trafulhas.

Era este bom homem que examinava os miúdos que queriam tirar o cartão de ciclista. Perguntava assim: sabes este sinal, e aquele também? Fazia mais umas perguntas, se não sabíamos ele ensinava. Dava-nos um cartão com o nosso nome e carimbado por ele. Não conheci ninguém que não passasse no exame.

Nós miúdos saiamos da sua oficina todos vaidosos de cartão na mão, podendo andar na via publica sem problemas.

Além de todas estas actividades. Ainda compunha as montras da vila com muita habilidade. Mas o seu maior tesouro era ser muito querido para as crianças, a todas ao passar por elas fazia-lhe um carinho.

Pertencia também à organização protectora dos animais mas um dia disse-me ter muita pena de as andorinhas não fazerem os ninhos nos beirais da sua casa.

Onde quer que estejas Senhor Urbino estás sempre no peito dos Borbenses que te conheceram e admiraram.

O TI MANEL DO MONTE

Um bom vivant

Era uma simpática e bem-disposta personagem, homem muito possante de grande estatura física, o seu andamento era de grandes passadas, sempre com um grande pau na mão quando pela vila passava.

Tinha muitas terras e bens que explorava com os seus dois filhos e empregados nos finais da década de cinquenta e inícios dos anos sessenta. O seu transporte normalmente era num cavalo, trem, ou carroça daqueles tempos.

Para compensar os seus dois filhos que bastante trabalhavam nas terras, mandou-lhes tirar a carta de condução, mais tarde deslocou-se a

Évora num carro de praça com os dois filhos, para comprar um automóvel para cada um.

Entrou num stand da marca Ford, onde foi atendido com pouca simpatia, algumas dúvidas e desinteresse, pelo empregado em relação à compra que desejava fazer, este engravatado vendedor olhava para as roupas de trabalho dos três homens, calças de saragoça e chapéu desabado.

Em ar de chalaça disse-lhes que os automóveis eram muito caros, talvez fosse melhor comprar uma bicicleta a pedais.

O Ti Manel deu uma palmada nas costas de um dos filhos dizendo… vamos mas é embora daqui desta loja de carros, mas levanta daí o saco do dinheiro que está aí sentado com o cu em cima desse sofá, pois só o dinheiro é que tem o direito de estar sentado, a nós nem tiveram a educação de nos mandar sentar. «Levanta-te dinheiro»

Dali seguiram para um stand de uma outra marca, a Fiat, onde os receberam com mais educação sem qualquer conversa menos imprópria e deselegante, e comprou dois automóveis, um para cada filho.

Depois de tudo acertado, agarrou no saco do dinheiro com os maços de notas, que demorou algum tempo a contar. Em seguida foram mostrar os carros Fiat ao stand da Ford, ao mesmo empregado engravatado… dizendo para ele. Viemos aqui para lhe agradecer e comunicar que seguimos o vosso conselho, e, que acha das bicicletas? Apontando para os carros junto da porta do stand. São bonitas e lustrosas não são? Em seguida viraram lhe as costas e partiram para casa rindo às gargalhadas.

Depois passaram pela vila para mostrarem as máquinas a alguns amigos, entre os quais um em especial, que era o mecânico que lhes arranjava os motores de rega.

Entre eles comentavam para o Mestre mecânico. Ò Mestre! O meu Fiat é um 1200 é muito mais do que o do meu irmão que é 1100, mas não se nota nada a potencia. O irmão respondia; eu quero lá saber! Não é para correrias, o meu tem uma cor mais bonita que o teu.

Junto ao portão da oficina do Mestre mecânico, onde eu com treze anos aprendia o ofício de mecânico. Um deles não conseguia arrancar com o carro, pois tinha o travão de mão travado, ele bem acelerava mas nada, o

carro não saia do mesmo sítio, até que o mestre lhe foi destravar o carro e lá partiram.

Mas o mais engaçado passou-se cem metros à frente, deu boleia a dois trabalhadores que iam para aquela povoação perto da sua propriedade. Em seguida: um pouco mais à frente cerca de dois quilómetros, o Ti Manel mandou parar o carro a meio de uma grande subida, onde ele seguia no banco da frente ao lado de um dos filhos.

E em jeito de divertimento e boa disposição, pediu a quem vinha na parte de trás. Venham mas é todos cá para a frente, que o carro vai traseiro.

Isto porque o Ti Manel estava habituado às carroças, porque quando ia naquela subida muito íngreme para sua casa, tinham que se deslocar para a parte da frente da carroça, para que os animais não sofressem tanto no seu esforço com a inclinação durante a subida.

Ao chegarem ao monte da herdade, foram comemorar com uns copitos de vinho, e quase morriam de rir falando da cara enjoada do vendedor engravatado, quando os viu com dois carros novos Fiat.

Em seguida foram dar um grande abraço à sua Mãe que os esperava com curiosidade de ver os filhos e os automóveis novos.

Castelo

Rua de Santa Maria

Os Fugitivos

O que aqui escrevo sobre este tema, quase tudo me foi contado por uma família Espanhola, com a qual vivi muitos anos lado a lado.

Também aos meus Pais e Avós ouvia contar muitos acontecimentos trágicos, desses anos de guerra civil em Espanha entre 1936 e 1939, passou-se quando eu ainda nem era nascido.

Na Rua de Santa Maria no Castelo de Borba em frente das escadinhas do cinema, moravam três senhoras de nacionalidade Espanhola. Todas trajavam de negro, o luto era a marca do sofrimento devido à perda dos seus filhos e maridos, que nem viram sepultar por motivos óbvios. Nunca lhes conheci outra roupa até morrerem.

Eu nasci num quarto por cima da casa delas, onde a janela dava para o seu quintal, onde elas por vezes me chamavam para me acordar, “é hora de escola Zé”.

Meu Avô deu-lhes abrigo naquela modesta casa, com apenas duas divisões… uma sala e um grande quarto. Tinham também um quintal com um alpendre onde cozinhavam no verão e a um outro canto um sifão para despejos.

O meu Avô nunca lhes cobrou um tostão de arrendamento, enquanto viveu. Após a sua morte… meus Pais respeitaram sempre a sua atitude de benevolência e o acto de caridade dele, e ali viveram sempre até morrer durante mais de vinte anos sem pagar nada.

A mais nova era a Antónia, a de meia-idade, era a sua Tia chamada Tita, da mais idosa já não me recordo do seu nome, mas poucos anos viveu embora eu ainda me recorde muito bem dela, sempre muito curvada pela idade.

A sua subsistência era devido a trabalhos de costura e da ajuda de minha Mãe com comida. Todas as semanas nos sábados eu lhes ia levar um panito quentinho acabado de sair do forno da vila, esse forno era do senhor Duarte que existia no cimo da rua de Estremoz.

Esse pão era transportado num enorme tabuleiro à cabeça pelas bonitas filhas do senhor Duarte até à minha casa e durava uma semana até a nova amassadura.

Eu fui ali criado junto delas, muitas vezes aos seus colos desde bebe, até ser adolescente, aprendendo o Espanhol e ouvindo muitos acontecimentos da sua atribulada vida de refugiados, “principalmente Republicanos”.

Não me contavam certos episódios tristes e mais dramáticos para não ficar triste, e, até possivelmente… para não vir a sonhar com eles durante a noite… mas eu sempre ia sabendo sem elas terem conhecimento, quando falavam com a minha Mãe. Eram acontecimentos horríveis, que eu na altura como adolescente nem queria acreditar serem possíveis.

Eu suponho que Antónia tinha um namorado de quem eu gostava muito, a que eu em pequeno chamava de João da Cuca, era um cigano, e o único autorizado a viver em Borba, por ser muito boa pessoa.

É que nesse tempo os ciganos assassinaram dois Borbenses e foram dali corridos pelas autoridades a mando do Presidente da Câmara, que mais tarde foi meu Professor na Escola Primária. Esse crime aconteceu ali bem perto da minha casa.

Muitas vezes eu na minha meninice fazia de cavalo nas pernas dele, e mais tarde comia bons petiscos cozinhados por ele, principalmente ouriços assados na brasa, “era um bom homem”.

Toda esta minha reflexão vem a propósito… Foi tirada do armário da minha memória sobre o que sofreram os refugiados em Espanha e durante as viagens para Portugal.

A Guerra era feroz. Foi dos acontecimentos mais traumáticos que ocorreram antes da segunda Guerra Mundial, causando mais de meio milhão de mortos. Milhares de Republicanos fugiram do país.

O Estado Novo de Salazar apoiava os revoltosos Espanhóis. Possibilitou a passagem de forças e equipamentos, sendo também um parceiro no campo da diplomacia…mas as suas relações com o Caudilho eram frias e de desconfiança, e cresceram os apoios dos partidos nacionalistas (faxistas) da Alemanha da Itália e de Portugal. Que ajudaram muito o regime totalitário de Francisco Franco.

Toda a família de Antónia foi morta, elas as três escaparam porque um Padre as escondeu na igreja debaixo do altar da Virgem Maria, era um local pequeno demais para elas, nem podiam sequer gemer. Escondidas assistiram ao som dentro e fora da igreja aos gritos e gemidos de agonia de morte dos seus filhos, maridos e Pais.

Foram fuzilados ali mesmo, nem para a praça de touros os enviaram como faziam a milhares. O sangue corria pelas ruas da localidade. Foi horrível.

Não pode haver pintor no Mundo que consiga pintar quadro tão triste e horrível. Talvez o do famoso painel pintado por Pablo Picasso- “Guernica”.

Enquanto as duas mulheres debulhavam umas ervilhas para o almoço. Desabafava Antónia para minha Mãe…. Chorando ela, e fazendo-a chorar também. Relatando factos horríveis que eu escutava com atenção.

O Padre que as salvou, dias depois não aguentou a pressão dos acontecimentos e enforcou-se na própria igreja, depois de esta ser incendiada e destruída pelos anarquistas e comunistas, Já depois de ter salvado muitas almas da morte, “entre as quais elas as três”.

Dali, elas conseguiram fugir durante a noite, juntando-se a um pequeno grupo atravessando o Rio Guadiana. Caminharam muito exaustas, molhadas, com frio e fome… até que chegaram a um ponto onde foram socorridas por boas almas Portuguesas, onde estava o meu Avô com mais alguns homens de bem, que os alimentaram e arranjaram roupas para todos.

Eram homens, mulheres e crianças descalças com os pés feridos de tanto andar pelos campos, ali ficaram numa herdade onde a palha não faltava, dormindo nela, comeram e ganharam forças para mais um dia de caminhada sem saber para onde ir, sem terem um destino definido.

O estado das três senhoras era muito deprimente, “principalmente a mais velhinha”, já não podia caminhar mais. Ali ficaram, e com a generosidade do povo Alentejano, foram recolhidas e tratadas, onde o meu Avô lhes cedeu uma casa para viverem.

Meu Avô teve alguns problemas com as autoridades, mas algum dinheiro dado há Guarda Republicana resolveu o problema, e eles fecharam os olhos. “Pois quando o dinheiro fala a boca cala”. Ditado Alentejano.

Durante a viagem… Havia uma pequena e ténue esperança nos olhos dos fugitivos, que para além daquele céu e daquela vasta planície que trilhavam, sonhavam ter asas como as cotovias que lá no ar esvoaçavam em liberdade observando as filas daquela massa humana.

Iam encontrar outras gentes, outras casas, outras estradas…Por elas corria para alguns uma vida nova, que os faria sentir como gente, e não como gado…mas poucos o conseguiam…mas mesmo assim havia bastantes que foram acolhidos no Alentejo.

Sol – Chuva – Vento – Frio – Vida - Morte. Tantos lobos. Tantos cães raivosos a cercarem o povoado com as patas da opressão, cuspindo na cara do povo, que fugia dos tentáculos do polvo, “da ditadura Franquista” que derrubou a República Espanhola.

Uma camioneta passa por eles a buzinar, roncando de escape livre. -Eh anarquista- gritava-lhes uma voz contrária e retrógrada de dentro da cabine.

Como em tudo na vida há bons e maus, e alguns guardas mais humanos repartiam a sua água e a sua comida que levavam com eles. Outros não…eram negrumes de maus fígados, autênticos cães de fila de ideologia retrógrada, que a troco de alguma comida, gabavam-se nas tabernas da vila, que boas e bonitas Espanholas os punham a mijar e outras coisas mais.

As autoridades Portuguesas eram obrigadas a encaminhar para a fronteira do Caia todos os que encontravam pelos campos e caminhos, revezando-se os guardas uns aos outros, de localidade em localidade, entregando-os aos camaradas que os esperavam e os encaminhavam para Espanha onde eram recebidos pela guarda Espanhola.

Eu ouvi contar aos meus Pais, que um grupo de refugiados já muito exaustos sem quase poderem caminhar. Naquele sofrimento uma Mãe deixou cair o seu filho do colo sem dar por isso, não sendo espezinhado por os que seguiam atrás, porque um jovem Guarda Republicano o apanhou e transportou ao seu colo… mas a sua sorte ou o seu destino estavam marcados. Quando chegaram a Espanha foram todos fuzilados.

Em Espanha eram encaminhados para a praça de touros de Badajoz onde a maioria era fuzilada. Minha Mãe contava que quando o vento estava de favor vindo de Espanha, o tal vento suão que os Portugueses detestam. Talvez venha daí o ditado de Espanha não vêm nunca bons ventos nem bons casamentos.

O som das armas a matar os Espanhóis Republicanos e outras facções políticas, chegava aos seus ouvidos, aí ela chorava agarrada aos meus irmãos. Nesse tempo alguns curiosos iam para os montes mais altos ver os pequenos aviões largar bombas.

O clima de turbulência interna entre anarquistas e falangistas provocava inúmeros assassinatos. A guerra estava no pico máximo. “Nada há pior que uma guerra civil”.

O que aqui escrevo sobre este tema, quase tudo me foi contado por uma família Espanhola, com a qual vivi muitos anos lado a lado.

Também aos meus Pais e Avós ouvia contar muitos acontecimentos trágicos, desses anos de guerra civil em Espanha entre 1936 e 1939, passou-se quando eu ainda nem era nascido.

Na Rua de Santa Maria no Castelo de Borba em frente das escadinhas do cinema, moravam três senhoras de nacionalidade Espanhola. Todas trajavam de negro, o luto era a marca do sofrimento devido à perda dos seus filhos e maridos, que nem viram sepultar por motivos óbvios. Nunca lhes conheci outra roupa até morrerem.

Eu nasci num quarto por cima da casa delas, onde a janela dava para o seu quintal, onde elas por vezes me chamavam para me acordar, “é hora de escola Zé”.

Meu Avô deu-lhes abrigo naquela modesta casa, com apenas duas divisões… uma sala e um grande quarto. Tinham também um quintal com um alpendre onde cozinhavam no verão e a um outro canto um sifão para despejos.

O meu Avô nunca lhes cobrou um tostão de arrendamento, enquanto viveu. Após a sua morte… meus Pais respeitaram sempre a sua atitude de benevolência e o acto de caridade dele, e ali viveram sempre até morrer durante mais de vinte anos sem pagar nada.

A mais nova era a Antónia, a de meia-idade, era a sua Tia chamada Tita, da mais idosa já não me recordo do seu nome, mas poucos anos viveu embora eu ainda me recorde muito bem dela, sempre muito curvada pela idade.

A sua subsistência era devido a trabalhos de costura e da ajuda de minha Mãe com comida. Todas as semanas nos sábados eu lhes ia levar um panito quentinho acabado de sair do forno da vila, esse forno era do senhor Duarte que existia no cimo da rua de Estremoz.

Esse pão era transportado num enorme tabuleiro à cabeça pelas bonitas filhas do senhor Duarte até à minha casa e durava uma semana até a nova amassadura.

Eu fui ali criado junto delas, muitas vezes aos seus colos desde bebe, até ser adolescente, aprendendo o Espanhol e ouvindo muitos acontecimentos da sua atribulada vida de refugiados, “principalmente Republicanos”.

Não me contavam certos episódios tristes e mais dramáticos para não ficar triste, e, até possivelmente… para não vir a sonhar com eles durante a noite… mas eu sempre ia sabendo sem elas terem conhecimento, quando falavam com a minha Mãe. Eram acontecimentos horríveis, que eu na altura como adolescente nem queria acreditar serem possíveis.

Eu suponho que Antónia tinha um namorado de quem eu gostava muito, a que eu em pequeno chamava de João da Cuca, era um cigano, e o único autorizado a viver em Borba, por ser muito boa pessoa.

É que nesse tempo os ciganos assassinaram dois Borbenses e foram dali corridos pelas autoridades a mando do Presidente da Câmara, que mais tarde foi meu Professor na Escola Primária. Esse crime aconteceu ali bem perto da minha casa.

Muitas vezes eu na minha meninice fazia de cavalo nas pernas dele, e mais tarde comia bons petiscos cozinhados por ele, principalmente ouriços assados na brasa, “era um bom homem”.

Toda esta minha reflexão vem a propósito… Foi tirada do armário da minha memória sobre o que sofreram os refugiados em Espanha e durante as viagens para Portugal.

A Guerra era feroz. Foi dos acontecimentos mais traumáticos que ocorreram antes da segunda Guerra Mundial, causando mais de meio milhão de mortos. Milhares de Republicanos fugiram do país.

O Estado Novo de Salazar apoiava os revoltosos Espanhóis. Possibilitou a passagem de forças e equipamentos, sendo também um parceiro no campo da diplomacia…mas as suas relações com o Caudilho eram frias e de desconfiança, e cresceram os apoios dos partidos nacionalistas (faxistas) da Alemanha da Itália e de Portugal. Que ajudaram muito o regime totalitário de Francisco Franco.

Toda a família de Antónia foi morta, elas as três escaparam porque um Padre as escondeu na igreja debaixo do altar da Virgem Maria, era um local pequeno demais para elas, nem podiam sequer gemer. Escondidas assistiram ao som dentro e fora da igreja aos gritos e gemidos de agonia de morte dos seus filhos, maridos e Pais.

Foram fuzilados ali mesmo, nem para a praça de touros os enviaram como faziam a milhares. O sangue corria pelas ruas da localidade. Foi horrível.

Não pode haver pintor no Mundo que consiga pintar quadro tão triste e horrível. Talvez o do famoso painel pintado por Pablo Picasso- “Guernica”.

Enquanto as duas mulheres debulhavam umas ervilhas para o almoço. Desabafava Antónia para minha Mãe…. Chorando ela, e fazendo-a chorar também. Relatando factos horríveis que eu escutava com atenção.

O Padre que as salvou, dias depois não aguentou a pressão dos acontecimentos e enforcou-se na própria igreja, depois de esta ser incendiada e destruída pelos anarquistas e comunistas, Já depois de ter salvado muitas almas da morte, “entre as quais elas as três”.

Dali, elas conseguiram fugir durante a noite, juntando-se a um pequeno grupo atravessando o Rio Guadiana. Caminharam muito exaustas, molhadas, com frio e fome… até que chegaram a um ponto onde foram socorridas por boas almas Portuguesas, onde estava o meu Avô com mais alguns homens de bem, que os alimentaram e arranjaram roupas para todos.

Eram homens, mulheres e crianças descalças com os pés feridos de tanto andar pelos campos, ali ficaram numa herdade onde a palha não faltava, dormindo nela, comeram e ganharam forças para mais um dia de caminhada sem saber para onde ir, sem terem um destino definido.

O estado das três senhoras era muito deprimente, “principalmente a mais velhinha”, já não podia caminhar mais. Ali ficaram, e com a generosidade do povo Alentejano, foram recolhidas e tratadas, onde o meu Avô lhes cedeu uma casa para viverem.

Meu Avô teve alguns problemas com as autoridades, mas algum dinheiro dado há Guarda Republicana resolveu o problema, e eles fecharam os olhos. “Pois quando o dinheiro fala a boca cala”. Ditado Alentejano.

Durante a viagem… Havia uma pequena e ténue esperança nos olhos dos fugitivos, que para além daquele céu e daquela vasta planície que trilhavam, sonhavam ter asas como as cotovias que lá no ar esvoaçavam em liberdade observando as filas daquela massa humana.

Iam encontrar outras gentes, outras casas, outras estradas…Por elas corria para alguns uma vida nova, que os faria sentir como gente, e não como gado…mas poucos o conseguiam…mas mesmo assim havia bastantes que foram acolhidos no Alentejo.

Sol – Chuva – Vento – Frio – Vida - Morte. Tantos lobos. Tantos cães raivosos a cercarem o povoado com as patas da opressão, cuspindo na cara do povo, que fugia dos tentáculos do polvo, “da ditadura Franquista” que derrubou a República Espanhola.

Uma camioneta passa por eles a buzinar, roncando de escape livre. -Eh anarquista- gritava-lhes uma voz contrária e retrógrada de dentro da cabine.

Como em tudo na vida há bons e maus, e alguns guardas mais humanos repartiam a sua água e a sua comida que levavam com eles. Outros não…eram negrumes de maus fígados, autênticos cães de fila de ideologia retrógrada, que a troco de alguma comida, gabavam-se nas tabernas da vila, que boas e bonitas Espanholas os punham a mijar e outras coisas mais.

As autoridades Portuguesas eram obrigadas a encaminhar para a fronteira do Caia todos os que encontravam pelos campos e caminhos, revezando-se os guardas uns aos outros, de localidade em localidade, entregando-os aos camaradas que os esperavam e os encaminhavam para Espanha onde eram recebidos pela guarda Espanhola.

Eu ouvi contar aos meus Pais, que um grupo de refugiados já muito exaustos sem quase poderem caminhar. Naquele sofrimento uma Mãe deixou cair o seu filho do colo sem dar por isso, não sendo espezinhado por os que seguiam atrás, porque um jovem Guarda Republicano o apanhou e transportou ao seu colo… mas a sua sorte ou o seu destino estavam marcados. Quando chegaram a Espanha foram todos fuzilados.

Em Espanha eram encaminhados para a praça de touros de Badajoz onde a maioria era fuzilada. Minha Mãe contava que quando o vento estava de favor vindo de Espanha, o tal vento suão que os Portugueses detestam. Talvez venha daí o ditado de Espanha não vêm nunca bons ventos nem bons casamentos.

O som das armas a matar os Espanhóis Republicanos e outras facções políticas, chegava aos seus ouvidos, aí ela chorava agarrada aos meus irmãos. Nesse tempo alguns curiosos iam para os montes mais altos ver os pequenos aviões largar bombas.

O clima de turbulência interna entre anarquistas e falangistas provocava inúmeros assassinatos. A guerra estava no pico máximo. “Nada há pior que uma guerra civil”.

Dia Primeiro de Maio “anos cinquenta”

A viúva Alzira e o piquenique

O Abel dormia muito tranquilo e quentinho, quando sua Mãe Alzira, acordou o seu filhote de oito anos.

-Levanta-te meu menino, hoje é um dia especial, tens que te levantar mais cedo. Ele esfregou os olhitos, espreguiçou-se e ficou muito surpreendido ao ver a sua Mãe com um pequeno prato de bolos e um cálice de vinho do Porto.

-Que é isto Mãe?

-É por hoje ser dia um de Maio, come um bolinho e bebes uma pinga de vinho do Porto, não quero que deixes entrar o Maio.

-Entrar o Maio?

-Sim! É uma tradição muito antiga e também vou colocar um ramo de giestas penduradas da nossa porta da rua, para afugentar o mal.

-Mas que mal, e porquê?

-É um costume muito antigo, que já os meus Pais me consagravam a mim, quando era da tua idade.

-Continuo a não entender.

-É uma lenda que aqui no Alentejo e noutros sítios se transformou em tradição e as nossas tradições são a nossa cultura, e um povo sem cultura é como uma casa sem janelas.

-Conta-se que no tempo em que Jesus nasceu, o Rei Herodes queria matar todas as crianças, e mandou os seus soldados procurar uma casa que tinha pendurado da porta um ramo de giestas. Porque seria ali naquela casa que estava escondida a Família Sagrada.

-Qual foi o espanto dos soldados, pois encontraram todas as casas com ramos de giestas penduradas nas portas da aldeia. Gorando-se, assim, a possibilidade do Menino Jesus ser descoberto e ser morto.

-Ó Mãe! Quem o denunciou foi outro Judas. Não foi Mãe?

-Foi sim meu filho! Um outro Judas qualquer, igual a muitos outros que infelizmente existiram há mais de dois mil anos e ainda hoje existem.

“Mal comparado, e em tempos muito diferentes e longínquos, nós Portugueses do século vinte, estamos numa ilha rodeados de inquisidores por todo o lado. A PIDE”.

-Mas ambas as coisas hão-de acabar um dia com o tempo e a origem desta tradição atribui-se a um velho ritual pagão e passou a ter um carácter religioso.

Abel depois de comer umas sopas com café de cevada, colocou a sua sacola de serapilheira ao ombro presa com um cordel, lá dentro tinha um quadro e uma pena de ardósia, um caderno, um bocado de um lápis, o livro de leitura que já tinha servido a seu falecido irmão, e um pedaço de pão com queijo embrulhado num pano, para o almoço.

“Nos dias de hoje ninguém vai de sacola de serapilheira, todos os anos se têm que comprar livros novos e vão carregados de livros às costas estragando a coluna com grandes mochilas, lá dentro da mochila têm de tudo e não precisam de levar o pão para almoçar, têm a cantina com comida quente e ainda protestam e exigem”.

Pelo caminho andou três quilómetros a pé até chegar perto do portão estando este sempre aberto na escola, onde encontrou já perto o seu, e, único professor de todas as disciplinas, que cumprimentou educadamente com muito respeito.

“Nos dias de hoje não se vai a pé, há transportes pagos por todos nós contribuintes… mas por vezes os portões estão fechados a cadeados e a falta de respeito dos alunos perante os professores é gritante, havendo um professor para cada disciplina”.

Os professores daquele tempo eram detentores do saber, eram uma força motriz nas escolas do meu tempo. A sua função era primordial na escola, nesse módulo transmitiam conhecimentos disciplinares e morais para uma formação geral dos alunos, embora alguns menos profissionais dessem algumas reguadas aos mal comportados.

“Hoje infelizmente são os alunos a bater aos professores. Não existe respeito. E alguns professores não sabem ensinar os alunos convenientemente”.

Foi nesta década que passou a haver obrigatoriedade escolar de quatro anos.

Nesse dia um de Maio o Abel ouvia atentamente o seu professor, que falava sobre o saneamento básico, aconselhando poços longe de latrinas, para preservar a saúde e a natureza, plantas, passarinhos e animais, comentando que estes dias bonitos eram maravilhosos para se fazer um piquenique junto a um riacho ou uma ribeira.

“Nesse tempo não havia esgotos a céu aberto e cada um fazia as suas necessidades em qualquer lado, moscas e ratos e outros animais contaminavam tudo e todos”.

Abel não sabendo o que era um piquenique, questionou a sua Mãe sobre essa palavra quando chegou a casa. Sua Mãe ficou calada fingindo não ouvir. Amanhã vou lavar a roupa…mas como é sábado não tens escola e vais comigo à quinta. Lá vais ter uma surpresa.

-Qual é a surpresa?

-As surpresas não se divulgam, meu menino! Assim deixariam de ser surpresas.

No dia seguinte logo muito cedo partiram de casa, sua Mãe de saco de roupa branco à cabeça, ao seu lado caminhava Abel levando nas suas pequenas mãos, numa uma cantarinha de água e na outra a alcofa do almoço bem tapadinho e embrulhado numa linda toalha.

Ao chegarem àquinta onde os Avós eram os caseiros, estes ficaram radiantes, houve beijinhos e abraços, Alzira agradeceu como sempre o almoço que seus sogros sempre lhe colocavam na mesa, explicando que desta vez não comia com eles mas sim os quatro, ia fazer um piquenique surpresa ao Abel, não almoçando com os sogros em casa.

Os dois foram para junto do tanque onde o Avô recomendou prudência junto da água, Alzira começou a tarefa de lavar a sua roupa na pedra do tanque, enquanto seu filho desfrutava toda aquela liberdade rebolando-se na relva.

“Hoje felizmente a roupa é lavada em boas máquinas e secada”.

Seu Avô, com saudades dele apoiava-o, ensinando-o a apanhar grilos com uma palhinha, assaltando a toca deles, pé ante pé para não fazerem ruído, e lá apanhavam alguns que iam seleccionando, libertavam os menos cantadores ficando apenas com um, o que tinha mais realista (cor amarela no dorso) no momento enquanto o seu paciente Avô, lhe fazia uma gaiola em junco, onde lhe deu serralha para comer, ele tinha por baixo do seu chapéu de palha um grilo a cantar junto do cabelo fazendo-lhe alguma comichão.

Seu velho Avô ria-se de o ver com vontade de coçar a cabeça enquanto o grilo cantava… mas de repente ficou triste lembrando-se que já tinha feito o mesmo ao seu filho, já falecido e Pai de Abel… mas a vida é mesmo assim e foi- se embora descarregar os seus amargos desgostos para longe do netinho.

Alzira já cansada lavava a roupa e em seguida estendia-a na relva a corar, ao passar pelo filho vendo-o a comer framboesas que seu Avô cuidava muito bem embarradas em canas, o seu sorriso quase imperceptível deslizava-lhe pelo rosto, estendendo-se aos seus belos olhos negros como amoras...em contentamento. Claro está.

O som do correr da água no tanque era cortado pelo lindo som das rãs que coaxavam parecendo uma orquestra, enquanto os passarinhos chilreavam e voavam de ramo em ramo com bocadinhos de palha nos bicos para fazerem os seus ninhos. As abelhas zumbiam de flor em flor colhendo o néctar para fabricarem o precioso mel. Enquanto as andorinhas carregavam lama nos bicos para fazerem os ninhos no beiral da casa da burra. Era a Primavera.

A hora do almoço chegou. Alzira estendeu a toalha na relva, compôs tudo ao pormenor e mandou chamar os Avós, e os quatro sentaram-se a comer e a beber daquela boa água fresca da cantarinha de barro. Uma enorme formiga preta caminhava para junto da comida por cima da toalha. Abel ia matá-la, mas o seu experiente Avô não deixou, dizendo…tudo tem direito a viver meu netinho, deixa-a para que um passarinho se alimente dela, colocou-lhe um miolo de pão em frente do seu caminho, que ela apanhou e lá partiu.

-Abe,l tu sabes o que estamos aqui a fazer neste momento?

-Sei, Mãe! Estamos a almoçar.

-Sim! Mas todo este acontecimento aqui presente chama-se piquenique, foi a pergunta que ontem me fizeste e eu não te respondi. O que vês pela primeira vez e materializaste hoje, além de juntares a tudo isto toda a natureza que nos rodeia e apreciaste, foi o que o teu professor te quis transmitir. É esta a minha resposta à tua pergunta. Viver os factos reais sempre é muito melhor.

Em seguida, os dois riam muito felizes com os seus Avós, sem eles terem vontade de se irem embora naquele bom ambiente familiar, mas o tempo ia passando e Alzira já cansada depois de arrumar tudo. Abel ajudou a levantar a roupa estendida.

Depois sentaram-se a descansar do trabalho, ele a pedido da sua Mãe lia alguns trechos de um livro do seu Avô para a Mãe ouvir. Por vezes Alzira interrompia a leitura dizendo… olha a pontuação… “olha para os pontos finais e as vírgulas, lê mais devagar, não tenhas pressa, o tempo não acaba”.

A noite estava perto e foram despedir-se do Avós, que encheram o neto de beijinhos, metendo-lhe no bolso um ratinho de chocolate e uns bombons.

Em seguida partiram para casa, onde sua Mãe parava pelo caminho para descansar, quando chegaram já era noite.

-Gostaste do Piquenique e da lição sobre a natureza?

-Ó minha Mãe eu adorei, foi um dia inesquecível.

Em seguida a sua Mãe mesmo muito exausta ainda fez o jantarinho para os dois, cozinhado na chaminé num fogareiro a carvão.

“Hoje há bons fogões e microondas”.

Os dois sentados depois de comerem olhavam as brasas já apagadas, ele com muito sono encostava a cabeça no seu colo de roupas negras, enquanto a Mãe lhe passava a sua mão calejada pelos cabelos afagando-os com muito carinho. Os seus lindos olhos estavam tristes, pensando no Pai do seu filho.

“Hoje grande maioria dos Pais não dá atenção aos filhos, nem lhe ensinam nada, não conversam, não educam etc... A muitos a vida também não o permite “.

Ele levantava a cabeça do colo olhava a sua Mãe com vontade de abraça-la. Não se conteve levantou-se da cadeira e abraçou-a dizendo: “Eu estou aqui sempre ao teu lado amo-te muito, Mãe”.

Alzira tirou da manga da sua blusa um lenço e enxugou uma lágrima traiçoeira que lhe correu pelo rosto tisnado pelo clima alentejano.

-Então Mãe assim não vale, lembra-te do que me prometeste um dia. Sei porque choras, mas o Avô diz que a vida é mesmo assim, que se há-de fazer?

-Estava a pensar no teu Pai e no teu mano que morreu. Penso que uma Mãe não tem o direito de estar viva quando um filho lhe morre nos braços, mas eu estou viva porque te tenho a ti, e abraçaram-se novamente.

-Vai lavar os dentes e xixi-cama!

Em seguida foram deitar-se cada um em sua cama de ferro no mesmo quarto.

Alzira ajeitou-lhe a roupa e começou uma linda canção de embalar para o seu filhote.

Dorme dorme meu filho

Um sono descansado

Que o anjo te guarde

E vele por ti a teu lado

Escrevi e dedico esta crónica para o meu neto Miguel de doze anos. Tenho setenta anos, passo para o papel as diferenças dos dias de hoje em relação aos dias de

antigamente, para que os jovens pensem e meditem um pouco no que escrevo. Como se faziam antigamente os homens desse tempo.

Abel, embora sem Pai, tinha a felicidade de ter uma Mãe chamada Alzira.

Crónica 029 - 2015 05

Começo do século vinte

Um herói de verdade nunca morre, e ser herói!? É bem mais que parecer… sê-lo. E, não andar a impressionar os outros com as suas façanhas, tem um grande valor acrescentado.

Este verdadeiro, humilde e digno herói, chamava-se Joaquim Maria Cachapela, nasceu na localidade de Alcaraviça, Freguesia de Orada no Concelho de Borba…ficou sempre no anonimato da nossa história, não sendo lembrado por ninguém, talvez pela sua humildade e simplicidade, a verdade é que lhe aconteceu tal e qual como ao diamante, sem luz não brilha.

Nós esquecemo-nos dos nossos heróis, muitas das vezes é preciso o inimigo reconhecer o seu valor, como foi o caso do nosso Soldado Milhões, na primeira grande guerra entre 1914 -1918. Primeiro enaltecido pelos militares Alemães e um médico Escocês…só depois é que Aníbal Augusto

Milhais «Milhais-Milhões» foi reconhecido e condecorado com a mais alta Honraria Nacional... Ordem Militar da Torre Espada, mas não foi o único soldado como fala a história… e Joaquim Maria Cachapela? Que teve uma igual! Ninguém fala?

Como Borbense disponibilizo o meu tempo com muito orgulho e dedicação, para escrever sobre quem já nos deixou há muitos anos, nos princípios da década de sessenta, mas os anos passam e as recordações ficam, mas somente na cabeça de poucos.

A história é uma peça fundamental para a nossa cultura, sem ela nós estaríamos no recomeço, não teríamos como avaliar certos erros, e feitos do nosso passado.

Há ruas na minha terra que mereciam ter o nome de pessoas, que tiveram grande valor como este filho da nossa terra por muitos desconhecidos. Este esquecimento nunca foi estimulado por nenhum Borbense, talvez agora alguém com poder e vontade leia esta minha crónica e pense um pouco. Quem sabe? Ainda há mentes Alentejanas sãs.

Somente os mais velhos, já quase no limite da sua existência o conheceram e com ele privaram alguns momentos, foi o meu caso, embora muito novo e adolescente já saído da escola, falei bastantes vezes com ele, contando algumas passagens em África, onde prestou serviço em campanhas no início do século vinte na guerra com os Cuamatos.

Era valente, corajoso, muito forte e de grande porte, talvez muito perto dos dois metros, o seu bigodão branco enrolado nas pontas, dava-lhe um ar de grande altivez, andando sempre devagar e muito direito.

Parece que o estou a ver no mês de Agosto nas festas do Senhor Jesus dos Aflitos, quando caminhava a meio da procissão, carregando sozinho uma enorme cruz em madeira com um peso que não era para qualquer um que a conseguia transportar, desde a Igreja da Matriz até à igreja do Senhor Jesus dos Aflitos, era uma grande distância a percorrer.

Ostentava no seu peito o valor e audácia da sua coragem. Mas este bom homem já estava habituado a carregar outras cruzes, sem terem peso físico, mas tudo superava… como a criação de muitos filhos com poucos recursos financeiros, apenas e só, com a força dos seus braços trabalhando como cantoneiro.

Nunca teve qualquer reforma ou ajuda monetária durante toda a vida, apenas viveu somente do seu trabalho até poder.

Carregava também no peito … uma cruz ao pescoço presa com um grande colar correspondente, esta cruz não pesava, era a Grã- Cruz de Guerra, mais conhecida por Ordem Militar da Torre e Espada Lealdade,Valor e Mérito, a mais alta e importante honraria militar e muitas outras condecorações penduradas da sua roupa nos dias de festa da Vila, que orgulhosamente ostentava. Muitos invejavam o esplendor daquele herói, outros menos sensíveis e atrasados na nossa história, e não só, não o apreciavam por pura ignorância.

Lembro-me de o acompanhar, colocando-me o seu forte braço por cima do meu ombro, até à sua modesta casa na rua da Alameda, «nome antigo» hoje chamada de rua das Casas Novas, muito perto do cemitério da vila… hoje Cidade. Nós dois sentados à lareira conversava-mos bastante…satisfazendo assim a minha curiosidade de adolescente.

Devido à minha curiosidade e interesse pela história, levou-me a fazer-lhe muitas perguntas naquele tempo, às quais ele respondia simpaticamente, que guardo na minha boa memória, talvez ele me as contasse a mim por saber que eu era muito íntimo da sua irmã Maria Cachapela, a melhor amiga da minha falecida Mãe.

Antes de me contar algumas histórias sempre pausadamente e arrepiantes, disse-me ter assentado praça em Elvas, na arma de cavalaria, onde conheceu o Major Mouzinho de Albuquerque que na época chefiava um esquadrão de expedicionários que eram treinados para ir para África combater as tribos Vátuas.

Mais tarde embarcou com todos os da sua unidade num barco a vapor a caminho de África. Na sua chegada o desfile foi um sucesso, a cavalaria sempre muito garbosa, causou grande entusiasmo e admiração nas populações. Muitos eram da opinião que o cavalo não se ia adaptar ao clima e ao terreno do sertão. Mas enganaram-se os críticos de então.

Mal comparado no tempo, e muitos anos mais tarde, também eu ali desembarquei do navio Niassa, e desfilei com a mesma vaidosa arma dele, Arma de Cavalaria mas já sem cavalos, da qual me orgulhava pertencer, era um outro tempo, foi em 23 de Janeiro do ano de1968, e não no início de1900, como Cachapela.

Contava-me ter participado na prisão e morte do Soba Haugalo, assistindo à fundação do Forte Roçadas nas terras do povo da tribo Cuamato. Era governador no distrito de Huíla o Capitão Alves Roçadas.

As tropas ao atravessar o Rio Cunene, a água dava- lhe quase pelo queixo, não podendo montar a cavalo, foi sofrer bastante, tendo que fazer o percurso a pé com os cavalos pela arreata.

Durante essa marcha atravessaram pântanos e muitos obstáculos, o sol era abrasador, ora iam encharcados de água, ou encharcados em suores, alguns morreram com febres, a temível malária. Foram três dias e três noites quase sem comer, sobre sol e chuva, onde alguns até vomitavam a água que bebiam.

Cachapela era um homem forte e muito corajoso, não temia nada, a sua companhia de cavalaria apanhou vivo um grande chefe Cuamato. Ele e as suas seis mulheres viviam numa espécie de Cidade no baixo Cunene, onde ele mandava fazer sacrifícios humanos de todas as espécies, do mais terrível que o ser humano pudesse imaginar.

Havia caveiras espalhadas por todo o lado, pois matava todos os seus que usassem desafia-lo, e, eram feitos sacrifícios humanos, oferecidos ao seu avô ali enterrado.

Explicou-me que as suas condecorações, nada tiveram a ver com a captura do Soba, mas sim com outros actos de valentia, por ter salvado da morte certa um oficial também de cavalaria, transportando-o por muito tempo no seu cavalo já muito doente. Estava eminente uma grande derrota nas nossas tropas, os inimigos eram às centenas, a ordem era salve-se quem poder, as flechas eram às centenas e as nossas baixas eram muitas. Ao passar com o seu cavalo viu o seu Comandante Tenente Lima debaixo do cavalo e ferido, sem ter possibilidades de salvação, gritava…acode-me irmão!…Acode-me irmão!...

Ele como era muito possante, conseguiu tirar-lhe o cavalo de cima do corpo, agarrou nele e transportou-o no seu cavalo fugindo das flechas, onde algumas atingiram o seu cavalo levemente. Devido a esse acto heróico e outros mais, recebeu a grande condecoração.

Num outro combate, contribui-o para as suas condecorações também a sua grande coragem de combate contra os Cuamatos, onde venceram um Tio e um Irmão do Soba, explicava que atou as rédeas do cavalo à sela e com uma mão na espada e outra numa arma tudo levava à frente, e que foram muitos dias de sofrimento no mato, pois até quem queria fazer a barba tinha que ser a seco pois a água era pouca para beber, só molhavam a boca e pouco mais.

Muito indignado comentava… que todos os levantamentos e insurreições de africanos contra os Portugueses eram instigados por estrangeiros Ingleses e Alemães, a que ele chamava de «agentes secretos». Todas as espingardas foram introduzidas por ingleses aos cuamatos para nos matarem a nós.

Só chegou a Portugal após 1907, onde fez a sua vida na nossa terra, tendo ficado muito desgostoso com o regicídio do nosso Rei Dom Carlos e seu filho príncipe Luiz Filipe, pelo assassino de nome Manuel Buiça, pois era um monarca convicto, ficando com profunda tristeza.

Cachapela tinha muita admiração e achava-o o melhor Rei que Portugal teve, dizia ser um grande diplomata, falava cinco línguas, desportista, pintor, amante da natureza, trabalhador e muito inteligente.

Contando-me que ainda viu de muito perto o Rei Dom Carlos a caçar patos na albufeira de Borba, vindo de Vila Viçosa pela tapada, saindo da mesma em frente da albufeira, nesse tempo existiam ali centenas de patos, acrescentando que o Rei tinha a seu lado sempre muitos cães e, quem lhe carregasse as espingardas e apanha-se a caça.

Termino assim esta minha crónica, fechando o armário da minha memória de adolescente, onde vou escrevendo e passando os meus serões de inverno junto à lareira, com uma sincera e digna homenagem a um grande Borbense, a qual dou conhecimento a quem a ler. Tive o consentimento para escrever e a fotografia muito antiga e gasta pelo tempo, cedida pelo seu filho Bonifácio Cachapela já com oitenta e poucos anos, por quem tive e tenho grande estima e amizade.

Este nosso herói militar deixou cá os genes, que passou aos seus dois bisnetos seguindo a carreira militar, muito novos em lugares de chefia, um como Pára-Quedista e outro como controlador aéreo da Força Aérea.

Quero acrescentar que a Senhora Dona Maria Cachapelas, irmã deste grande herói militar, era quem me lavava a minha roupa, por eu já não ter Mãe nem Pai sem ter ninguém que a lavasse. Quando lhe queria pagar pelo serviço, ela dava-me um beijinho e dizia com a lágrima no canto do olho: - Faço-o por ti, e pela tua Mãe, pois era a minha melhor amiga, nós duas dividiamos os sorrisos e as lágrimas, das quais ainda tu te deves lembrar certamente, nos serões em volta da lareira na tua casa.

Herói Alentejano desconhecido

Zé Russo

---------------------------

Glossário:

Cuamatos -Tribo do sul no baixo Cunene em Angola

Cantoneiro - Trabalhador na manutenção das estradas

Soba - Chefe de tribos de África

Tapada - Grande coutada de caça da Casa Bragança

Vátuas - Tribo Africana em Moçambique

Crónica 028 - 2014 12 17

O SONHO DE MÃE

ANOS SESSENTA

Depois de um dia cansativo de trabalho Joana Rosa chegou à noite muito estafada à sua humilde casa onde vivia com o seu marido Simão. O seu pensamento era sempre o mesmo, tinha o seu único filho a combater em África a meio da década de sessenta.

Um ano depois da partida, ela usava e continuou a usar um lenço negro na cabeça, e, vestia-se de negro desde a abalada do seu filho, afirmando que só deixava de usar aquele luto, se: ele chega-se são e salvo. «Que felizmente dois anos e meios após chegou bem, inteiro e sem qualquer problema de saúde.»

Joana Rosa e seu marido Simão, estavam sentados ao lume na sua chaminé, sós e calados, ele mexia nas brasas do lume com o canudo, enquanto ela adivinhava os pensamentos dele, numa grande tristeza e solidão, as lavaredas do lume eram a sua companhia.

Pai Simão pensava. Quando o nosso filho nasceu eu até tinha medo de lhe pegar, devido a ter as minhas mãos muito grosseiras e calejadas, como o tempo passa! E hoje tão longe que está de nós, sem termos correio e não sabermos nada dele há mais de um mês.

Joana Rosa dizia: Simão as nossas vidas estão a perder significado, as coisas parecem estar todas fora do

lugar, no peito a dor, um aperto, uma aflição. A todo o momento só penso no nosso filho.

E como não bastasse! Também me anda a azucrinar a cabeça uma outra coisa. Ainda não estou muito ciente se num dia quaisquer, aqueles abutres te vêm buscar outra vez para mais interrogatórios, ou outra coisa pior ainda! Por vezes sinto uma grande vontade de os esganar, uma vontade involuntária de chorar… de gritar. Sempre vivendo em ansiedade.

Tem calma Joana Rosa, estou contigo até à consumação dos séculos. Não temas, porque eu estou contigo! Quando passares a ribeira as águas não te afogam. Quando passares pelo fogo, as chamas não ardem em ti.

Dá-me cá um grande abraço com ternura, ampara-nos as tristezas, combate as incertezas, sustem as lágrimas e põe a nostalgia de lado.

Ó Joana Rosa os abraços são pequenas orações de fé, de força e energia.

Abraçados e meditando muito calados recolheram-se no sossego da noite.

No escuro do seu quarto descansavam de mais um dia de trabalho árduo, ela junto do seu marido levada em pensamentos menos bons custava adormecer, dando voltas e mais voltas.

Os sonhos têm os seus significados. Quando acontecem sejam bons ou maus significa que se está a dormir.

Um sonho mau começou a desenhar-se a meio da noite. Ela passava a mão pela testa do seu filho muito doente, acariciando-o angustiada, sentada à cabeceira da sua cama velando-o, a morte chegou pela madrugada e bateu à porta para o ir buscar, levando-o de rojo.

A morte levara-lhe o seu filho, sem que ela pudesse fazer nada em protecção dele, nem tão pouco lutar com ela, pois tinha dois guardas de gabardine e chapéus pretos, colocados de lado nas cabeças, e sapatos a brilhar, olhando-a com ar ameaçador guardando a poderosa morte.

Joana Rosa ali ficou carpindo num grande pranto muito encolerizada, saiu a correr pelos campos fora, por entre estevas e matos, olivais e montados, até que se fez noite muito escura como breu, aqui caia e ali se levanta.

Encontrou um velho ancião de barbas brancas, enroscado num capote Alentejano, perguntou-lhe se tinha visto por ali passar a morte, com o seu filho, vestindo um bonito camuflado verde e uma arma ao ombro.

- Eu vi muito bem, com estes dois que a terra há-de comer, mas só te vou ensinar o caminho se em troca te abraçares aqueles catos que estão ali perto de nós. Ela

assim fez e sem vacilar enlaçou-se aos catos, ficando a sangrar por todo o corpo, picada e dorida seguindo com atenção todas as indicações do velho, e, lá foi caminhando…caminhando, até ser dia. Encontrou mais à frente uma ribeira com bastante corrente, o estado do seu corpo era muito mau, estava ensanguentado.

Junto à água viu uma grande mulher muito bonita de corpo escultural, e bonitos seios descobertos, tinha na mão direita uma espada e com a esquerda apoiava a bandeira Portuguesa, «Efígie da República» que sem lhe perguntar nada lhe disse: esta ribeira é o oceano, que fazes aqui?

-Procuro a morte por acaso sabes indicar-me o caminho?

-Sim! Mas tens como contra partida para eu te poder ensinar o caminho uma coisa; tenho que te bater e esmagar-te as unhas com um martelo, tosquiar-te, e estares sempre bem acordada, não podes nem fechar os olhos.

Ela não vacilou novamente aceitando.

Depois de tanta tortura, Joana Rosa lá foi caminhando sem poder… nadou… nadou e, conseguiu vencer a corrente, até que chegou à outra margem, encontrou uma grande mata, ali encontrou-se com pessoas de cor que a olhavam desconfiados, encontrou então um Campo Santo, guardado por um monstro

negro de catana na mão seminu. Joana estava irreconhecível parecia um animalejo. O negro encaminhou-a para o local que lhe pedira e, a dado instante, ouviu a morte chama-la, Joana …Joana, vinha com algumas ovelhas verdes que recolhera das matas.

Joana Rosa estava muito atenta hás vozes deles, quando dentre todos distinguiu o chamamento do seu querido filho na entrada do Campo Santo da mata Africana.

-Mãeeee…Mãe. Reconhecendo-a imediatamente assim naquele estado, que mais parecia um fantasma.

Ela olhou-o, e, sem unhas, cabelos, e, a escorrer sangue, gritou muito feliz e emocionada.

-Meu filho!.. Meu filho!..

Abraçou-o e beijou-o com muito carinho e ternura.

A própria morte ficou muito emocionada, com o que via e questionou-a.

-Então! Como conseguiu chegar até aqui, antes de mim?

Ela chorava e ria simultaneamente; muito enfraquecida sem forças para falar… apenas disse.

SOU MÃE.

(E acordou daquele horrível sonho muito cansada e nervosa, pois o fim de um sonho é chegar à realidade)

Zé Russo

Crónica 027 - 2014 11 26

O TI ZÉ BENTO

Década de sessenta

Dois bons amigos

A Amizade de um velho amigo é como um raio de sol por entre nuvens negras e sombrias. Nós nascemos sozinhos, vivemos muitas vezes sós e, também morremos sós.

A amizade quando é sincera é um bem muito útil e importante. Abençoados aqueles que a têm por alguém. Não se pede, não se compra, nem se vende. A amizade a gente sente.

O passado sobrevive na nossa memória humana, mas uma coisa é aprender com ele, outra coisa é ficar preso nele, «mas isso não»! Não sou um saudosista do passado, mas como diz o povo e, tem sempre razão. O passado está nas nossas cabeças, e o futuro nas nossas mãos.

Desde muito pequeno que o Ti Zé, tinha grande simpatia e carinho pelo seu vizinho Joaquim, a que ele tratava por Quim, morava em frente ao seu café, tinha apenas cerca de doze anos, mas já era órfão de Pai, e um ano depois também ficou sem a sua adorada Mãe.

Este bom homem tinha cerca de sessenta anos, não tinha filhos e sua mulher era muito arisca para ele e não só, andava sempre a ralhar, nunca se calava senão quando estava a dormir. Ele desabafava dizendo que tinha maus fígados.

- Ó Quim desculpa a acção da minha mulher ao pedir-te o dinheiro de um maço de cigarros que o teu Pai ficou a dever antes de morrer, eu fiquei muito triste ao saber, o teu Pai era aqui um bom cliente do café, mas mesmo que não fosse, não o devia ter feito, esta mulher é o diabo em figura de gente.

-Que importância tinha os cigarros?

-Não se aborreça por isso?

-Não tem importância! Minha Mãe também não gostou da acção e mandou-me imediatamente entregar-lhe o dinheiro.

O seu café não tinha muitos clientes devido à pouca ou nenhuma simpatia da sua mulher, mas tinha um bom rádio, que naquela época era um luxo, nesse tempo não havia televisão, era ali que o Quim ouvia os relatos dos jogos de futebol aos Domingos à tarde, também e em som muito alto comunicava… apregoando os números da «sorte grande» Lotaria Nacional.

Se o Quim era acarinhado antes da morte de sua Mãe, passou a ser ainda mais depois de ela falecer. Já um pouco mais crescido, era chamado por ele para no seu café, os dois conversarem e petiscarem bons «pitéus» petiscos cozinhados por ele, onde ele gostava muito de beber um «pirolito de bolinha», hoje chamada gasosa, que abria carregando a bolinha com o dedo.

A sua mulher não gostava do convívio entre os dois, talvez pela razão de não lhe poder dar filhos, mas esse tratamento pouco simpático não passava despercebido aos dois.

Em noites de escuridão iam apanhar rãs na albufeira, com um pau comprido e um garfo atado na ponta, e de lanterna na mão eram assim detectadas, acabando espetadas no garfo e, saco com elas para o petisco, eram fritos os quartos traseiros passadas por farinha e ovo, e comidas no seu café, conversavam enquanto comiam, faziam companhia um ao outro, nas horas de descanso, porque embora ele sendo muito jovem nesse tempo tinha que trabalhar, senão não comia.

Numa das conversas o Quim revelou ao amigo que quando em tempos atrás ainda andava na escola, fazia grandes partidas durante a época do carnaval à sua mulher, atando um comprido fio ao martelo da porta, pondo-se escondido em cima da laranjeira em frente da porta, puxando-o e batendo à porta, ela debruçava-se da janela e perguntava.

Quem é! Quem é! E não via ninguém e a cena repetia-se nunca descobrindo o autor da brincadeira. E os dois riam animados.

Deslocavam-se de motorizada durante a noite a apanhar pássaros, com uma flober de pressão de ar e uma boa lanterna para os detectar nas árvores onde dormiam, traziam pequenas bolsas cheias, que petiscavam no seu café muito bem fritinhos.

Certo dia os dois presenciaram uma gaiola para pássaros pendurada bem alta de uma árvore, pararam e olharam bem para ela, e o Quim perguntou para que estava ali pendurada

-É para apanhar pintassilgos para depois os venderem nos mercados, para cantarem nas gaiolas.

-Esses malandros procedem assim; tiram o ninho da árvore, colocam-no dentro da gaiola, mas só quando já tem passarinhos jovens, e os seus pais dão-lhe a comida através dos arames da gaiola, que os prende lá dentro, assim vão crescendo até ficarem adultos, ficando sempre presos para sempre.

-É uma crueldade! Nós ao matar os pardais é muito diferente, estes são aos milhares comem a fruta e estragam uvas, figos e comem o trigo nas searas, mas certas aves como pintassilgos, andorinhas, rouxinóis, e outras aves canoras não se lhe faz mal, até porque os rouxinóis estão em vias de extinção. «Actualmente é proibido apanhar qualquer passarinho excepto os tordos».

Embora tivesse o seu Avô amigo e companheiro, a amizade do Quim foi-se galvanizando cada vez mais, com o Ti Zé Bento. Um com a falta dos Pais, o outro com a falta de um filho.

O Ti Zé talvez devido ao facto de não ter filhos, metia-se nos copos abusando no vinho e nos bagaços, chegando a casa embriagado e em mau estado, levando por vezes algumas pancadas da sua mulher com uma colher de pau, tacho ou panela na cabeça.

Certo noite junto a um café, o Quim viu o seu amigo Zé muito mal disposto a «gritar ao gregório» vomitar junto da barraquinha das farturas, ficou muito preocupado com ele indo em seu auxilio, devido aos esforço do vómito caiu-lhe a dentadura para o chão, foi ao café arranjou um papel e um pau tirando-a do local e embrulhou-a.

Amparou-o agarrado ao seu ombro até que chegaram a casa, entraram e a seguir encaminhou-o para a cama, claro está. Onde o deitou, custando a descalçar-lhe as botas, tendo os dois a sorte de sua mulher não estar em casa. «Senão!»

No dia seguinte foi entregar-lhe a placa da dentadura, depois de muito bem lavada, abraçou-o e ficou-lhe muito agradecido e, disse-lhe com os olhos aguados.

-Meu amigo Quim… nunca experimente fazer esta figura ridícula e triste, pois não há coisa pior que um bêbedo, até os cães lhe ladram… já pensaste porquê? Então pensa.

-O Ti Zé vai emendar-se não desanime, aconteceu uma vez, mas não vai acontecer mais, não é nenhum bêbedo é uma pessoa respeitada. Mas não abuse! Senão perde o meu respeito e de todos os seus amigos. E eu como seu amigo zango-me com vossemecê.

O meu Avô diz: «beber para esquecer o mal, não é remédio para tal», e que, «ainda é pior a emenda que o soneto». O meu Avô é que me ensina estas e muitas outras frases, gosta muito do seu netinho, por vezes olha-me tristemente, mas eu sei o que vai lá dentro do seu coração, embora ele não diga nada, eu sinto-o, principalmente quando passa a mãos pelos meus cabelos demoradamente afagando-os, e, eu nutro uma grande felicidade nesses momentos, pelo carinho e por ainda o ter a meu lado e, ser a única pessoa de família que tenho, me acarinha, protege, ensina, e dá conselhos, que eu aceito sempre.

Por vezes olho os seus cabelos muito branquinhos e penso: o que eles já passaram na vida dura que levou sempre, e agora vendo-se só como eu.

O Ti Zé uns tempos mais tarde numas terras onde tinha um bom meloal, os melões apareciam todos esburacados pelos gulosos dos coelhos bravos, ele armava-lhe umas armadilhas com aveia dentro e, apanhava alguns para comer, até que alguém viu e deu com a «língua nos dentes» e denunciou-o.

Um dia vinha ele na sua motorizada Sachs muito calmo, estava quase a chegar a casa, quando foi mandado parar por dois guardas da G. N. R. sendo apanhado com dois coelhos bravos. Foi um pouco bravio para a autoridade, dizendo-lhes certas verdades que não gostavam de ouvir.

«Se eu fosse o lavrador fulano tal, e tal, vocês nada faziam! Nem queriam saber! Era mais coelho menos colho, isto porque esses lavradores enchem-lhe a casa com azeite e carnes de porco». Então foi preso e foi passar trinta dias na cadeia de Vila Viçosa.

Num fim-de-semana o Quim foi à quinta do seu Avô pedir-lhe umas laranjas, para ir à cadeia levar ao seu amigo e fazer-lhe uma visita. Seu Avô adorou a ideia, e felicitou-o pela iniciativa e, do pouco que tinha seu, deu ao neto também um pão e um chouriço para juntar hás laranjas. Dizendo: que nas cadeias e nos hospitais é que se conhecem os verdadeiros amigos.

Caminhou uns quilómetros a pé até à cadeia onde foi ver o seu amigo. Este ao ver o Quim ficou muito comovido, agradeceu-lhe as laranjas e tudo o mais que levava e, acima de tudo a visita dele à cadeia.

Na cadeia o Ti Zé Bento punha as mãos velhas e calejadas de fora das grades apertando as do adolescente e amigo Quim.

Ao despedir-se chorou dizendo: que em dezoito dias de prisão foste tu meu amigo a única pessoa a visitar-me, exclamando que nunca na vida se iria esquecer daquele acto.

Anos mais tarde depois morreu de repente sentado numa cadeira do seu café com a cabeça encostada a uma mesa, quem o via parecia estar a dormir, até que um assíduo frequentador do café notou que estava morto.

Como seria de esperar o Quim esteve no velório em casa do amigo durante parte da noite.

A viúva chorava mas só agora dava valor ao falecido marido, pois em vida tratava-o muito mal.

O funeral no dia seguinte tinha a hora marcada para as nove horas, o Quim não ia faltar certamente, mas como no seu trabalho entrava às oito, ficou um pouco mais tarde na cama, faltando umas horas ao trabalho.

Devido às horas em falta no trabalho nesse dia e ao mau ambiente no seu trabalho, falta de compreensão do patronato, despediu-se não querendo trabalhar mais naquele patrão.

Chegou o momento de cada um dos amigos seguir a sua viagem sozinho.

O Ti Zé Bento ultimou os seus dias e partiu desta vida para sempre. O Quim ainda muito jovem, apenas com cerca de dezoito anos despediu-se do seu Avô, deixando-o triste por dentro mas fazendo-se forte por fora, dizia; vai meu neto…vai e procura uma vida melhor, pelo menos assim não vais aquela maldita guerra e eu cá me vou arranjando com a ajuda de Deus, e lá partiu imigrando para França, mas na companhia de um primo que lá vivia e que tinha vindo à terra, aproveitando a boleia e o parceiro, vindo só à sua terra muito mais tarde, ver o seu Avô depois do dia vinte e cinco de Abril de 1974, porque antes não podia vir por ter faltado à tropa.

A causa da sua abalada umas semanas depois para o estrangeiro foi o despedimento, devido ao atraso na chegada ao trabalho, apenas por ter ido ao funeral do amigo Ti Zé Bento.

Tudo isto foi a gota de água que transbordou e levou o Quim a sair da sua terra para sempre, indo para muito longe.

«Moral da história»

A infelicidade nas vidas por vezes tem isto de bom: faz-nos conhecer os verdadeiros amigos. A amizade genuína é assim…até que a morte nos separa.

Zé Russo

CRÓNICA 026 - 2014 11 06

AS LAVADEIRAS

Borba -- ANOS CINQUENTA

Acreditamos que só compreendendo o nosso passado, seremos capazes de o recrear. As lavadeiras dividiam as tarefas domésticas com a lavagem das roupas, que era, semanalmente, recolhida e entregue nas casas dos fregueses.

Nos tempos da minha infância, não existiam ainda as celebres máquinas de lavar roupa, que actualmente existem e dão um jeitão. Hoje é impensável viver sem elas. A roupa era lavada pelas lavadeiras, mas somente para quem podia pagar uma determinada importância semanal ou mensal.

Havia bastantes e era bonito vê-las como um bonito quadro a óleo, lavando na beira dos ribeiros, umas dobradas a lavar outras em pé, estendendo a roupa nos prados verdejantes, para corar a roupa ao sol

Mal o sol nascia já um burro, ou um macho levava no seu dorso, a roupa metida em trouxas, o «albardar», ou seja, era embrulhada em panos ou em sacos e marcada com tecido a cores para não haver enganos, nem misturas.

O local mais usado era o Vale de Grou, ou os Vais, ribeiras de água corrente com alguns açudes, esses locais tinham fama, dizia-se que a água era muito boa, para que a roupa ficasse mais branca, e bem lavada. Levavam para as ribeiras pedras de cor cinzenta, pedras «olho-de-sapo», que serviam para esfregar a roupa.

Havia também diversos tanques de água em muitas hortas, os donos não se importavam e deixavam quem quer que fosse, lavar as suas roupas.

O lavadouro Municipal existia para quem não pudesse pagar a lavadeiras, indo elas próprias tratar da sua roupa, toda a população ali podia lavar sem pagar qualquer importância, tinham bastantes tanques, onde podiam trabalhar bastantes mulheres. Era ali o jornal diário, o local da má e boa discência.

Tudo ali falava da vida alheia, daí a expressão idiomática «lavar roupa suja» quando se discute em público ou na vida particular dos outros, como; fulana está grávida, não sabe quem é o Pai, o marido da…não a satisfaz porque, tem aquilo muito mol, e por ai fora, era uma má-língua tremenda e muita galhofa à mistura.

Entre duas ou três ensaboadelas de roupa, por vezes havia pequenas discussões, acabadas sempre em bem. Cala-te minha parvinha! Olha quem fala, não tens onde cair morta. Há! Há! Minha lambisgóia. E tu já te viste ao espelho? A tua voz é tão rouca que mais parece voz de água-ardente.

Algumas enquanto esfregavam as suas roupas, acompanhavam as suas tarefas cantando cantigas de amor ou modinhas lindas do cante Alentejano, e algumas da famosa actriz Beatriz Costa, do filme Aldeia da Roupa Branca, e outras lavadeiras que sabiam a letra das modas que ouviam, acompanhavam-nas no cante.

Por vezes até o guarda do Lavadouro ajudava com grande vozeirão, homem muito atrevido e folgazão a quem elas já conheciam muito bem, não lhe dando muita confiança para que ele não abusasse

Não se podia era deixar cair o sabão para dentro da água, tinha que ser logo tirado muito rapidamente, pois era um bem muito caro, para as bolsas dos pobres, normalmente era o guarda do lavadouro que o tirava, e como paga pelo trabalho, queria sempre um beijinho, mas algumas muito jovens e sabidas, não lhe queriam dar um beijo, dizendo que o sabão pertencia a outra, à mulher mais velha e feia, cujas mamas caíam enormes e flácidas sobre a barriga, como massa de pão Alentejano, antes de ir para o forno. Ele assim! Já não queria beijos, até se afastava, e o baile estava armado, era só rir à gargalhada.

Falando da minha falecida Mãe, o que não é fácil para mim…embora ficasse órfão bastante cedo, ainda me lembro bastante do seu sofrimento, caminhando com um grande saco de roupa à cabeça e eu atrás com a bolsinha da merenda, o peso era muito, tendo de parar mais que uma vez, desde a Quinta do General, subindo até à Vila de Borba, «hoje Cidade».

Era num tanque da quinta, onde o meu Avô era caseiro, que minha Mãe lavava a nossa roupa, com muita dificuldade, praticamente só com uma mão, por ter tido um A.V.C. e não ter força senão numa mão, a direita, a esquerda, era só para amparar a roupa. Os fatos de macaco dos seus filhos eram bastante sujos, por serem mecânicos de automóveis, tinha que os lavar já sem ter forças todas as semanas, com água quente e em casa, num grande alguidar de barro.

«Mãos de Mãe»

São duas irmãs gémeas

Mas ambas inteligentes,

Só um pouco desiguais.

Com a direita era vigente.

São filhas do mesmo Pai.

A esquerda é protectora,

e por grande infelicidade,

só direita é trabalhadora.

E com grande conivência,

numa Nação sem ter cura.

Com as suas mãos padecidas

sempre na mão da ditadura.

Mas ambas assaz padecidas.

Nas dores são sempre rivais.

Com a esquerda ela descamba

Com a direita igualmente cai.

Somos uma pequena Nação,

que estará sempre no chão.

Como se todo este sacrifício de dureza dos pobres, não fosse suficiente, no regresso da quinta vinha quase sempre a chorar, sem fazer mal a ninguém.

Era mal tratada por uma cunhada, a minha Tia Maria, tudo devido a ciúmes, por meus Avós gostarem muito de minha Mãe, e a convidarem para beber chá. Chegando à ridícula situação de o meu Avô me dar uma bolsa de laranjas da quinta às escondidas dela.

Eu mesmo sendo pequeno não gostava nada dela e baptizei-a de gata assanhada, pelo seu assanhamento e

maneira de falar. Bastava eu, na quinta comer uma laranja, ela cheirava-me a boca, exclamando; não deves tocar sequer na fruta, ouviste? Não me batia porque minha Avó não deixava.

Nesse tempo minha Mãe já era viúva há cerca de dois anos, pouco tempo mais viveu. Sofreu mais dois A.V.C.s e deixou-nos apenas com a idade de quarenta e nove anos, já passaram muitos anos, mas parece que foi hoje. «Muito sofreu, levou sempre uma vida mortificada e amargurada.»

De entendimento entende o leitor, me perdoe ou desculpe, porque quando falamos de nós dá a sensação que só divulgamos aquilo que é suposto as pessoas quererem ouvir, e se tirarmos a sinceridade e a verdade às nossas palavras, elas para mim não fazem sentido. Devido há minha humildade, exponho-me sem esconder as minhas pobres origens sem problemas.

Tudo o que acabo de escrever são algumas visitações do passado e transmitir momentos que repetidamente se acendem na minha alma de puro Alentejano. Parece por vezes que sou observado por minha Mãe enquanto escrevo e me dá inspiração, para escrever e transmitir às pessoas da minha idade, para que recordem o passado, e os mais novos aprendam e compreendam o que passaram os nossos Bisavós, Avós e Pais.

«Roupa à cabeça não! Comadre Maria»

Sou uma lavadeira Alentejana

Carrego a roupa num jumento

Cá a mim ninguém me engana

Porque à cabeça não aguento

Na grande distancia percorrida

Com um grande saco à cabeça

Com a minha coluna já sofrida

O mais certo é que eu padeça.

Zé Russo

CRÓNICA 025 - 2014 09 22 - Domingo

Anos Cinquenta

(Para os mais novos meditarem)

Há anos vila, hoje cidade, sessenta anos atrás, os sacrifícios torturavam de

forma indelével a maioria das famílias, com muitas faltas de toda a ordem.

Vista a tão longe distancia (em tempo), custa-nos aceitar o que vou escrever,

quase Inaceitável nos dias de hoje, mas que existiu, aliada a uma enorme iliteracia de

governantes.

A água

Começando pela água, um dos bens mais essenciais para toda a população, era

adquirida em poços e diversas fontes, sendo a principal fornecedora a nossa linda e

majestosa fonte das bicas, onde corria água boa para consumo, dia e noite sem parar

por gravidade, vinda de um nascente ali perto, do quintal da senhora Catarina Cortes,

sendo fresca no verão e mais morna no inverno. «Segundo a lenda, talvez fossem ali os

lagos que há alguns séculos atrás, encontraram o tal barbo, que deu origem ao nome

da vila de Borba». Quem sabe?

. Não havia desperdício, fosse por que motivo fosse! Desta bela fonte corria a

preciosa água, que saciava os homens e até os animais no chafariz grande das bestas, e

no pequeno das ovelhas e porcos. Enchia o lago nas traseiras da fonte, e até adoçava

na vieira, os tremoços do senhor António Diogo, que os vendia à criançada junto ao

coreto, sobrando ainda para regar as hortas por gravidade, naquelas zonas mais

baixas.

Era transportada em cântaros de barro, com esforço, na mão, ao quadril ou à

cabeça, para as nossas casas e guardada em lugares frescos, nos respectivos poiais dos

cântaros, com bastante higiene, sendo os cântaros tapados com um testo, também de

barro, era bebida em coxos de cortiça, copos de alumínio ou esmalte.

Muitos namoros ali se arranjaram junto da fonte das bicas, onde lindas

raparigas enchiam os cântaros muitas vezes ao dia, até sem necessitarem da água,

apenas para verem os rapazes que por ali as espreitavam.

De salientar a sua construção muito linda, e o seu gradeamento bem estudado

para que os animais não fossem lá beber água, gradeamento onde eu esfolei uma

canela ao saltar por cima. «Coisas da juventude».

Havia na terra uma personagem muito querida por todos, chamado «Calma»,

além de recados também acarretava água num carrinho de mão, com dois buracos

onde os cântaros se mantinham direitos, estava sempre pronto para quem o

solicitasse, a troco de umas moedas. Claro está!

.

Houve também em tempos uma carroça que passava na vila carregada com

cântaros de água da serra D’Ossa, vendendo e apregoando. «Olha a boa água da

serra». Essa água era excelente. Mas não durou muitos anos pois a água da serra secou

devido à plantação de eucaliptos. Infelizmente para uns, mas para outros não.

Só mais tarde chegaria a água canalizada às nossas casas, ao mesmo tempo

chegou também o saneamento básico, foi um bem, muito precioso e necessitado,

aproveitando dois em um, (água e esgotos) o que antes era muito mau e desumano,

não parecendo estar-se no século XX.

Esgotos

As populações antes do saneamento faziam as suas necessidades, em penicos,

sifões ou pelo campo, era raro haver fossas assépticas.

Existia em tempos uma ribeira, que felizmente hoje não existe, onde os detritos

corriam a céu aberto, com uma retrete imunda, única na vila em frente ao chafariz e

um urinol sem água para limpeza, e cheiro nauseabundo, situado na praça, mais

abaixo uns metros do mercado do peixe, onde o cheiro do peixe e da urina se

confundiam.

Antes de haver esgotos, a ribeira que transportava os detritos passava pela

Quinta do General, parte dos detritos ficavam numa zona no limite da quinta, a que

nós na quinta dávamos o nome de nateira, onde as natas ficavam meio limpas meio

sujas, com a força da água que corria, e na quinta tinha bastante! Todos os anos o meu

Avô, com o meu Pai, meu Tio Manuel, e meus primos Zé Bernardo e Manuel, limpavam

tudo, até aproveitavam as natas extraídas para estrumar as terras da Quinta do

General.

Felizmente a ribeira e os detritos acabaram, mas a água infelizmente deixou de

correr na Quinta do General, onde eu corria e saltava e fui criado, ou não fosse eu o

filho, e também o neto dos «Zés da Quinta». Os nascentes para abastecer a vila de

Borba, e os furos de captação selvagem, obrigaram a secar muitos outros, e a quinta

deixou de ter água.

Sem água não há vida. A quinta morreu, lagos secos, fontes, repuxos, tanques,

onde outrora a minha Mãe lavava a nossa roupa, tanques para rega, tudo acabou,

apenas a saudade ficou.

A CARNE

A carne de vaca não existia em Borba, mesmo que a população tivesse dinheiro

para a comprar. O talho existente nesse tempo situava-se na parte de baixo do edifício

da Câmara, apenas se vendia carne de borrego e pouco mais. Os talhantes eram o

senhor Artur Pombeiro, o José da Parrada e o meu Tio Sebastião Galhanas, as balanças

.

eram lindas, enormes e metálicas, sempre muito bem areadas, com o seu amarelo a

brilhar.

Só se vendia carne de vaca, quando uma família muito numerosa, os donos da

Quinta do General, se encontravam de férias nos meses quentes de Julho e Agosto, era

nesse tempo que o meu Tio matava uma vitela, ou duas, para os fornecer.

A carne de porco era vendida pelos salsicheiros, em bancas no dia de mercado

na praça, onde vendiam toucinho, carnes diversas e enchidos.

As galinhas, os coelhos e os perus eram vendidos vivos em frente ao Passo da

vila, no mercado, onde eu também vendia alguns víveres, que criava no meu quintal, e

em seguida com o dinheiro da venda comprava; uma quarta de chouriço «-125 gr meio

arráte de toucinho -250gr. Um quarto de batatas- 3.750gr.» Quando o dinheiro

chegava. Claro está.

Nos dias de mais movimento, eu ia ajudar o meu Tio Sebastião no talho, como

ele não sabia ler, todas as contas que fazia eram de cabeça, mas para ele, por vezes era

difícil e eu ajudava-o, multiplicava o preço do quilo pelo peso da carne e nunca falhava,

e no fim do dia dava-me um beijinho, e carne para levar para casa.

Os animais eram mortos no matadouro da vila, ao lado da taberna do senhor

Beco, quem matava os borregos com um fuzil comprido e redondo, era o senhor

Canina, homem um pouco rude. Dizia com voz grossa; não me deixes entornar o

sangue Zéii, senão levas! Eu aparava o sangue dos borregos e levava algum para casa,

onde minha Mãe fazia uma comida chamada sarrabulho, que eu comia com cebola

picada e gostinho a vinagre, mas não gostava, mas enfim, tinha que comer, pois se não

comesse aquilo não havia mais nada. Hoje tenho saudades daquela comida.

O transporte da carne para o talho, era feito numa carroça vermelha fechada

puxada por um macho, antes do transporte o veterinário passava um rolo nas carcaças

penduradas nos ganchos com uma tinta roxa marcando-as, certificando assim, estarem

em condições de serem consumidas. Este veterinário já tinha muita idade, usava uns

óculos de lentes grossas, e eu por vezes ajudava-o na sua tarefa, por falta de vista,

segurando-lhe alguns objectos, que usava.

O Peixe

O peixe chegava à vila umas vezes com sal grosso, outras com gelo, mas não

podia levar sal a mais nem a menos, para chegar em condições de ser comido, pois o

mar ficava muito longe do Alentejo, e até chegar, não era fácil manter-se em condições

de ser consumido.

O peixe, como já vinha salgado, ia directamente para a grelha, para ser assado,

onde se molhava o pão na gordura aparada das sardinhas.

.

As espécies variavam, era a sardinha, o carapau grande, chamado pelo povo de

«companheiros da alegria, ou chicharros», o cação, a chaputa, e poucas mais

variedades apareciam na banca. Para aquele tempo estes peixes gozavam de pouca

fama.

Os senhores peixeiros, Silvino e Lopo carregavam por vezes gelo trazido do

hospital para o peixe, nós miúdos ao cruzarmos com eles, ensalmourados pelo próprio

peixe tapava-mos o nariz, o cheirete era demais, todo o peixe era vendido ao ar livre

na praça e muitas vezes apregoado nos cantos das ruas.

Quando a venda corria mal, o peixe ia para o lixo, pois ninguém mais se atrevia

a compra-lo. Dos caixotes vazios do peixe, nós miúdos, fazia-mos carrinhos de

rolamentos, mas rolamentos não havia, eram rodas de charrua, que deslizavam praça

abaixo, com outros a empurrar.

As famílias mais numerosas, por falta de dinheiro, não ingeriam a famosa

sardinha, rica em gordura polinsaturada com ómega três, tão eficaz para o cérebro,

nem se sabia nada sobre esse poder nutritivo tão bom.

O Pão de trigo

Nesta década o pão era o principal alimento dos pobres, sem ele não havia uma

alimentação correcta, embora caro ao preço de 3$30 escudos o quilo e o celebre papo-

seco a «um cruzado» 40 centavos cada, mas o preço felizmente manteve-se durante

muitos e longos anos sempre igual sem aumentos.

Havia muito respeito por este bem de primeira necessidade, se alguém por

descuido deixa-se cair um pedaço para o chão, havia logo quem ralha-se, era

apanhado e beijado, como que a pedir desculpa pelo facto.

As crianças antes da ida para a escola, bebiam o café com sopas migadas

dentro, com um pouco de açúcar, este alimento era o mais comum, mas até chegar à

mesa do pobre trabalhador não era fácil.

A qualidade da farinha era muito boa, fornecida por moagens perto da zona,

mas a melhor farinha era a que era fornecida pelo senhor Pedro das Mós, este bom

homem, criou muitos filhos com o trabalho árduo da sua azenha, ali se manteve

sempre pobre, a trabalhar até morrer, era muito estimado por todos. Sempre muito

limpo, de calças remendadas no traseiro, tocando o seu burro com uma saca de

farinha em cima do lombo.

Dava gosto ver a grande roda da sua azenha, sempre a rodar dia e noite, era

movida por um enorme caudal de água, vinda da nascente da horta do Caiado, corria

sem parar num aqueduto muito bonito em pedra, mais tarde infelizmente destruído

devido ao desvio na estrada ali construída.

.

Desviando um pouco do assunto que estou a escrever. Eu pergunto. Porque

nunca houve ninguém que se tivesse lembrado de recuperar aquela bela azenha? Uma

relíquia do passado tão importante? Porquê? «Certamente não foi por falta de verba».

É melhor ficar por aqui, o leitor compreenderá certamente.

Aqui bem perto de onde eu moro, na Quinta do Brasileiro, a Câmara Municipal

do Seixal recuperou um moinho de Maré, e mói farinha quando tem boa maré, é

visitado por crianças da escola, para verem como se fazia antigamente. «Obra digna de

admiração e respeito pelo passado».

Havia quem amassa-se e tende-se o pão em casa, que depois era transportado

de tabuleiro à cabeça para o forno, pelas filhas do senhor Duarte do «forno», era o

único da vila e ficava situado, no cimo da rua Dr. Ramos Abreu mais conhecida por rua

de «Estremoz», onde era cozido por ele, depois era guardado em lugar fresco e durava

uma semana em bom estado, o forno era o modo de vida da família Duarte, e eu andei

à escola com um seu filho, se não me falha a memória, o seu nome é Sebastião José

Isidoro Duarte Azevedo, deve ter a minha idade, cerca de setenta anos.

A boa qualidade do pão, também se deveu aos fornos serem aquecidos com

lenha vinda da serra D’Ossa, as chamadas estevas, que davam ao pão um sabor único

muito apreciado pelos habitantes, mais tarde isso acabou, e o aquecimento dos fornos

passou a ser feito por queimadores, a trabalhar a óleo queimado, e perdeu o bom

sabor, mas tempos mais tarde, esse processo foi proibido.

As padarias todas eram muito boas, desde a do senhor Galvão, Esteves, Adão,

Lambuzana, e Barroso, esta ultima foi sempre a mais preferida da população. De uma

maneira geral toda as padarias fiavam o Pão, onde apontavam num livro o nome e as

dividas, que normalmente eram pagas no final do mês, ou até depois da safra da ceifa

ou da azeitona.

Só mais tarde com a exploração do mármore na nossa região, é que o povo

começou a ter um nível de vida melhor, comprava e pagava logo.

Hoje infelizmente as pedreiras do mármore, estão em decadência devido à falta

de escoamento do produto, o desemprego é muito, as necessidades também, mas

também é verdade que muito dos desempregados, estão muito acomodados e

enquanto vão recebendo do fundo de desemprego, não procuram qualquer trabalho,

mas sim emprego.

CRÓNICA 024 - 2014 06 08 - Domingo

ALENTEJO SERRA D'OSSA

GÉNIOS POPULARES

ARTE PASTORIL

Ser pastor não é só guardar gado, é muito mais que isso, e é a este bom filho da terra que dedico o meu tempo e lhes presto uma verdadeira e simples homenagem, e dar a conhecer um grande artista da nossa terra.

Chamava-se Manuel António Capelins, este simples pastor Alentejano, nascido junto à Serra d'Ossa, em São Tiago Rio de Moinhos no Concelho de Borba.

Estes pequenos génios de arte popular passam na maioria dos casos, despercebidos e ignorados, cumprindo assim um destino humilde, que nos assemelha aos nossos antepassados, que ornamentavam as paredes das cavernas, esculpiam e gravavam o osso.

Génios Populares? Porque não?

Dentro de certa medida e guardadas as devidas proporções, são-no decerto, e genuínos como os grandes artistas da pintura e da escultura, como Picasso e outros artistas.

As suas ferramentas e instrumentos eram a navalha, e a goiva feita de varetas de guarda chuvas.

As madeiras utilizadas eram o buxo, a raiz de oliveira, freixo, laranjeira, o chifre e a cabaça eram os seus materiais.

Algumas das suas cornas, que são dos seus mais belos trabalhos fazem-nos lembrar certos ídolos do Neolítico.

Estas mãos cheias de arte e técnica são o produto de uma grande parte do isolamento, da sua quietude exigidos ao pastor Alentejano.

Talvez a maior lição da sua arte, sejam as que nos deu em formas de decoração, essas foi-as ele buscar a um geometrismo de uma riqueza verdadeiramente espantosa, ou ao mundo que o cerca, a fauna e a flora típicas do Alentejo, por vezes até com os homens e mulheres, que com ele viviam e lutavam nas lidas do dia-a-dia.

Os objectos de uso próprio, colheres e garfos, caducos de soprar o lume, cornas para azeitonas, canudos de ceifa e muitos outros. São verdadeiras obras de arte, sempre harmoniosas e ricas, por muitos desconhecidos da maioria dos filhos da nossa terra.

Esta arte misteriosa permanece, como uma nuvem sobranceira à Serra d'Ossa, que o viu nascer e que passou quase sem ninguém lhe dar valor.

Mas não é só na Serra d'Ossa que as nuvens das artes passam sobranceiras, dentro da Cidade de Borba também, as artes passaram, e houve grandes artífices do ferro forjado.

Passar e admirar a perfeição e a técnica que revelam as varandas da cidade de Borba é alegrar a nossa vista, em algumas ruas.

O exame destas varandas com as suas grades são exemplares únicos e de grande valor artístico, pela sua elegância e desenho, revelam grande equilíbrio técnico.

Existe um conjunto numeroso de grades de ferro forjado e não apenas alguns exemplares, que se podem admirar.

Parece pois existir unanimidade de opiniões da relevância dada às varandas de ferro forjado de Borba, consideradas de grande valor artístico e dos mais belos de Portugal.

Este núcleo é notável pelo seu nível artístico, esta arte do ferro seiscentista floresceu no Alentejo, teve em Borba alguns mestres que teriam sido um centro de artes do ferro, cujos artistas são de séculos passados.

Zé RUSSO

CRÓNICA 023 - 2014 06 08 - Domingo

CASTELO – BÊCO DA TORRE

Os esqueletos

Na primeira metade do século vinte, começou-se a fazer o saneamento básico em toda a vila de Borba.

Todas as ruas eram abertas com fundas valas, onde eram colocadas as manilhas dos esgotos.

Era através de força braçal e muito sacrifício humano com picaretas, pás e muito suor, mas foi uma obra muito necessitada para a nossa terra, se esse trabalho fosse hoje era menos moroso, sem tanta dureza devido à maquinaria que existe actualmente.

No Beco da Torre, a chamada rua da volta atrás, nome que era conhecida, por não ter saída, nesta rua sempre aqui viveu gente de fracos recursos económicos.

Era na esquina a oficina do senhor Vicente Cara de Velha, um electricista que tudo reparava e também cuidava da rede eléctrica da vila.

Foi em frente à sua oficina e perto da minha casa, que se começou a descobrir algumas grandes talhas antigas, enterradas no solo a cerca de cinquenta centímetros, tapadas com tampas de madeira já podres pelo tempo.

A maioria das talhas continha no fundo restos de cereais, já decompostos em pó.

Nós miúdos naquela época, brincava-mos descendo e subindo numa corda com nós, por nós adaptada onde colocava-mos os pés descalços.

A mais pura alegria, é aquela que gozamos e divertimos na nossa inocência, e circula veloz no nosso sangue.

A curiosidade era muita, já lá no fundo, alguns espirravam devido ao pó, outros não, e faziam-se apostas em quem subisse mais rápido.

O pior veio a seguir, foi quando o nosso amigo Armando desceu a uma outra que ainda não tinha sido explorada por ninguém, desceu muito bem, mas ao bater com os pés descalços no fundo, e lá em baixo chorava e gritava, tirem-me daqui, ai que eu morro, ai que eu morro.

Chorava de medo e de dor, tinha os pés a sangrar, por ter pisado ossos que lhe feriram os pés, esses ossos eram de esqueletos humanos, dois ou três completos.

Conseguimos iça-lo conforme pudemos, com a ajuda de um vizinho, e leva-lo para ser curado no hospital pelo senhor enfermeiro.

O caso foi comunicado às autoridades, já não sei por quem, poi já passaram cerca de sessenta anos, e as talhas foram tapadas nos dias seguintes com terra, os esqueletos foram transladados pelo senhor Valentim «coveiro do cemitério», que em sacos os transportou, para um local do cemitério da vila a que se dava o nome de Pé Carneiro «depósito de ossadas».

Como não bastasse o susto, o nosso amigo Armando além de ferido e assustado, ainda apanhou com o cinto das calças do seu Pai, um cauteleiro da vila.

Supunha-se na época que aquelas talhas eram para armazenamento de cereais do Castelo de Borba, para reserva de alimentos devido a tantas guerras sofridas noutros tempos com os castelhanos.

Não se sabe é como foram lá parar os esqueletos humanos, aquele Beco, antes fora uma rua com saída para a Praça, por baixo da torre do relógio, e tinha o nome de a rua dos enforcados, porque era ali que os castelhanos enforcavam os Borbenses.

Passados alguns anos recordei com o Armando, na minha oficina, todos estes episódios, alguns anos antes de ele ter morrido, morava no mesmo concelho que eu o do Seixal.

Quis fazer-lhe uma pequena homenagem, com esta passagem da nossa infância que muito mereces.

Um bem-haja dos teus amigos.

Armando Cortes Gonçalo.

ZÉ RUSSO

CRÓNICA 022 - 2014 04 07 - Segunda Feira

CASTELO - BÊCO DA TORRE

A GRANDE BRIGA COM CIGANOS

Os mais velhos dizem que levantar o passado, é como correr atrás do vento, mas nem todo o passado é assim.

Há passado que tem que ser recordado; os mais novos têm o direito de saber muito do historial da nossa terra.

O passado é tão importante, quanto o futuro e vice-versa.

O presente sem o passado, não acho que seja futuro; todo o presente espera pelo passado.

Foi em 1945 num Domingo de Ramos que durante o dia aconteceu um terrível assassinato, que revoltou todos os Borbenses.

Nesse tempo tinha eu meses de idade, tudo o que sei sobre o que aconteceu, foi-me contado por familiares e por dona Paulina Proença, já muito velhinha mas de boa memória, que se encontra no lar de idosos, Manuel Ramalho.

Esta senhora no dia da grande briga andava a mondar uma seara de trigo, quando recebeu a triste noticia e correu para a vila em pranto: os ciganos tinham morto o seu primo, Filipe Caracol, que também era família dos donos da estalagem que existia na antiga rua da Aramenha. Era ali o ponto de encontro da ciganada, onde pernoitavam faziam festas e até casamentos.

Filipe era um homem muito forte, valente e voluntarioso, muito conhecedor dos ciganos, mas de nada lhe valera. Correu em auxílio de um jovem que estava a ser esfaqueado por eles mas acabou ele também por ser morto, com cobardes facadas à traição nas costas.

A principal causa desta briga era devido ao namoro de uns jovens no começo do Bêco da Torre que namoravam até muito tarde.

Eles não os queriam ali a namorar, porque tinham que passar com os burros carregados com os roubos e eram vistos, mas como era um beco eram forçados a passar perto dos jovens namorados, não tinham outra solução.

Era quase impossível, só um cego é que não via, o que eles transportavam com os burros carregados de tudo o que apanhavam, cereais, galinhas, etc.

O baile estava armado… Começaram cada vez a provocá-los, mais e mais, até que certo dia houve uma grande discussão e atiraram-se ao jovem ferindo-o de morte com facadas, sua namorada fugiu para o interior da casa gritando com muita aflição.

Foi nesse momento que o Filipe Caracol, atraído pelos gritos, saiu da taberna do António da Branca, foi em auxílio do jovem, acabando por ser morto por eles, como atrás referi.

O povo saiu à rua em multidão, tudo lhes servia para atacar os ciganos, paus, forquilhas, soram gritos numa algazarra indiscritível, onde tudo se confundia, o ódio o rancor e a vingança, com grandes manifestações da multidão exaltada, correndo pelas ruas.

Foram perseguidos e um deles ainda levou uma valente bordoada num ombro, largou um facalhão, soltou um grande grito raivoso de dor, mas ainda conseguiu fugir confundido com a escuridão já no começo da noite.

Durante toda a noite o povo procurava-os por toda a parte, para os linchar, mas havia quem desconfiasse que um deles tinha sido escondido por alguém, senão tinham-no apanhado.

Junto dos corpos mulheres e homens, clamavam, estão mortos, estão mortos, gritavam em roda dos cadáveres, espantados como se não acreditassem em semelhante coisa.

Choravam e gritavam: -- Há! Miseráveis... Miseráveis... Corja! Mataram-nos... Pois nós vingaremos os filhos da nossa terra!

A maioria dos ciganos são nómadas, andam sempre de casa às costas, mas este grupo morava no Bêco da Torre.

Na velha habitação onde viviam os assassinos, foi tudo virado de pernas para o ar… O povo com archotes queria deitar fogo à casa, mas não o fizeram, porque havia lá dentro animais roubados, e foi na rua que queimaram tudo o que encontraram.

Pela rua de Santa Maria abaixo corria o sangue dos Borbenses. A revolta do povo no dia dos funerais estava incontrolável, havia grande alvoroço, o povo revoltado fez pressão para que ali não voltassem mais e foi o que aconteceu.

O Presidente da Câmara de Borba da altura e que foi meu professor mais tarde, decretou uma lei, que a partir daquela data em todo o Concelho, não podiam pisar o solo.

Apenas um cigano chamado Catambas e o seu filho Matias podiam ali viver (considerados inofensivos).

Eu ainda comi com ele muito mais tarde, ouriços assados por ele (comida predilecta deles).

Após a proibição a lei foi rigorosamente cumprida, estando maior parte das vezes a G.N.R. junto das paragens da camioneta da carreira Setubalense. Todo o cigano que tentasse descer era logo obrigado a subir. Até as carroças não podiam circular no Concelho, só mais tarde na década de sessenta foram autorizados, mas só nos dias de feira.

Só após o 25 de Abril em 1974 é que foi levantada a proibição e começaram aos poucos a viver em Borba. Primeiro foram ocupando terrenos particulares e instalaram-se durante muitos anos junto ao lagar social; ali montaram tendas e barracas de chapa de zinco, sem saneamento algum, onde as moscas os ratos, águas sujas e dejectos se confundiam. Era um perigo para a saúde pública. A água era talvez fornecida pela Câmara; a electricidade vinha dos postes (claro está).

Felizmente que não há mal que sempre dure e lá os conseguiram mudar para casas pré fabricadas, onde têm saneamento básico e melhores condições de higiene nada comparáveis, tanto para eles como para os vizinhos e população em geral.

Eu tive familiares meus a viver muito perto das tendas e barracas deles. Lamentavam-se vivendo com cheiros e águas sujas, tendo também medo devido à sua avançada idade, tendo sempre tudo bem fechado.

Certo dia os meus Padrinhos contaram-me que quando iam receber a sua magra reforma por vezes encontravam lá uma sua vizinha cigana que recebia bem mais de mil euros de reformas ou de Rendimento de Inserção Social, perguntando-me se seria, de ter muitos filhos? (mas poucos lhe conhecia).

-- Sabes que toda a vida trabalhei e descontei mais de quarenta anos para a Segurança Social e só recebo menos de metade dela, que nunca descontou nada, nem nunca trabalhou em toda a sua vida! O que achas de tudo isto... Zé?

-- Sabe o que acho? É que fazer bem a vilões é como atirar água ao mar, (já o meu avô o dizia). É o país que temos e as leis também. Eu, nada tenho pessoalmente contra a raça cigana, mas não deixo de ver o que é óbvio. É um povo que tem as suas próprias leis, e acham que podem resolver tudo a seu modo. São pessoas diferentes e agem e pensam diferente, fecham-se numa concha de tradições e costumes, não convivem com os outros. Só se dão entre eles, não gostam ou não querem trabalhar, nem estudar, os mais velhos dizem que estudar é uma perda de tempo, que na escola não se aprende a negociar. Mas não se pode generalizar, há uma pequeníssima percentagem em camadas mais jovens que não pensa assim. Não sei mais que lhe dizer Padrinho, acho que fui bem explícito.

-- Eu também o fui, e tudo o que te contei sobre a briga cigana foi o que vi nessa época, estava eu na tropa em Lisboa e tinha acabado de chegar de comboio, quando tudo aconteceu naquele fatídico dia de Ramos, que até me estragou uns dias de licença. Sabes Zé, sempre ouvi dizer que quem não ensina os seus filhos a trabalhar, é como ensinar-lhes a roubar. …E que os homens mais facilmente se mudam, do que se entendem, quem muda é o tempo, as circunstancias não.

ZÉ RUSSO

CRÓNICAS DE ÁFRICA - ANOS 1968 / 70

ÁFRICA MOÇAMBIQUE

NIACHICADZA

DÉCADA DE SESSENTA

Dentro de uma velha caixa de sapatos, com mais de quarenta anos, descobri aerogramas e uma ordem de serviço com um louvor, da minha companhia, a terceira do Batalhão de Caçadores n. 20, e mais ao fundo, um velho bloco de apontamentos, que mais parecia um livro, onde eu escrevia, não diariamente, mas periodicamente e só apenas quando encontrava coisas e motivos de interesse.

Já nesse tempo eu gostava de escrever, para ajudar a passar o tempo, como agora.

Lembro-me de ter comprado aquele bloco, na loja do senhor Camordine, que vendia de tudo, era perto do café Planalto e do meu Batalhão, em Vila Cabral.

O nome desta cidade foi mudado para Lixinga, assim como o de Olivença para dar lugar ao nome do rio ali muito perto chamado Lipilichi, onde eu estava integrado, todas essas mudanças foram após a independência.

Todo o mundo é composto de mudanças, mudam-se os tempos mudam-se as vontades.

Como eu gosto deste poema de Camões, cantado pelo sempre saudoso José Mário Branco.

Vou transcrever esta passagem de puro obscurantismo, tirada dos meus apontamentos há mais de quarenta anos.

Jonathan e sua familia eram cristãos, e frequentavam o pequeno Nicho, que servia de igreja no aldeamento, era ali que oravam junto de um padre italiano, de vestes brancas, que periódicamente ali se deslocava.

Jonathan um dia ao entrar na sua palhota, encontra o seu filho ainda jovem muito doente deitado numa esteira a um canto, acompanhado de sua mãe.

Muito preocupado, a sua primeira reação foi ir pedir ajuda ao Niachicadza.

Não sei que nome hei-de chamar à sua actividade, talvez feitiçeiro ou mondhoro, ou até os dois.

Os mondhoros são os responsáveis pela morte de muitas pessoas, entre as quais crianças, sendo frequente sacrificar uma rapariga ou um rapaz, os assassínios rituais, infelizmente são muito vulgares em África, e tambem a utilização de determinadas ervas para desfazer maldições, e muitos outros rituais pagãos principalmente em étnias do mato, que vivem na escuridão da ignorancia.

Niachicadza ao chegar entra na palhota de sacola de pele ao ombro, corre a cortina da porta, feita de sacas de batata, dirige-se ao doente e faz logo muito rápido o diagnóstico olhando o doente apenas, e quase às escuras.

Jonathan pergunta a Niachicadza. Não poderás tentar com a tua ciência, salvar o meu filho?

Respondeu:- É impossível: Parece que contra ele se voltaram todas as iras do Kulukumba. ( Deus). O teu filho já não pertence à nossa tribo, afastou-se dos caminhos do bem, aceitando outos trilhos, que vão dar à igreja dos muzungus ( brancos).

Tu e os teus já não rezam para o nosso Kulukumba ( Deus), já não vão para a árvore grande falar como os outros crentes vão.

Esqueceste a tradição da nossa gente, e tu foste de algum modo o culpado, porque deixas-te os teus ir ao templo do padre vestido de branco, e do homem pregado na cruz, a deitar sangue das feridas que ninguem limpa. Agora tens o resultado.

Seu filho gemia deitado na estera , há horas que sofria, não comia nem bebia, a febre fazia-o delirar, e dizer coisas disparatadas. Tinha as pernas estendidas, magras com ar de esqueleto, as órbitas pareciam duas covas ao fundo das quais já luziam pouco os seus olhos.

Sua mãe sentada no chão ao seu lado olhava-o tristemente, parecia um xipoko ( fantasma). Não dormia nada, seu filho deixou de falar, ficava gemendo e a tremer de frio.Sua mãe sabia que a morte espreitava à porta da palhota.

Lá fora a temperatura era mais de trinta gráus centigrados.

No dia seguinte Niachicadza voltou.

Jonathan perguntava -lhe. Não vais tentar fazer nada? Sim vou tentar — respondeu.

Traz-me uma bacia com água a ferver e duas capolanas e deixa-me só com ele e com tua mulher, tu vais-te embora. Não entras senão quando eu te disser, ouviste?

Vais lá para a árvore grande, pedir ao nosso kulukumba que te ajude. Vai...Vai... Talvez tu possas fazer mais do que eu com o teu pedido.

Eu vou tentar com o feitiço que me dão as plantas do mato. Talvez o chikuembo (feitiço) ,

ouça a tua palavra, os gemidos do teu filho e tenha pena do chouro da tua mulher. Mas vais prometer -me que não irás mais ajoelhar e rezar ao Kulukumba do padre vestido de branco.

Niachicadza meteu as capolanas na grande bacia de água quente. Espremeu uma delas nas mãos magras e incensiveis às queimaduras. Estendeu-a sobre o peito do doente que se mexeu um pouco. Com a outra foi deitando por cima mais água quente.

Quando a água acabou na bacia, virou a doente, tomou-o nos braços e levou-o para uma estera mais limpa, esfregando-lhe o tronco com um pano até a pele ficar enxuta. Deitou em seguida a mão a uma garrafa, abanou-a e espreitou a mistura à claridade do dia, colocou na palma da mão o liquido, e passou-o pelo peito do doente até secar.

Tirou da cinta a faca de mato, passou o dedo polegar da mão direita por ela e preparava-se para fazer uma operação, cortando o jovem. (não sei onde?).

Quando a sua mãe lhe gritou, ao vê-lo de faca na mão. Não...Não-- tu vais matar o meu filho. Eu não quero.

Não tenhas medo eu só quero fazer bem, descança.

Tu vais matá-lo—Não...Não.

Os gritos e guinchos de aflição eram fortes e ecoaram nas emediações da sanzala.

Atraidos pelos gritos, os visinhos e dois militares que passavam perto, foram ver o que se passava, e encontraram Niachicadza de faca na mão.

A mãe, agarrou-se a um dos militares e gritava—não deixem matar o meu filho.

Niachicadza fêz um gesto de intimidação aos militares. Um deles colocou a mão sobre a walter que trazia à cintura, e ele lá guardou a faca de mato, na bainha de pele de gato que trazia à cintura.

E falando na sua linguagem ètnica nyandja, foi colocando as plantas e frascos de mézinhas,

embrolhando-as numa pele de antílope, em seguida partiu sem olhar o doente, embrenhando-se no

mato, muito bravo e gesticulando

Jonathan atraído pelos acontecimentos, cruzou-se com ele, sem palavras.

O corpo foi transportado numa viatura unimog 404, ía deitado na caixa com seu Pai ao lado, suas pernas serviam de travesseiro ao filho.

Já no posto médico, (numa tenda de lona) sem condições, o corpo foi colocado na marquesa.

O médico militar que o examinou, diagnosticou-lhe com muita facilidade paludismo (malária), num estado já muito avançado.

Deu-lhe ele próprio logo uma injeção de résóquina naquele momento, ficando alguns dias em tratamento, que era admistrado pelo cabo enfermeiro, já na sua palhota, onde vivia.

Enquanto os pais esperavam pela cura do filho, ficavam juntos muito pensativos, ele para atear o lume metia mais uns paus, enquanto ela mexia a farinha de mandioca. Um grande calango, ( lagarto ) pintado corria e subia o tronco da árvore grande, subiu ...subiu, e enfiou-se no topo. Uma luz amarela do entardecer cresceu e refléctindo, pegou-se às paredes de matópe da palhota, pouco depois era noite.

Nessa noite o Furriel Russo via a tristeza dos Pais, animava-os dizendo: seu filho vai ficar bom, tirou do seu pescoço um fio de missangas com um crucifíxo de marfim e deu-lho para a mão dizendo: Não tenhas medo Jonathan coloca-o ao pescoço, ele assim fêz olhando-o com ternura.

Mais tarde, já estava livre de perigo mas muito fraco, toda a familia estava muito agradecida , pais e filho. Quando viam o médico ou o cabo enfermeiro, curvavam-se muito na frente deles como sinal de muito respeito.

Jonathan gostava muito do Furriel Miliciano Russo, embora ele não fumasse , levava-lhe de vez em quando uns cigarritos, tanbm fôra ele que lhe transportara o seu filho doente para o posto médico, onde foi salvo.

Um dia fora surprendido quando passeava no aldeamento, Jonathan foi ter com ele e fez-lhe uma oferta que ele hoje ainda tem e guarda com carinho. Foi um chicote de pele de hipopótamo, feito por ele com um busto de um europeu em pau preto a servir de péga, muito perfeito e bem trabalhado e na véspera da minha saída de Olivença ofereceu-me uma pequena pele de zebra, de recordação.

ZÉ RUSSO

-------------------------------------------------------------------------------

ÁFRICA MOÇAMBIQUE

AQUARTELAMENTO DE OLIVENÇA

Compaixão e Revolta (Casinha do Motor)

Olivença terra para nunca mais, mesmo junto ao rio Lipilichi, foi aqui que eu passei um ano e meio da minha juventude há mais de quarenta anos.

Esta minha unidade era integrada por soldados africanos « negros », excepto os especialistas que eram europeus « brancos », como era o meu caso e de mais camaradas meus, enfermeiros, transmissões, vago mestres, mecânicos, etc.

Havia um pequeno edifício onde era o posto da Administração Civil, o seu chefe era um negro de farda toda branquinha e bem cuidada, donde sobressaia a sua cara escura muito simpática.

No mesmo local, um Policia de Segurança Publica europeu, chefiava um pelotão de milícias « tropa de segundalinha » todos ali recrutados e treinados por ele, eram cerca de trinta negros bem fardados de côr verde garrafa da cabeça aos pés, havendo um em especial de quem eu gostava, era muito pequeno e cómico, chamado Tama Tama.

Certo dia foi apanhado pelas nossas tropas um « turra », nome por nós chamado a um guerrilheiro da Frelimo. Frente de Libertação de Moçambique.

Talvez por esquecimento meu nessa época, não registei no meu bloco de apontamentos as causas da sua captura, nem por quem foi capturado, falava-se que andava a colocar« marmitas » (minas) nas « picadas » (estradas de terra) ali perto de nós.

Quando chegou não havia algemas, mas necessitavam-nas e foi-me pedido a mim que arranjasse alguma coisa no parque auto, eu arranjei uns arames que lhes amarraram nos pulsos e apertaram até ao osso.

Nós ali não tinhamos prisão nenhuma, para nós não tinhamos alojamentos quanto mais para os presos, o que se arranjou foi a casinha onde estava um velho motor marca Ferreirinha, montado num chassis com um gerador, já sem trabalhar há muito tempo porque o gerador tinha queimado.

Era uma casa em alvenaria com uma pequenina janela e uma grade em ferro, com uma forte porta em madeira, lá dentro as paredes eram negras devido às fugas de gases de escape do motor, quando em tempos trabalhava.

A casa não tinha mais que nove a dez metros quadrados, depois de limpa tirando de lá alguma tralha e lixo, para haver mais espaço eu tive a iniciativa de desmontar o motor do sitio e transportá-lo para a oficina improvisada do parque auto, onde trabalhava e eu era responsável.

O turra das minas nome por nós apelidado foi lá colocado e desamarrado, com um balde para as necessidades, o policia ia levar-lhe comida sempre armado com a sua FN «espingarda de fabrico Belga » semi-automática.

Uns dias depois cruzei-me com os dois, policia e prisioneiro, vinham do edifício da Administração onde era interrogado periòdicamente, constava-se que ele se tinha infiltrado no aldeamento ajudado por alguém de lá, pois já tinha sido visto por ali um ou dois dias antes de ser apanhado, provàvelmente com cumplices na povoação.

Caminhava muito lento de andar incerto, o seu antebraço ia fixo mas o braço pendia para um lado e para o outro, talvez só preso pela pele e muito inchado, seu corpo ia semi-nu, a roupa era esfarrapada e descalço, mas já fora capturado assim.

Um dia ao abrirmos -lhe a porta para ele ir despejar o balde, eu entrei lá dentro o cheiro era nauseabundo a urina e não só, fui-lhe arranjar um velho colchão ainda em bom estado,uma manta e uma ou duas garrafas com água.

Ele não dizia nada só olhava, ali sentado no chão a um canto da pequenina casa, o seu olhar fixou-se no meu como um agradecimento, causando-me mau estar, algumas moscas pousadas nele nos lábios inchados e feridos não o incomodavam em nada.

Ao sair dali tive um impulso de fúria comigo próprio, mudando o meu estado de espírito radicalmente... de dó e COMPAIXÃO, PARA INDIGNAÇÃO e REVOLTA , a minha mente virou para o oposto do meu estado anterior, o meu pensamento era no que este homem nos estava a preparar, matar-nos, ou ficarmos sem pernas, ou braços, cegos ou paraplégicos e abandonei o local, para me distrair e não ter que lhe dar um tiro na testa, com a walter que trazia no cinturão.

Agarrei-me ao velho motor da casinha e comecei a trabalhar nele, descarbonisei-o, vedei-lhe válvulas e fiz-lhe uma boa revisão ficando a trabalhar lindamente.

O dia seguinte amanhecera quente e húmido, uma atmosfera pegajosa «cacimbo» ainda cedo pousou no nosso campo de futebol, um Hélicóptero Alouette trés.

Após a sua chegada foi-me solicitado o combustível que tinha à minha guarda e à minha responsabilidade, ajudei o Cabo da Força Aérea a atestar, em seguida fomos à cantina beber uma laurentina, enquanto o piloto, talvez tivesse no posto da Administração.

Antes de partir o Hélicóptero tinha já o preso lá dentro, acompanhado por um elemento nosso desconhecido, Pela ultima e ùnica vez vi o prisioneiro abrir a boca de lábios muito inchados e disse, « Ahmbanine », palavra que significava adeus e, levantando levemente o braço não partido junto do ombro, mal articulando os dedos, seu olhos fixaram-me novamente, vim a saber mais tarde que nunca abrira a boca para dizer fosse o que fosse, quando o interrogavam.

Nunca eu vim a saber para onde o levaram, talvez para a cadeia da Chefina numa ilhota muito longe o que não era provável devido a ser muito longe, o mais provável foi ter ido tirar um curso de pára- quedistas sem pára -quedas no Lago Niassa ali muito perto do nosso aquartelamento.

Dias após a partida do preso fui dar comigo muito pensativo sentado junto do velho motor já reparado sem saber para quê? Qual o destino a dar-lhe? Um dia ao passar por um monte de sucata de viaturas Berliett minadas vi um enorme alternador de 24 voltes e um regulador de corrente do mesmo, disse para mim... já sei o que fazer e com a ajuda do meu bom amigo Cabo Mecânico Domingos Maesso, fiz um estudo que coloquei em prática.

Adaptei-o no chassis onde esteve o gerador, com duas correias trapezóidais, tive sorte que as rotações do motor eram no mesmo sentido, montei-lhe o regulador de corrente com as respectivas ligações e fiquei com um sistema óptimo para carregar baterias tão necessitado naquele ermo longe de tudo

.Mas não fiquei por ali, de um motor eléctrico velho de um limpa vidros de um unimogue fiz uma ventoinha, com pás feitas em chapa para me refrescar em dias de calor, colocada num suporte na parede por cima de onde dormia´e uma lâmpada para quando queria ler à noite, com um interruptor tanto para a ventoinha como para a lâmpada. A energia vinha de uma bateria por debaixo da cama do meu companheiro de quarto.

Quando já estavam as baterias fracas eu carregava-as na minha invenção.«motor alternador», assim eu ia passando o tempo melhor e sempre ocupado.

Um dia o nosso Comandante Capitão Botelho Moniz entrou lá e também queria uma ventoinha, eu disse-lhe que quando me fosse embora deixava-lha como herança e ele ria bem disposto, com a sua voz de Açoreano bem vincada. Dizendo: Quem te pôs a alcunha de professor pardal até acertou.

Quero salientar que a ventoinha era silenciosa, deixando-me ouvir todos os ruídos nocturnos que eu tanto apreciava e até já distinguia alguns como os mabécos, cães selvagens, hienas e até leopardos, que vinham ao cheiro da comida dos desperdícios da cozinha.

Estes por vezes apareciam mortos a querer passar o arame farpado que estava armadilhado com minas para nossa segurança, que entre os Alferes e Capitão Botelho Moniz disputavam o direito ás peles.

Não falando dos ruídos dos meus amigos e bons camaradas das transmissões, que recebendo e enviando mensagens. Alfa... fox-trot...delta...lima...papa.ia ouvindo até me deixar dormir, e ser acordado para fazer a ronda nocturna, nos postos de sentinela quase diàriamente.

Tudo passou ficaram as recordações de tempo perdido com muito suor, lágrimas e sangue derramado. Onde deixaram a nossa companhia diária, no mesmo quarto que eu, o Furriel Miliciano Santos e o rádio telegrafista Bruno, e aos condutores do parque auto, que no rio Zambeze desapareceram, nunca os esquecerei a todos.

ZÉ RUSSO

CRÓNICA 021 - 2014 02 02 - Domingo

AS FESTAS DE SÃO MIGUEL

NAS TERRAS DO MOSTEIRO

(Década de Cinquenta)

As memórias, se não as guardarmos, é como se nunca as tivéssemos vivido! É como se nós nunca existíssemos... tudo passa ficam as emoções. Falando do passado e sofrendo o presente. As casas, caminhos, ermidas, árvores, e campos, são lugares que vivem e morrem. Com uma grande diferença, mesmo já mortos, retêm a vida que os animou noutros tempos.

Também há idades para tudo, e a minha já perto dos setenta, idade da minha existência, em que as recordações se tornam mais vivas e as saudades mais doridas, por serem sentidas já no seu caminho constante para o fim, que a pouco e pouco nos vai empurrando.

São Miguel, segundo diziam os meus familiares, era o Santo porta bandeiras do céu e guia das almas, assessor de Deus, que embora não frequentassem a igreja , tinham o Deus na alma.

O culto deste Santo, tinha origens muito antigas desde o começo do século quarto no Egipto. Já Dom Afonso Henriques, em reconhecimento na ajuda contra os mouros, instituiu a Ordem de São Miguel em 1167.

A pequena Ermida, ainda hoje existe, nas terras do Mosteiro em Borba. O seu acesso, tanto podia ser por uma azinhaga ao fundo da quinta, como por uma outra que existia em tempos no cimo da Rua das covas, actualmente Rua Silveira Menezes, passando por baixo de um pequeno aqueduto que fornecia água à bonita roda da azenha do moleiro, o Ti Pedro das Mós, local que eu muito adorava, vendo a roda a girar com a força da água, para fazer a farinha.

Meu Pai semeava as terras circundantes à Ermida e outras em redor, de trigo e outros cereais, até melão e melancias, mas não eram dele as terras, eram arrendadas ao Doutor Humberto Fernandes, homem rico da terra.

Era o meu Pai que cedia as terras, as gradava e alisava o melhor possível para as festas de São Miguel, que duravam dois ou três dias, era no mês de Setembro, e era também a altura do ano em que estavam em descanso, só mais tarde é que as sementeiras eram feitas, daí ele ceder as terras em frente à Ermida para as festas.

O nome de terras do Mosteiro advêm por ali ter existido, há muitos anos um grande Mosteiro com terras em seu redor que lhe pertenciam, até uma quinta ali perto, antigamente tinha o nome de quinta do Mosteiro. Só mais tarde ficou a chamar-se quinta do General, por ter pertencido ao General Dom Dinis de Melo e Castro.

Foi nesta linda e maravilhosa quinta, que viveram sempre os meus Avós, mas como caseiros, foi lá, que nasceu o meu Pai, e onde eu também fui criado, embora não nascesse lá.

Era junto à Ermida de São Miguel, que aquela bonita festa era feita todos os anos. O festeiro com a sua comissão de festas era quem a organizava, havia uma pequena procissão com a imagem do Santo, que era acompanhada à frente com o Pendão de São Miguel, este Pendão era «leiloado» ou arrematado, por um novo festeiro para o ano seguinte, por uma certa importância em dinheiro.

Esta festa como qualquer outra no Alentejo, tinha sempre dois componentes a parte de diversão e a religiosa, quem frequentava a missa naquele dia tinha que assistir lá fora em frente à porta da igreja por esta ser muito pequena para tanta gente.

A banda de música Filarmónica Borbense, tocava lindas e diversas melodias, o povo menos apreciador de música ia para as baiúcas comer e beber, onde enchiam a barriga com petiscos e bom vinho de Borba. As baiúcas eram barracas em pano enfeitadas com ramos de palmeiras.

À noite havia bailes, ao som de acordéons onde muitos iam arrastando os pés, com algum pó à mistura, embora o chão tivesse sido molhado antes e espalhado alguma palha, o pó sempre existia. O trabalho do alisamento do terreno era na maioria das vezes oferecido pelo meu Pai.

As cadeiras para a festa, também eram transportadas por uma carroça cedida pelo meu Pai, era o senhor Geraldo, o almocreve, que as carregava, homem muito possante. Eram alugadas a um senhor muito obeso, que usava uns óculos com lentes muito fortes, e tinha como alcunha o Caga na Roda, era dono de uma taberna junto à farmácia do senhor Semedo. Ainda hoje me lembro, quando contava-mos as cadeiras alugadas para a festa e ao carrega-las, falava para mim, ajuda-me lá Zé, a contar não me vá eu enganar, isto porque tinha muita falta de vista.

O senhor Geraldo certo dia ao passar por um grupo de pessoas influentes da vila, foi abordado por eles enquanto comiam e bebiam, talvez já com o sangue aquecido pelo vinho. Ó Geraldo larga lá as mulas e vem junto de nós. Nós estamos aqui com umas duvidas e gostava-mos da tua opinião. O almocreve Geraldo aproximou-se, tirou o chapéu educadamente perante o grupo de homens da terra uns com sabedoria e outros só com dinheiro. Diz-me o teu parecer. Fazer um filho, é um trabalho ou é um prazer? Atão na sabem? É por prazeri, tásse mesmo a veri, porque se fosse trabalho, vocês tinham que pedir cá à gente pós fazeri. E lá seguiu o seu caminho com as mulas e ia pensando; E se fossem mas é lamber o cu a um cavalo.

Não há festa nas redondezas sem uma boa tourada e esta não era excepção, no recinto das festas, como praça de touros, fizeram um grande circulo com carros de mulas encaixados uns nos outros e numa das partes um reboque de um tractor, com a banda de musica e todos os importantes da terra, o ganadeiro Cacheirinha dono da vacada, festeiros, veterinário os ricos e o cabo da Guarda Republicana, todos em cima do reboque do tractor.

O povinho assistia em cima das carroças, todas apinhadas de gente, os mais afoitos e atrevidos escondiam-se por detrás das rodas das carroças, aguardando o começo, que era dado pelo festeiro com um foguete, que estourava parecendo um trovão. O nervosismo era grande, alguns para dar nas vistas às namoradas ensaiavam alguns passes com capas improvisadas.

Ao som da corneta saía o primeiro animal e a brincadeira começava, corriam à frente das vacas bravas, como alguns dos animais já estavam habituados aquelas lides, por serem usados mais vezes, não eram muito perigosos.

A banda da música animava a festa tocava alguns passodobles, recortados por clarinete e saxofone era bonito de ver toda aquela moldura humana com o círculo das carroças, umas de um vermelho vivo outras mais desbotado, gritando olés. Era um cenário que ao entardecer tornava rubro e mais profundas as terras do Mosteiro, que no resto do ano eram tranquilas, mas naqueles instantes mágicos, ganhavam vida.

Organizavam-se pequenos grupos de forcados e faziam algumas pegas, uma mais bem sucedidas que outras, cornada daqui cornada dali, tudo estava animado, até alguns já com o álcool nas veias a torvar-lhe as ideias, armados em valentes, levavam algumas marradas por não terem já pernas para fugir, mas sempre havia um ou outro mais consciente do perigo e segurava os bêbados para não irem para junto das vacas bravas.

Um dos grandes aficionados, muito entusiasmado erguia numa cana bem alto, algumas notas, outros endinheirados faziam o mesmo para não ficarem atrás do vizinho do lado e assim alguns com ambição e necessidade, levavam algum dinheiro para casa e eram levados por vezes em ombros todos vaidosos a receber as notas, e a banda voltava a tocar bonitos passodobles, sentados nas cadeiras alugadas ao Caga na Roda. Estava-se quase no fim daquele bonito e tradicional divertimento Alentejano, tudo vibrava de alegria.

O pior estava para vir, o ganadeiro Cacheirinha anunciava que ía entrar na praça o russo, um touro muito bravo, corpulento, de uma cor intermédia entre o vermelho e o preto, metia respeito, era uma fera .

Ao tocar a corneta ninguém se atrevia, tudo se refugiava debaixo das carroças, quando o animal soprava contra o chão, fazia levantar a poeira, o tempo ía passando e ninguém era capaz de o enfrentar, nem os mais afoitos saíam debaixo das carroças.

Os homens do dinheiro penduravam muitas notas nas canas, os assobios ouviam-se à distância, mas nada! Por baixo das carroças incitavam-no com lenços garridos e jaquetas, gritando: Éh touro!... Éh touro! e o russo começou por investir contra as carroças, até que com os cornos levantou uma no ar, caindo e saltando dela algumas pessoas, houve a pouca sorte do touro escorregar e enfiar uma das patas da frente nos raios da carroça, partindo-a, não conseguindo levantar-se mais, o animal bem tentava, dava urros de dor, levantava grande poeirada.

Em seguida o russo foi puxado por uma parelha de mulas, até aos curros improvisados tendo que ser abatido imediatamente, por ordem do veterinário, antes que ficasse com febre e a carne não pudesse ser consumida.

O momento alto das festas, ficou marcado de um final triste para o touro e para o povo que não gostou de o ver sofrer, ouvindo-se entre todos um coro de óóósss. Mas para surpresa de todos os momentos de tristeza foram suavizados por dois homens que entraram no redondel da improvisada praça com um burro bravo a correr.

O festeiro anunciava, que quem o fosse capaz de montar, ganhava um borrego que se encontrava preso a uma roda de um carro, muitos iam tentando mas o burro não deixava, dava imensos pulos e por vezes arreganhava as beiçolas para morder, tudo voltou a estar animado os gritos eram muitos de monta... monta... monta, muitos foram os candidatos ao borrego com muitas quedas, mal o animal sentia algum contacto era coice bravio, até que o João Mija Longe muito alto e fininho alçou as grandes pernas e conseguiu, agarrando-se à garupa e com as pernas compridas apertou-as fortemente à barriga do burro, ganhando assim o borrego. Tudo ria e batia palmas, eram assim os divertimentos naquele tempo.

Para as mulheres, além da festa religiosa, era a música e o Cante Alentejano em que as mais dotadas e inspiradas, cantavam lindas modas da época, acompanhadas com o banjo do Zé da Boina, que tocava muito bem.

Estes divertimentos eram sempre aguardados, com muito desejo para passar o tempo com alguma alegria e diversão, não pensando nas suas vidas com muitas faltas, muita amargura tanto pelo trabalho difícil do campo como pelo sofrimento, que alguns maridos lhes causavam, não as tratando com a dignidade que sempre mereciam.

ZÉ RUSSO

CRÓNICA 020 - 2014 01 17 - Sexta-feira

ALENTEJO

DÉCADA DE CINQUENTA

DONA MARIA

Pela vida fora tenho sido espia de muitos acontecimentos, que vou guardando para mim e que agora vou divulgando.

Já lá vão muitos anos, quando eu era um adolescente, e via a Dona Maria da Purificação, mulher do senhor João Fininho, passar de cara toda coberta de pó de arroz, véu preto na cabeça, quase todos os dias caminhava pela rua junto ás paredes na direcção da igreja, e dizendo para nós, que jogava-mos ao botão, atirando o côca à parede.

Cuidado meninos desviem-se que eu quero passar, «saiam da frente gaiatos».

Era de poucas falas e de ar sisudo, e lá ia caminhando de livro de missa debaixo do braço, nádegas a balançar, seios a tremer com passos apressados, para não chegar atrasada aos terços e novenas.

Dona Maria era uma mulher de fé inabalável e comunhão quase diária, talvez sugestionada pela oratória dominical derramada sobre o mulherio.

Nunca faltava às missas, lá estava sempre pronta, até a ajudar o Padre Inácio a enfeitar o altar com flores, também era ela que oferecia o vinho para as missas, que o Padre muito apreciava, era puro sumo de uva, feito pelo seu marido.

Por algumas vezes ela também o convidava para almoçar na sua casa, mas o seu marido é que não gostava muito daquelas gentilezas, mas para não ser mal educado, lá ía aguentando tudo mas contrariado.

Quando lá comia, e já empanturrado, o senhor João convidava-o para um digestivo e nas suas conversas falavam de tudo um pouco, embora, João o ouvisse mais que falasse.

Sabe João! A religião Cristã é a escada por onde se sobe para o céu, e apontava com o dedo indicador para cima.

Este magicava, achando que subir assim à força e depressa demais, não seria seguro pois há sempre o risco de cair da escada.

Dias após, comentava as palavras do padre com o seu grande amigo Zé Perdigoto, este seu amigo era muito malandro e brincalhão, mas muito filósofo, embora só tivesse a quarta classe do ensino básico daquele tempo, era muito esperto e vivido.

Era um republicano embebido em ideias anti- salazaristas, segundo se dizia, tinha passado por Espanha, e lá tinha bebido em fontes anarquistas.

João perguntava-lhe, ó Zé será possível viver em sociedade sem ter religião alguma?

Acho que sim, uma coisa não tem nada a ver com a outra. Sabes João, eu acho que podemos pensar assim: Ouve-me bem amigo e pensa um pouco comigo.

Se Deus não existe, então não é preciso preocuparmo-nos com a religião; existem coisas na vida feitas para serem experimentadas e jamais explicadas.

E se ele existe mesmo?

Dizia o João.

´ É a mesma coisa, ninguém pode garantir ou conseguir provar que Deus existe, ou que não existe.

Por isso a nossa escolha é como uma aposta, não achas João?

Pois é, por isso o melhor que nos temos a fazer, é ajudarmos a criar um mundo melhor e não pensarmos, nessa coisa da religião. Um famoso teólogo disse-me um dia que há muitíssimas pelo mundo fora.

Cada um é como cada qual e cada qual é como cada um, temos é que respeitar as ideologias de cada um.

Pois é, pois é, mas eu ando cá cismando e agastado por dentro, até já chamam à minha mulher rata de sacristia, e que eu só trabalho para ela levar para a igreja, querendo com isto dizer, que eu é que governo a igreja e até encho a barriga ao Padre, sabes como é a má-língua cá da terra, são umas linguareiras.

Sei muito bem, e vou ajudar-te, a tua mulher tem muito zelo religioso e excessivo a que se dá o nome de fanatismo.

Eu vou pensar num plano para te ajudar a viveres sem esse problema, mas tens que colaborar comigo, só assim te ajudo.

Zé Perdigoto foi arquitectando um plano, pensou, pensou, e quem sabe como o mal se faz, esta perto de o fazer, e quem sabe como o engano se pratica, não esta longe de o praticar, «ditado do meu Avô».

As boas garrafas de vinho branco de grande qualidade, foram retiradas da adega, e substituídas por outras da mesma cor, mas com vinagre, para a missa dos domingos celebrada pelo Padre Inácio, que Dona Maria iria levar para a igreja, para ser bebido por ele, durante o Sacramento como era seu hábito.

Num domingo, durante uma homília fez alusão a uma tragédia acontecida a um trabalhador, que morrera esmagado debaixo de um tractor quando lavrava umas terras.

Chamava-se João Pequeno e tinha como hábito, na taberna do Zé da Abelha beber uns copitos a mais, e blasfemar contra os Santos e a Igreja.

O padre aproveitou a deixa dizendo: Que aquela morte era um castigo Divino, que lhe acontecera e lá de cima do púlpito, nos sermões, espetava no cachaço do povo, bandarilhas embebidas no ópio da crendice e da religião com que a igreja se mantinha independente.

Quando nessa mesma missa em seguida ao Sacramento da Eucaristia Divina, foi levar o saboroso vinho à boca e tomava um grande gole, como era seu hábito saborear, rebentou a bomba, deitou tudo fora, sujando as suas vestes e a toalha do altar na frente dos fiéis.

O Padre passou a ser muito diferente para a beata Dona Maria, antipático e de mau humor.

Ela pensava!

Mas que mal fiz eu?

Que terá contra mim?

Tão dedicada que tenho sido sempre.

Tão bom vinho que lhe ofereço para a missa.

O tempo foi passando, e chegou a altura da Páscoa, e era costume nesta época oferecer ao Padre, galinhas, patos, ovos e até mel.

Zé Perdigoto na sua quinta, tinha juntado muitos ovos que mantinha ao sol, para ficarem estragados, ou goros «como se diz no Alentejo».

Nos dias da oferta o senhor João preparou um bonito cesto para o efeito, bem decorado com uma fitinha de seda vermelha na asa, com os ovos dentro.

Está lindo não está?

Maria olhava-o embevecida na gentileza do marido.

Está muito bonito, até mereces um beijinho, e deu-lhe um beijo, o que era raro acontecer, pois era muito fria e pouco carinhosa.

Foi logo directa a casa do Padre, nem mandou a oferta por ninguém, entregou o cesto à mulher que vivia com o Padre, que este dizia ser sua irmã! Seria?

O cheiro nauseabundo ao partir dos ovos para fazer os folares e bolos de Pascoa, foi tão intenso que ninguém conseguia aguentar-se dentro de casa, tendo até que abrir as janelas.

Daí para a frente ele ainda a tratava pior, a tal ponto que ela só ia à igreja aos domingos.

Cansada do desprezo começou a importar-se mais com seu marido e sua casa, nunca veio a saber a razão, pois ele nunca lhe disse o porquê, da sua atitude.

A sua vida posterior a estes episódios, era passada com as amigas, também elas ratas de sacristia, preconceituosas e cheias de si próprias, peritas em conversas da vida alheia, entre duas chávenas de chá e a deglutinação de uns biscoitos caseiros, refrescavam as faces empoadas em pó de arroz, e abanavam-se com leques, vindos de Espanha.

Embora muito religiosa, não era capaz de dar uma côdea de pão a um pobre, ou um agasalho a um mendigo com frio.

Seu marido João Fininho, era diferente a todos ajudava e alimentava, dos seus magros proventos, tinha a esperança de poder vir a contribuir para um mundo melhor, mais justo e solidário, onde a pobreza não afligisse tanta gente, onde a fome não matasse tanta criança, um mundo onde a paz e a boa vontade tivessem um vivência feliz.

Os dois amigos na adega do João Fininho brindavam de copo na mão e bebiam o bom vinho branco, que estivera escondido algum tempo, e deitaram fora as garrafas do vinagre, claro está.

Em seguida batiam os copos um no outro, dizendo: ‑ À nossa saúde e que Deus nos perdoe, se é que existe mesmo?! ... Deste não bebe ele mais.

Encara os crentes com calma

Se rezam deixa-os rezar

Quem não sente Deus na alma

Adora o Deus lá no altar

«Autor da quadra, desconhecido»

Zé RUSSO

CRÓNICA 019 - 2013 12 05 - Quinta-feira

A BENGALA JUSTICEIRA DE DONA MARCELINA

UMA ALENTEJANA À ANTIGA

Marcelina Russo foi a minha Avó do coração, faleceu já muito velhinha com bem mais de oitenta anos, devido a uma queda.

Sua perna não aguentou, devido ao estado avançado da osteoporose, e morreu com gangrena no hospital de Elvas.

Anos antes foi sempre uma grande mulher, muito recta, corajosa, honesta, simples e sem papas na língua, tinha um grande vigor e muito sentido de justiça.

Mas era brava e tudo o que sentia dizia, não poupava nem a Cristo (termo alentejano).

Mulher de estatura mediana e tez morena, lavrada no rosto por rugas do clima alentejano.

O seu buço mais parecia um bigode, fazendo questão de nunca cortar os pelos dizendo: que quanto mais os cortasse mais cresciam.

Já velha ainda fazia rendas e meias para nós netos sem usar óculos (cangalhas com ela dizia) regava as flores e tratava do seu jardim com muita dedicação, ai do cão ou gato que lhe estragasse alguma flor.

Nunca tomou um comprimido em toda a vida, usava chás para tudo, o mais usado por ela era o de malvas, quando eu tinha feridas nos joelhos, curava-me com pontas de rosmaninho pisadas com sal, sarava em pouco tempo.

Estava-se na década de cinquenta, eram tempos difíceis e sem recursos, até as próprias farmácias faziam alguns medicamentos.

Um certo dia foi o médico à nossa casa, mas não porque minha Avó estivesse doente ou alguém da família, quando ele se ía embora de casa perguntou-lhe: Então Dona Marcelina como vai a sua saúde? Tenho umas dores de barriga mas «na teim duveda». O médico receitou-lhe uns comprimidos, que eu fui aviar à farmácia do senhor Semedo, a mandado da sua filha (minha Mãe) e eu lá fui.

Mãe tem aqui o frasco dos comprimidos, que o senhor doutor lhe receitou, para a sua barriga ficar melhor, deve tomar um por dia à refeição, disse-lhe a minha Mãe.

Nesse mesmo dia à hora do almoço falou para mim, em voz baixa, ó Zé... vais mas é dar os comprimidos às galinhas, recomendando-me com um sorriso irónico nos seus olhos malandros, que observasse bem se de futuro as galinhas, passavam a pôr mais ovos.

Eu não percebi que estava na mangação comigo, era muito novinho, como lhe tinha muito respeito e era sempre bem-mandado, fui despejar o frasco no galinheiro, o resultado foi morrerem duas ou três galinhas.

Ela ficou zangada, gostava muito das suas galinhas, por vezes eu via-a a ela dentro do galinheiro, agarrava-as e colocava-lhe o dedo no cu para saber se tinham ovo.

Ao vê-las mortas, ria-se ao mesmo tempo que batia com a bengala no chão, gritava para a minha Mãe: Vez Vicência, se as galinhas morreram faria eu, se tomasse aquelas drogas... tivemos galinha para comer durante uma semana ou mais, sangrava-as dizendo; drogadas devem saber melhor.

A prepósito do que vou escrever sobre Dona Marcelina vou fazer uma pequena reflexão sobre a velhice.

Aquilo que todos os velhos sabem e aquilo que eu tenho demorado muitos anos a compreender, é que um rosto idoso é enganador.

Eu não quero ser um clássico maçador, do velhote contando as suas recordações, mas sei agora que os velhos não são tão frágeis como se pensa, e sentem-se insultados por serem olhados como pessoas fracas.

Estão cheios de ideias, de capacidades ocultas, que nunca revelaram, e mesmo até alguns com energia sexual.

Não podemos deixar-nos enganar pelos cabelos brancos e feições desgastadas.

Os homens e as mulheres de certa idade sabem disso: no fundo continuam a ser jovens e sentem-se insultados pelo facto de serem tratados como velhos e como fardos, pois percebemos que os anos nos tornaram mais fortes e mais sagazes.

Os anos não são uma calamidade, a velhice é vigor.

E vigor tinha Dona Marcelina Russo bastante.

Até bem demais.

Eu era muito pequeno, um dia bateram à porta da nossa casa, e fui ver quem era.

Quem é? Sou o Sebastião da Amendoeira, venho visitar a tua Avó.

Então espere aqui um pouco se faz favor que eu vou dizer-lhe.

Não gostou da surpresa e pôs-se a resmungar, mau... mau... que será?

Manda-o entrar, eu recebo-o aqui no quintal debaixo da parreira, não sou de cerimónias, mas se tiver os pés sujos que os limpe bem, não quero as escadas sujas.

Eu regava as flores, perto deles enquanto os dois falavam e ao fim de algum tempo de conversa, vi o homem ajoelhado aos seus pés e de mãos postas, em seguida vejo-a levantar a sua bengala e dar-lhe duas ou três vezes com ela, apanhando-o por onde calhava e proferindo alguns palavrões e dizendo ponha-se já da minha casa para fora.

Eu acompanhei-o à porta da rua, muito queixoso do corpo, zangado e falando entre dente.

Este homem era mais novo talvez cerca de dez anos e em tempos atrás foram vizinhos, numa grande quinta onde a minha Avó morava e que na altura tinha arrendada.

Ele foi ter com ela com a intenção de lhe querer comprar o foro da quinta, o foro era um direito que se comprava, «noutros tempos» e quem tivesse terras anexadas com a dela tinha direito de opção, quando um dia houvesse uma possível venda da propriedade, ele ficava com esse direito « o foro » certamente iria compra-la por um preço muito mais baixo.

Claro que ela não era parva, mas ele era muito insistente e teimoso, usando até ficar de joelhos na sua frente, até que ela perdeu a paciência e foi violenta, com a sua famosa bengala justiceira, « era assim que lhe chamava ».

Mais tarde com ela mais calma, perguntei-lhe porque fez aquilo, Avó?

Sabes Zé, ele merecia até mais, é invejoso, chato, ganancioso e labioso demais, quando se ajoelhou descontrolei-me, e lá foi a bengala justiceira ter com ele.

É que ele funcionava sempre, como uma aranha que constrói a sua teia, muito paciente, muito paciente, sempre á espera de apanhar a sua presa.

Este homem vivia quase sempre só, as mulheres não queriam nada com ele, até as governantas da casa se despediam, ele pagava mal a toda a gente e era mau.

Há muitos anos que andava de olho na minha quinta, mas eu não a queria vender e ele insistia, insistia, é teimoso demais e eu já estava danada e nervosa, e zás, descontrolei-me.

Não há terras como estas, meu neto, já foram dos meus Pais, ali há de tudo só falta o sal e ìa contando pelos dedos à minha frente.

Temos oliveiras que nos dão muito azeite.

Temos sobreiros bastantes para a engorda de porcos.

Temos muitas árvores de frutos.

Temos terra de cultivo para trigo, cevada, aveia, favas, grãos, feijão, etc.

E o melhor ainda é ter água corrente dia e noite, onde se pode regar hortaliças.

É como te digo meu neto só não há o sal.

Mas tudo isto não aparece sem muito trabalho e eu com os meus empregados trabalhei muito mas o que mais gostava de fazer eram os queijos de ovelha e ordenhar as vacas.

Ó Avó porque é que aquele homem a tratou por Dona Barsabua?

É que o meu Pai chamava-se Belsebult e as pessoas aqui tendem em poupar nas palavras e chamavam-lhe Barsabu e a mim a Barsabua porque era filha.

Mas esse nome é tão estranho, não parece Português? Parece nome do Diabo.

Pois é meu neto, nem eu sei de onde é que veio, talvez seja de alguém que por aqui passou e ficou no Alentejo, houve tantas guerras e invasões estrangeiras, não sei donde vem este nome.

Se o homem que cá veio é rico, para que quer ele ainda mais, a sua quinta?

Boa pergunta, é que ele é ambicioso demais, e muita gente tem medo do poder dele, mas com os Russos ninguém manga, fica a saber e aprende esta lição para o futuro, tu também és um Russo.

Quando eu mais tarde comecei a trabalhar o meu patrão mandou-me montar dois reflectores numa carroça deste homem, porque em vez de reflectores na traseira, tinha colocado rolhas de cortiça pintadas de vermelho, sendo multado (claro esta) alem de forreta era ignorante.

Anos passados e já depois de minha Avó ter falecido, ouvi dobrar os sinos e comentava-se lá em casa sobre o que tinha acontecido, tinha aparecido morto o Sebastião da Amendoeira, com um tiro no pescoço,

Mais tarde foi encontrado sentado numa cadeira em frente à sua casa da quinta com a sua espingarda caçadeira, atada a uma perna com o cano junto ao pescoço e um pau na mão, possivelmente com que fez actuar o gatilho.

Só ao fim de alguns dias é que foi encontrado por um grupo de caçadores, devido ao chamamento do seu cão, que ia sempre ladrando e guiando os caçadores até ao local da tragédia, encontraram-no já estava coberto de moscas e bicharada.

Falava-se que o cão dele acompanhara a carroça com o morto até ao cemitério sempre atrás, até à cova e, em seguida ali permaneceu alguns dias deitado na sepultura, dia e noite.

Diziam que foi preciso o senhor Valentim, o coveiro, espanta-lo dali do cemitério por diversas vezes, até que desapareceu para sempre.

Minha Mãe dizia em casa, pondo as mãos erguidas para céu.

Deus perdoe a tua Avó pelas bengaladas que lhe deu e acrescentava, que o dinheiro pouco ou nada serve a certas pessoas, tão pobres de espírito. E acrescentava.

Este homem escolheu antes viver sempre só e entre espinhos, do que viver entre rosas e jasmins.

CONTINUAÇÃO

DA BENGALA JUSTICEIRA

O FOME NEGRA

Alem deste personagem ridículo, havia muitos outros, mas não quero deixar de escrever, sobre um que me intrigava muito pelo seu aspecto, usava sempre um velho capote preto e um chapéu muito gasto e roçado pelo tempo, também preto.

Certo dia ao cruzar-me com ele, acompanhado com um amigo de infância, ganhei coragem e perguntei-lhe.

O senhor não tem calor? Porquê? Gaiato atrevido. Ora...ora na querem lá verii.

É que anda sempre de capote e estando nós no verão com tanto calor, faz-me impressão vê-lo assim vestido.

Não meu menino, não tenho calor, fica sabendo uma coisa, o que tapa o frio também tapa o calor e lá foi continuando a sua marcha lenta ao sol junto ao muro da sua casa.

Este homem sempre o conheci velho, chamavam-lhe o Fome Negra, quem lhe pôs a alcunha, tinha acertado estava muito bem posta, nunca lhe conheci outro nome.

Minha Avó Marcelina, contava-me que ele todos os anos, no mês de Janeiro matava um ou dois porcos, para ter carne para o ano inteiro, como era normal algumas pessoas com posses fazerem.

Mas vivia só com um filho solteirão e um criada chamada Teresa, não dava vencimento a tanta carne durante todo o ano, sobejando-lhe bastante até à nova matança em Janeiro com carne mais fresca.

A carne que tinha a mais não dava a ninguém, deitava-a fora pela ribeira abaixo, que ficava por detrás da sua casa e que também ía passar mais abaixo à casa da minha Avó.

Era todos os anos a mesma coisa, os chouriços, morcelas e mantas de toucinho, tudo passava a boiar pela ribeira abaixo, ela ficava brava com a situação, era de um génio terrível, para quem desperdiça-se comida e não só.

De mãos postas olhava o céu e bradava: ‑ Ó meu Deus.

Tanta gente com fome e este somítico deita fora tão boa carne que ninguém aproveita, e... vê se ainda consegues apanhar aqueles molhos de chouriços, que ficaram ali presos nos arbustos e gritava para um criado: ‑ Ó Giraaaaldo: ‑ Vê se ainda os consegues apanhar.

Geraldo apanhava-os e levava-os para a sua casa, aproveitando-os, pois a água era corrente e muito limpa.

Não gostava nada daquele vizinho e ficou ainda com pior impressão dele, quando a sua criada apareceu em sua casa lavada em lágrimas a chorar bastante.

Que tens mulher? Que é que te aconteceu? Sabe lá a senhora...Fala mulher, desembucha. O meu patrão recebeu uma senhora ali à porta da casa dele, não a mandou entrar como é costume, era uma familiar dele, que trazia um filho ao colo e outro pela mão, pedia-lhe que a auxiliasse com algum dinheiro, dizendo que tinha os filhos com fome e que o seu marido tinha morrido de repente ficando viúva, mas que tragédia, meu Deus.

Eu ouvi tudo e fiquei comovida, chorei muito com pena dela e sabe o que ele lhe respondeu?

És ainda nova e tens com certeza aí entre as pernas uma boa coisa, por isso governante com ela, virando-lhe as costas e fechou-lhe a porta na cara, deixando a pobre a chorar agarrada as crianças.

Marcelina, ao ouvir Teresa, ficou tão brava e irritada, que agarrou na sua bengala e foi ter com ele muito nervosa, deu umas bengaladas na porta e ele veio atender, recebendo-a à porta.

Boa tarde, venho aqui defender a honra de uma pobre mulher desamparada e indefesa, viúva honrada e muito séria, que ainda por cima é da sua família, que o senhor tratou muito mal, devia ter um pouco de vergonha nessa cara de esfomeado, se não queria ajuda-la não a ajudava, mas não a ofendia na sua honra e dignidade.

O senhor não é um homem é um rato nojento.

Ele virou-lhe as costas, resmungando veja lá como é que fala? Ela levantou no ar a sua bengala e deu-lhe duas ou três bengaladas bem fortes nos costados, que ele até ficou aos ais.

Ai que me partistes as costelas! ‑ mas não partiram, só ficaram muito doridas.

Ela veio para a sua casa, muito nervosa e contente, por ter ido defender aquela pobre senhora.

Mais tarde, quando os dois se cruzavam na rua perto do largo da Fonte das Bicas onde moravam, o Fome Negra baixava a cabeça e olhava para o chão e minha Avó dizia-lhe com voz altiva, é triste um homem andar de cabeça baixa, será que andas a ver se achas no chão um pouco de humanidade?

Ou é a tua consciência que é tão pesada que te faz andar de cabeça baixa como os burros?

Eu ando de cabeça levantada, olha bem para mim, sou eu mais mulher num dedo que tu no corpo todo.

Ele, nada dizia. Tinha muito medo dela.

Mais tarde minha Avó veio a saber, por Teresa que tinha sido despedida e a razão do despedimento, mesmo trabalhando lá já há alguns anos.

Foi porque Teresa ao fazer a limpeza num quarto já sem uso há muito tempo, deitou fora um colchão já podre e cheio de percevejos, alguns dias depois ela disse-lhe que tinha de mandar comprar outro, ou mandar fazer um novo, nesse tempo eram feitos e cheios com palha de milho.

Só que ela não sabia era o que o colchão continha lá dentro, que era bastante dinheiro, muitas notas de contos de réis e mandou-o para a lixeira do Rossio. «aventou-o».

Ele ficou furioso, batendo-lhe ainda, em seguida andou pela lixeira à procura mas não o encontrou, ficando sem o dinheiro.

Mais tarde passado algum tempo passou a andar sempre triste, até que morreu.

De muitos contrastes se tece a vida, mesmo em algumas bonitas e ignoradas terras Alentejanas dos anos cinquenta.

Uns dias depois, minha avó estava com ar triste, de púcaro na mão encostada ao pial dos cântaros, e desabafava com a sua filha «minha mãe» sobre a morte daquele homem. Ó Vicência, este homem nunca enxergou ou «vislumbrou a verdade». Ele não sabia que desta vida, não se pode levar nada nem um grão de areia! Fica cá tudo! Ninguém é dono de nada. Nada é efectivamente nosso. Entregamos a outros tudo o que a vida nos emprestou, enquanto vivos mortais.

ZÉ RUSSO

CRÓNICA 018 - 2013 11 18 - Segunda-feira

Um povo sem história, não tem cultura nem identidade própria. Nós, portugueses de além do Tejo, temo-la.

Na estrada da vida temos sempre que encontrar um rumo para a percorrer, até chegar ao ponto onde queremos chegar, e falando em chegar, quando chegam os primeiros anos da nossa adolescência, vemos as coisas como elas são, depois, vemo-las como os homens querem que elas sejam.

Não há poder que possa destruir a imaginação e o pensamento, porque é a nossa mente em acção e ninguém a pode proibir, mas contra as acções daquele tempo, o regime vigente tudo podia, infelizmente.

Toda esta reflexão vem a propósito, para o que vou descrever por mim vivido há muito tempo, o qual vou agora soltar da minha memória.

Muito novo e órfão de pai tive que encarar a vida e começar a ser adulto, tinha que ajudar nas necessidades da casa, que eram muitas.

Certo dia logo cedo, partia de casa com uma alcofa com três ou quatro coelhos, atados nas patas para não fugirem.

Ía para o mercado da vila no alto da praça, quando descia a rua de Santa Maria, os meus amigos jogavam à bola.

-- Zé anda jogar à bola com a gente.

-- Não posso, tenho obrigações a fazer, já não tenho idade para brincar, preciso de ajudar a minha Mãe que. além de estar viúva, está doente.

Em frente ao Passo da vila ali depositei a alcofa no chão e esperei algum tempo, até vender os animais, juntamente com mais pessoas que também vinham vender galinhas, patos, etc.

Depois de os vender e fazer algum bom dinheiro, de alcofa vazia na mão observava um triste e terrível acontecimento, ficando marcado e chocado, com o facto que ocorria a poucos metros de mim.

Um senhor já com bastante idade, que morava num monte à saída de Borba, para Vila Viçosa, caminhava de um lado para o outro de braços erguidos, gritando: -- Cerejeira é uma serpente tem força na cauda e veneno nos dentes… A terra nos cria a terra nos come… Salazar está aqui atravessado na minha garganta… Jesus Cristo está dentro do meu coração… -- e batia com a mão no peito.

Era um pobre diabo «como diz o povo», e muito tolo, pois não media as consequências das suas palavras, nem o impacto que poderiam ter para o regime vigente, até eu, muito novo, sabia que ele não era muito normal.

Com a patrulha da guarda sempre ali por perto, foi logo abordado por ela. Sem qualquer explicação, ou qualquer advertência começaram a bater-lhe selvaticamente, por onde quer que fosse, até no chão lhe batiam já desmaiado, com a coronha da mauser que traziam sempre ao ombro.

Ficou a sangrar muito da boca! Todo ele era sangue, até que alguns populares muito indignados e revoltados, o levaram num carrinho de mão para o hospital onde esteve algum tempo muito mal.

Servidores sem crânio

Com miolos de serradura

Do povo oriundos

Para servir a ditadura

Linguagem perigosa

Violência grátis

Sangue derramado

Mentes revoltadas

Tudo ficou revoltado, mas lá diz o povo e tem toda a razão: «quem tem cú tem medo», e eu não fugi à regra, caminhei para junto de um senhor meu conhecido, o João dos Bolos, dono de um automóvel de praça ali estacionado.

Ele dizia-me: -- Não tenhas medo Zé, são uns merdas cobardolas.

Era um despertar em mim, com muito medo e espanto, que me fez acelerar o coração, mais parecendo rebentar no peito e clamasse por justiça de mãos fechadas, as unhas quase se cravavam na pele.

Entrei em casa muito triste, contei a minha mãe chorando, não sei se de raiva se de dor, de ver o sofrimento daquele pobre homem indefeso. Ela, muito calma, pegou nas minhas mãos acalmou-me e enxugou-me as lágrimas ao seu avental, em seguida acarinhou a minha cabeça junto do seu peito, passando a mão pelos meus cabelos, e dizia: -- Zé, meu filho, tens que ser forte e estar preparado para as injustiças do mundo, mas tens que ter sempre em atenção: «Esquece as horas más, mas nunca o que elas te ensinaram». Não fiques triste amanhã é outro dia… -- e mais não disse.

Um dos sentimentos que ninguém assume, é que gosta, ou pode tirar prazer com a vingança, mas todos têm vergonha de assumir, que desejaram e tiraram partido dela.

Muitas vezes o sentimento da vingança é desejar que seja feita justiça.

Não é politicamente correto confessá-lo, mas eu estou-me nas tintas.

Uma vingançazinha servida mesmo em prato frio deu-me um certo gozo, e foi o caso.

Mais tarde e já casado, passados cerca de vinte anos, estava na minha terra a beber um copo de vinho e a comer uns tordos fritos, na taberna do Tio Inácio Ramos, tio de minha mulher, apreciando também, a boa linguagem gestual do espingardeiro «mudo» com o tio Inácio.

Foi grande a coincidência, mas foi.

Entram dois sujeitos já de idade avançada… Eram os ditos guardas que bateram no senhor Paiva.

Cumprimentaram os presentes estendendo a mão. Quando me estenderam a mim também, a minha mão não obedeceu ao meu cérebro e ficou em baixo como paralisada. Nunca me tinha acontecido tal coisa. Com muita frieza minha, virei-me e fiquei onde estava antes, sem comentários.

Foi muito instintivo demais nem deu para pensar.

Os dois guardas, já reformados, na altura ficaram possessos e mudos, mais mudos que o próprio espingardeiro que era mesmo mudo, e saíram porta fora sem dizer mais nada.

O mudo olhava para mim com ar perplexo e desconfiado «pela minha acção».

Negar um cumprimento a uma ex-autoridade, não era normal.

Só mais tarde é que contei ao tio Inácio, o porquê da minha atitude.

Hoje não sei se o faria, tenho mais capacidade para perdoar que naquela altura.

Certamente estes dois «homens», que já morreram há muito tempo, nunca iriam imaginar o porquê da minha atitude.

Há quem tenha coração de pedra, e eu sei bem, mas o meu é de carne e sangra sempre quando há injustiças.

Para o meu querido neto

22 de Julho de 2013

ZÉ RUSSO

Lembrar aos nossos filhos e netos, relatar as maravilhas que vimos e os perigos que corremos, porque eles também nasceram e morrerão contando as suas histórias aos seus descendentes.

Não quero fazer do passado uma lição para o presente, mas apenas lembrá-lo. Nunca é demais recordar, que devemos viajar nos tempos atrás, para que não caia no esquecimento.

Devia-se entrar a saber o que aconteceu no passado, o que isso trouxe e o que pode reservar-nos o futuro.

O SENHOR PAIVA

Zé Russo

Vale de Milhaços, 2013 07 22

Dedico esta crónica ao meu neto Miguel e a todos os adolescentes, para que não entrem no mundo sem saberem o que aconteceu no passado.

CRÓNICA 017 - 2013 11 10 - Domingo

Claro que não.

Seria burro?

Este animal quando se lhe colocava em cima os cangalhos, com quatro quartas de água, ninguém o fazia andar, ficava estático, mas se lhe tirassem duas, ele caminhava, pois o peso era metade.

Digo isto porque, este que eu conheci, a que dava-mos o nome de Catambas, nome posto pelo meu querido amigo João Serrano, devido a haver na nossa rua um cigano com esse nome, que namorava a Dona Antónia «espanhola», e ser o único cigano a ser autorizado a viver em Borba.

Os burros são animais de má fama no sentido de inteligência, mas eu não concordo porque nem sempre está correto, existem humanos mais burros que os próprios burros.

CASTELO - RUA DE SANTA MARIA

O Burro Catambas

Os animais são nossos amigos, e quem assim não pensa, não é bom, nem é um verdadeiro Alentejano.

Também se alguém o tratasse mal ele reagia mordendo o malfeitor, e se a sua cama estivesse húmida de urina e suja já não se deitava passava toda a noite em pé.

Desde pequenino o Zé foi crescendo junto de muita variedade de animais, de todos gostava, excepto os porcos devido ao cheiro.

Como gostava muito de andar de burro, seu Pai montava-o nele, mas sempre em pêlo, e dava pequenos passeios rua abaixo, rua acima, muito vaidoso passeando o filho.

Mais tarde quando já andava na escola, assim que saía, chegava a casa, pendurava a sacola de sarapilheira, e lá ia ele para à cavalarice, montar-se no Catambas e ia dar-lhe água ao chafariz da vila, que ficava por detrás do lago junto á nossa bela fonte das bicas.

Seu Pai, para ele se poder montar nele, ensinou-o a ajoelhar-se, o que não foi fácil, de ensinar mas aprendeu, bastava o Zé bater lhe levemente nos joelhos e este obedecia logo, subindo assim mais facilmente para cima dele.

Nunca o Zé caiu do animal, pela calçada do Castelo subia e descia muitas vezes a trote, passando em seguida pelo posto da Policia de Viação e Transito, dando a curva na prise todo inclinado para o lado.

Era sorte naquele tempo não haver muito trânsito, os automóveis eram muito poucos.

Senão lá ia o Zé para o hospital.

O seu Catambas era muito acarinhado por ele e por vezes até demais, com peros, melões verdes e até torrões de açúcar.

Certo dia, ainda o sol não tinha nascido, já ele e o seu Pai, partiam para uma feira ali próximo, cerca de quatro quilómetros, em Vila Viçosa, levando uma vaca para vender, indo o Zé montado no burro.

´ Ao fim de algum tempo seu Pai vendeu a vaca, e em seguida foi com o comprador celebrar o negócio com um copito de vinho a uma taberna ali improvisada, a que nós chamamos baiuca.

-- Ó Zé, ficas aqui com o burro, não abales daqui, que teu Pai já vem.

-- Está bem!

-- Eu não me demoro… Toma lá a arreata… -- e deu-lhe a ponta da corda que liga ao cabresto para a sua pequenina mão de criança.

Ele ali ficou esperando, com a cordinha na mão de costas para o Catambas, e admirando o carrossel Araújo, subindo e descendo as montanhas, com as suas girafas e outros bichos, salpicados de muitas cores.

O tempo foi passando… Quando o seu Pai chegou, perguntou-lhe pelo burro, ele olha para trás com a cordinha na mão, ficou nervoso e a chorar.

-- Não sei Pai.

-- Roubaram-nos o burro e nem deste por isso, belo guarda me saíste tu! -- Ficando furioso.

Partiu correndo de pau na mão pela feira, até que encontrou o Catambas, já misturado com outros um pouco camuflado, mas como era branco e alto, foi mais fácil localizá-lo.

A confusão foi grande, quando o seu Pai dá uma grande sova num cigano com o pau que usava.

Os ciganos juntaram-se, tivemos sorte porque a guarda estava por perto, e interveio, tendo o cigano que roubara, sido mandado para o hospital com uma orelha deitada abaixo com uma paulada que sangrava bastante.

Meu Pai dizia para um outro cigano que se intrometera:

-- Não foi nada contigo… Desaparece da minha vista, senão ainda te espeto o pau pelo cu acima.

Seu coração deixou de bater demais, quando o Pai lhe deu o Catambas e lhe fez um nó na corda, onde o cigano a tinha cortado com uma navalha, e disse-lhe:

-- Ias a arranjando bonita ias! Belo guarda, belo guarda.

Já tudo calmo e de regresso a casa, seu Pai mangando com o filho meteu a mão na algibeira e falou que tinha perdido o dinheiro da venda da vaca… Ele acreditou e ficou triste.

-- Não meu filho, o dinheiro está aqui… E lá o animou dizendo:

-- Íamos perdendo o burro e se perdêssemos o dinheiro da vaca, era uma tragédia.

Os dois riam pelo caminho:

-- Sabes que eu tive medo foi de te deixar ali só, quando fui à cata dos ciganos, mas deles não tive medo, enquanto eu tivesse este pau na mão eles não me tocavam, não me ia abaixo, com esta corja de ladrões.

O pior foi quando em casa se soube e todos gozavam o Zé, dizendo para ele:

-- Qué do burro? -- Ele ficava bravo, não gostava nada, até alguns miúdos da sua idade ao saberem, o atacavam -- Qué do burro? Qué do burro?

Era motivo de chacota.

Mais tarde o seu Pai vendera o burro porque já estava velho e manco, foi para o jardim zoológico para alimento de leões, foi levado numa camioneta por um negociante que de tempos, em tempos passava pela loja do ferrador Zé da Pazinha e os comprava.

Era assim na época.

Hoje ainda alguém que se lembre do episódio, e lhe diz: -- Qué do burro?

O Zé ri-se e acha muita piada e gosta de ouvir e recordar os bons tempos de criança.

Corroios, 12 de Julho de 2013

ZÉ RUSSO

CRÓNICA 016 - 2013 10 11 - Sexta Feira

CASTELO RUA DE SANTA MARIA

O Senhor Pé-Chato

Homem solitário, simpático e de bom trato, mas o seu semblante, todo ele era de devoção e desengano, sempre triste e olhando o chão.

Vivia a meio da rua de Santa Maria muito pobre e com muitos filhos, mais tarde mudou-se para uma outra casa junto ao cemitério, talvez por ser uma casa maior, para tantos filhos.

Pela primeira vez na minha vida, e espero nunca ver mais ninguém como vi naquele dia, o meu vizinho Pé Chato.

Estava pendurado pelo pescoço (balançando) numa grande oliveira no terreno anexo à sua casa, mesmo pertinho do cemitério.

Foi terrível ver ali enforcado o Pai do meu amigo Zé, lá estava ele, vestido com o seu fato de macaco azul, que usava sempre, nunca o conheci com outra roupa.

Ali esteve algum tempo aos olhos dos curiosos, como eu e outros miúdos e alguns adultos, até virem as autoridades e o retirarem.

Só mais tarde vim a saber a causa de estar todo molhado junto aos órgãos genitais, que é normal e acontece aos enforcados.

Recordo-me de me fazer uns paus para jogar ao pau e corno e ensinar-me a jogar, a mim e ao seu filho, Zé ( brincadeiras antigas ) hoje, são os jogos de computador, a estragar a vista.

Ainda na nossa infância tomamos contacto real com a existência da morte, já na adolescência e confrontados com a morte de pessoas que nos são queridas, apercebemo-nos que um dia também vamos morrer.

Para que mereça a pena viver, é que o prazer seja sempre superior ao desejo de nos deixarmos afundar na angústia do sofrimento.

De sofrimento padecia este pobre homem com muitas dificuldades e problemas que o afectavam bastante, no seu dia-a-dia, desde o seu nascimento até à sua morte.

Muitas vezes a morte é a única saída, para as nossas próprias crises e dificuldades na vida e morrer depressa pode ser a libertação de muita monotonia e decadência, durante toda a vida.

Por vezes somos confrontados com dificuldades de varia ordem, que se morresse-mos mesmo acabavam-se todos os problemas.

A inevitabilidade biológica da morte é dos grandes segredos do aprender a viver.

Afinal, para se poder morrer basta estar vivo, a morte é uma constante da vida.

Quem nos dera, que assim como há arte para o saber, a houvesse também para ignorar, e que assim como há estudo, que nos ensina a lembrar, houvesse também quem nos ensinasse a esquecer.

Sim, e era de esquecer que este homem necessitava.

Somos compostos de uma infinidades de paixões diversas e entre elas a alegria, e a tristeza são as que se manifestam mais e as mais difíceis de ocultar.

Acho que é fácil de dizer, não o devia ter feito, mas por vezes o sofrimento obriga a tal situação.

Maioria das pessoas apenas existe, viver é coisa muito rara, que não esta ao alcance de toda a gente.

Lá dizia o meu avô «Quem esta dentro do convento é que sabe o que lá vai dentro».

ZÉ RUSSO

CRÓNICA 015 - 2013 10 11 - Sexta Feira

CASTELO RUA DE SANTA MARIA

O SENHOR GASPAR QUEIJINHO

Acredito que a maioria dos Borbenses da minha idade e não só, sintam por estas e outras pessoas o mesmo que eu, admiração e muita saudade..

Cada um de nos tem recordações de tempos passados, uns mais que outros, boas e até más.

Este meu amigo e bom vizinho, morava na entrada do castelo um pouco acima dos torreões do lado direito, de quem sobe, já perto do Beco da Torre.

Era uma bondade de pessoa e um excelente profissional.

Na sua pequena oficina, na praça ao lado da mercearia do senhor Inácio do Réla, era ali que arranjava maquinas de costura e bicicletas, trabalhando com ele também o seu filho António.

Sempre bem disposto e com muito sentido de humor, era um gosto conviver com ele.

Era ali que se reuniam algumas pessoas e cavaqueavam uns com os outros, como se fosse o jornal da vila, acontecimentos e novidades, mas por vezes alguns abusavam.

Certo dia um pedido meu foi bem aceite por ele e ensinou-me a andar de bicicleta, pois tinha algumas que alugava à hora a quem quisesse, nesse tempo maioria não tinha licença de condução.

Como era muito pequeno pedalava com a perna enfiada no quadro, pois não chegava a ter altura para me sentar no assento.

Este bom homem ajudava-me a fazer carrinhos em madeira de caixas vazias do peixe que pela praça abaixo embalava até à taberna do Chiquinho, mas nessa época as rodas não eram de rolamentos, mas de rodas de charrua.

Parava muito por ali um bom malandrote maldoso, que um dia molhou um trapo embebido em aguarrás e esfregou no rabinho de um gatinho amarelo do senhor Tóta, dono de um pequeno café ao lado da oficina.

Escusado será dizer, que o pobre animal sofreu muito, arrastando o traseiro e esfregando-se pelo chão, até que subiu a uma arvore, ali mais calmo, o Ti Gaspar com uma folha de alface, refrescava o rabinho do bichano.

A indignação dele e do dono do gato foi grande, dizendo para o maldoso homem se gostaria que lhe fizessem o mesmo a ele.

Conhecendo bem o malfeitor, tratou o senhor Gaspar de idealizar um plano para o tramar, e foi o que fez, pondo em prática o seu plano

Quase todos os dias ali colocava a sua bicicleta no sítio habitual encostada à parede da oficina, para dois dedos de conversa com os amigos, e em seguida passava sempre a pé com a bicicleta à mão até ao urinol da vila ali muito perto, para aliviar a bexiga dos muitos copos de vinho, já bebidos nas tabernas.

O Ti Gaspar Queijinho, se pensou melhor o fez. Zé, vais aqui pisar bem estas malaguetas que eu trouxe de casa neste almofariz, que são muito bravas, e eu lá fiz o que me pediu sem saber para que eram as malaguetas.

Com toda aquela massa ele untou os travões e o sítio onde ele havia de colocar as mãos no guiador da bicicleta, enquanto outros o entretinham afastado do local.

Em seguida, depois, como era costume, lá foi nas suas calmas, encostou o veículo à parede e entrou no urinol para se aliviar.

Quando agarrou com as mãos no «coiso» ficou a arder de dores, todos nós da porta da oficina aguardávamos o resultado, tudo ria até o dono do gato foi chamado para assistir, aquela parada de riso intenso, com muito gosto.

A dor devia ser grande e de muito ardor, porque corria de um lado para o outro, pulava e por fora das calças mexia no «coiso» com muita aflição e sem parar, até se curvava todo e torcia com dores.

Nunca mais por ali foi visto, desparecendo para sempre da oficina do Ti Gaspar.

Dizia o Ti Gaspar: Nunca faças mal às atenças que te venha bem, aprende Zéii, com o Ti Gaspar esta lição, que nós demos aquele marmanjo maldoso.

Contra as nossas acções nunca temos dúvidas, rimos e divertimo-nos, mas quando das acções dos outros, criticamos e ficamos bravos, é assim a vida.

ZÉ RUSSO

CRÓNICA 014 - 2013 10 05 - Sábado

CASTELO - RUA DE SANTA MARIA

O Senhor Machado

Todos estes nomes que tenho vindo a descrever, nesta e noutras crónicas, são uma pequena homenagem sincera, a todos os meus vizinhos, uns mais que outros, todos contribuíram para o meu crescimento, ajudando-me em variados aspectos.

Livre de mim qualquer outra intenção a não ser enaltecer a memória deles, já desaparecidos há muito da presença física, mas não da minha memória.

Na esquina da minha rua, morava o senhor Machado com a sua família.

Homem muito alto e um pouco curvado pelos anos, muito correto, respeitador e sensível com os pobres.

Era dono de uma mercearia na praça para onde eu fui trabalhar, quando saí da escola.

Meu Pai nesse tempo ainda vivo, pedira-lhe para eu ir para a loja para não andar a estragar as botas a jogar à bola.

Embora eu não gostasse daquela actividade, lá fui, nem ao balcão eu chegava, para aviar os fregueses de sabão, açúcar, etc.

Nesse tempo não havia supermercados e havia o livro de assentos, maioria pagava só no final da semana ou do mês, outros só depois da ceifa, ou da apanha da azeitona.

Mais tarde veio a extracção dos mármores e o nível de vida felizmente melhorou.

Hoje esta actividade está em decadência.

Houve um caso em que o senhor Machado, do pouco que ganhava, ainda deu a uma senhora que tinha o seu marido muito doente uma certa quantia para comprar uma galinha e deu-lhe um pacote de massa e outro de arroz, para ela lhe fazer uma canjinha, depois veio a morrer mais tarde.

A verdade seja dita, ensinou-me muito em todos os aspectos, lia e comentava comigo notícias variadas do País, através do jornal o século de que era agente.

Um dia comentou comigo, rindo-se muito: -- coloquei uma melancia no caldeiro do poço para refrescar e ficou-me lá dentro, não a amarrei bem…

Eu disse-lhe logo: -- eu vou lá buscá-la, deve estar fresquinha!

Assim fiz, ligou-me uma corda a cintura, como segurança e lá fui buscá-la ao fundo do poço.

Comi uma talhada estava óptima «naquele tempo não havia frigoríficos».

Entrava na loja uma amiga minha, morava ao lado da mercearia, eu gostava dela e de lhe adoçar a boca com bombons. Meu patrão certamente via, fechava os olhos, até talvez achasse graça devido ao facto da nossa amizade.

Aquela menina chamava-se 'Marianita'. Mais tarde já adulta, infelizmente, morreu electrocutada quando tomava banho.

Mas eu abusei com os chocolates e um dia dei-lhe uma tablete cara com uns mexicanos a tocar viola com grandes chapéus.

Depois da menina sair, chamou-me ao pé dele e deu-me uma grande lição de moral… não me mandou embora, mas eu fiquei muito envergonhado, fez-me ver o quanto eu estava errado, ao ponto de nesse mesmo dia andar triste e ao passar por um mendigo, olhar para ele e pensar: -- Se pudesse trocava com ele, pois anda a pedir e eu roubei um chocolate que nem para mim era! Foi uma lição de vida para sempre.

A rectidão de uma linha só se faz de uma forma, mas com dificuldade.

-- «A obliquidade de uma linha faz-se de muitos modos e é fácil de fazer…» -- ditado do meu Avô.

Nesta loja, aparecia ali, quase todos os dias, o velho Fomes, um senhor cego e de capote alentejano preto muito surrado do uso, ficava ali em pé, horas à porta, sabia a vida de toda a gente da vila e não só, mas o que mais me impressionava era ele vir a pé e voltar da sua casa, muito longe da vila, sendo cego.

Mas havia mais: era o senhor Avelino, que vendia jornais e fazia alguns recados e pequenos trabalhos na mercearia… era um homem muito pequeno, sem barba e de cara muito miúda, de olhos verdes, muito educado e boa pessoa.

Um dia, o senhor Avelino, teve que se ausentar do trabalho durante dias para ir a Lisboa.

O senhor Machado pediu-me para eu vender os jornais e eu aceitei logo.

Fui cumprindo assim a minha missão, a voz é que não ajudava nada.

Fui criticado e vaiado por alguns miúdos da minha idade.

Ao chegar a casa, minha Mãe, perguntou-me o que tinha:

-- Não tenho nada, estou cansado… -- problemas demais tinha ela, devido ao estado de alcoolismo do meu Pai.

Naquele tempo havia muito elitismo, quem era rico ou andasse a estudar não acompanhava com outros de condição social mais baixa.

Lembro-me perfeitamente de um meu ex-colega de escola que, por andar a estudar deixou de acompanhar comigo. Mal me falava. Era a realidade desse tempo.

-- Zé, conta à tua Mãe o que é que tens, assim não te posso ajudar… -- tanto insistiu, que eu contei-lhe tudo ao pormenor…

Minha Mãe foi muito clara.

Ria-se, isso é muito bom.

-- Tens uma grande virtude em ti… gostas de trabalhar, e qualquer coisa te serve. Fico muito feliz em seres assim… trabalho não é desonra nenhuma, roubar é que não. Vender jornais não te diminui, até pode ser uma experiência boa. Continua a tua vida normal, não ligues a provocações. Sei que não é fácil, mas tu és forte e muito melhor que eles. Olha-os sempre com igualdade e sem rancor… O tempo nos vai ensinando.

E é verdade, muitos não souberam estar na vida, perderam-se.

Com muitas diferenças de personalidade e pensamentos, não falando de certas coisas que não vêm ao caso.

Mais tarde deixei a mercearia e fui aprender a mecânico de automóveis na oficina do senhor Manuel Abelho, onde o meu irmão já trabalhava na altura.

Ali sim gostava de estar, embora não fosse remunerado, mas era assim naquela época.

Não quero terminar sem contar o que um sujeito muito alto e rico, fez ao senhor Avelino.

Chamou-o, armado em engraçadinho: --Anda cá ó Avelino... --Queria rir e fazer rir os seus comparsas do costume.

-- Que deseja?

-- És tão pequenino, que se eu te pedir para me dares lume para me acenderes o cigarro, não chegas cá acima…

-- Está enganado, homem muito alto… Eu vou dar-lhe lume… -- e subiu para uma cadeira na sua frente junto ao café, e deu-lhe duas bofetadas na cara com as suas pequeninas mãos… -- Aí, tens o lume…

O fanfarão nada pode fazer, teve que se aguentar com elas, ficava ainda mais mal visto se reagisse ao baixote, Avelino dos jornais.

ZÉ RUSSO

CRÓNICA 013 - 2013 09 17 - Terça Feira

RIR FAZ BEM À SAÚDE

Toda esta minha reflexão sobre o riso, vem a propósito desta figura da nossa terra, a que presto uma sentida homenagem em sua memória, e de algumas palavras de admiração que tinha por ele.

Pessoa sempre bem-disposta, com a resposta na ponta da língua, a sua alcunha era «Gato-cego», mas não se importava.

Era rara a vez que quando falava com ele, não me apetecia deixa-lo, ouvindo-o, pela sua boa conversação e pelas anedotas espontâneas, simples e rápidas e com muita piada, maioria delas pensadas no momento, quando terminava tinha um piscar de olhos anormal, os dois ao mesmo tempo.

Quando o interpelavam para falar com ele, mas no mau sentido, ele sabia-o bem.

Isto porque havia alguém sempre querendo gozar e rir-se à custa dele.

Nessa altura «virava-se o feitiço contra o feiticeiro», ditado popular.

Uma vez em frente ao café Avó, um idiota endinheirado chamou-o…Ele, educadamente, foi ter com ele.

‑ Diga se faz favor, que deseja da minha pessoa?

‑ Sabes que tu és a pessoa mais inteligente aqui de Borba! – e ria-se para os companheiros de ocasião, com ar depreciativo.

Ele muito calmo e com frieza, respondeu:

‑ Não. O senhor deve estar enganado, a pessoa mais inteligente aqui da vila é o senhor.

‑ Ai sim? !!! E porquê?

‑ É que o senhor consegue o impossível, que é meter uma camioneta «fargo» dentro de um pequeno automóvel 'wolksvagen'… ‑ Isto porque chamavam à sua mulher a «camioneta» por ser muito grande e forte.

O idiota não gostou da resposta e ainda teve uma atitude pouco digna, querendo bater-lhe… Valeram-lhe os presentes, que ficaram rindo do idiota, e não consentiram.

A dona de um estabelecimento, mulher apetitosa e elegante e com muita falta de um namorado, para o ouvir, diz-lhe:

‑ Como vai senhor Felizardo?

‑ Não vou lá muito bem…Passei mal a noite.

‑ Ai sim? Conte lá porquê… conte, conte.

‑ Não posso, não digo.

‑ Mas conte.

‑ Então cá vai.

‑ Sonhei que a senhora era uma melancia, e que eu estava a come-la.

Ela teve que se aguentar, ficando muito vermelha e sem palavras.

Ora toma lá que é para aprenderes «pensava para si».

Junto deste homem não havia tristezas, tudo ria, mas alguns que tinham má intenção, o seu sorriso era amargo. Outros não, esses riam de gosto

Certo dia andava ele a trabalhar, num olival perto da vila, isto das poucas vezes que trabalhava.

Descuidou-se com o tempo e quando deu por isso, já era quase noite.

Depois de engatar o animal a carroça e arrumar os utensílios de lavoura, pôs-se a caminho para a vila de repente parou a carroça e ficou a pensar:

‑ «alto lá». Então eu não tenho luz e já é de noite, não tenho outro sítio para ir para o meu destino, sem passar pela frente do posto da guarda… Certamente vou ser multado, pois esta lá, quase sempre, um guarda a porta de plantão.

Pensou rápido, e como era a descer a rua, engatou-se ele à carroça no sítio do animal, e colocou a besta presa atrás e veio rua abaixo fazendo de besta.

O guarda de serviço deu uns passos em frente e disse:

‑ Alto lá ó camarada. Mostre-me os documentos faz favor.

Resposta pronta e firme:

‑ Peça-os ao condutor que vem aí atrás, e continuou o seu caminho sem parar.

Não há bela sem senão, pois tinha um grande problema: bebia de mais, o que nesta terra era muito comum, principalmente há uns anos atrás, pois o vinho, além de ser de excelente qualidade, não havia mais onde passar o tempo, a não ser nas tabernas, pois era raro a rua que não tinha uma ou até duas.

Com muita pena minha e da grande maioria dos borbenses, morreu mais tarde já muito alcoolizado.

Mesmo já muito doente na sua cama deitado, disse para um amigo que o foi visitar:

‑ Está a chover tanto!

‑ Pois está, falou o amigo.

‑ Deus a engrosse!... ‑ e o seu amigo, perguntou-lhe: ‑ Porquê?

‑ É que se Deus a engrossasse, já não cabia pelo buraco do telhado… É que está a chover em cima da minha cama…

Sempre bem-humorado até morrer, observador atento e até mordaz, amante da vida e do vinho, divertido e a divertir os outros… Com uma personalidade franca e dizendo tudo o que podia dizer sem rodeios e sem medo.

Com todo o respeito que sempre tive por ele e em sentida homenagem, escrevi esta crónica.

ZÉ RUSSO

2013 07 05 – inserida em 2013 09 17

A cura é certa.

Rir é próprio do homem e rir com prazer é o melhor remédio.

Rir muito com grande intensidade pode fazer mal, pode mesmo chegar a matar: «morrer de rir», é outra citação popular que pode ter alguma verdade.

Diz o povo, que tem sempre razão, que «rir é o melhor remédio».

Rir de tudo é coisa de tolos, mas não rir de nada é coisa de estúpidos, «ditado popular».

Que bom é conversar sem objectivos concretos, ou seja conversar por conversar.

Conversar é um enorme prazer, conversar e recordar é ainda muito melhor.

Antes e durante a minha adolescência, quando saía de casa habituei-me a tratar todas as pessoas pelo seu nome, cumprimentando-as, convivendo e respeitando, dando assim um grande componente humano à terra que me viu nascer e crescer.

O Senhor Felizardo

Rir e conversar com esta grande personagem da nossa terra, era de enorme satisfação.

CRÓNICA 012 - 2013 07 16 - Terça Feira

CASTELO RUA DE SANTA MARIA

O Pé de Graal

Era assim que lhe chamavam, não lhe conheci outro nome, enquanto ali vivi.

Este bom homem vivia ao fundo da minha rua com a sua irmã, a Ti Maria do Lourenço.

Tinha um grande problema físico, tinha um pé com uma deficiência grave. Usava uma bota especial com uma sola muito alta e sem biqueira, devido a esse facto coxeava bastante e daí a sua alcunha.

Em virtude da sua condição, não podia trabalhar como outra pessoa normal, nem nunca casou, penso que fosse pela mesma causa, vivendo muito frustrado.

O seu trabalho era engraxar sapatos no alto da praça junto ao café do senhor João Rita.

Talvez devido ao seu desgosto e tristeza, afogava na bebida os seus problemas, e bebia até cair no chão “era de caixão à cova como diz o povo”.

O pouco que ganhava gastava tudo na bebida e em tabaco.

Sua irmã é que o ajudava e o tratava com muito carinho e dedicação.

Eu, um dia, ao vê-lo caído no chão, junto a uma árvore, na praça, perto do local onde engraxava, ao lado de uma taberna, tentei levantá-lo mas não consegui. Logo alguém me ajudou a colocá-lo em pé, mas não conseguia caminhar e caia novamente.

Fui pedir um carrinho de mão emprestado a uma loja ali próximo e com a ajuda de alguns populares que só faziam era rir, em vez de ajudar, lá o conseguimos colocar no carrinho de mão.

Com dificuldade lá o ia transportando devido ao peso e eu ser muito novo e com pouca força, para o efeito, mas, na subida junto aos torreões, na subida das portas do castelo, fui ajudado pelo senhor José, que tinha na esquina da rua uma padaria, era uma excelente pessoa: Dizia-me: ‑ Zé tu és muito pequeno para tanto peso, ‑ tirando-me o carrinho e levando-o ele na subida.

Ao chegar à casa dele ao fundo da rua de Santa Maria, é que foi o bom e o bonito! É que os degraus da entrada eram no sentido descendente, muitos e muito inclinados.

Mas com muito cuidado e ajuda da sua irmã, lá o conseguimos meter em casa sem o magoar.

O mais engraçado veio a seguir… A Ti Maria do Lourenço estava muito brava com o irmão… tirou da sua cabeça o lenço, ficando com os seus cabelos soltos, mais parecia uma bruxa, e começou a bater-lhe com o lenço, proferindo muitos palavrões:

‑ És um bêbado, desavergonhado… (mê bobedanas)… ‑ e cada vez lhe batia mais com o lenço. ‑ Ora toma, ora toma lá, que é para aprenderes.

Eu ria de gosto agarrado à barriga.

Claro que o lenço não o magoava nem era essa sua intenção, pois ela gostava muito do seu irmão, e eram a companhia amiga um do outro.

Era muito boa para ele e para toda a vizinhança.

Arranjei ali um grande amigo, e já quando era mais crescido, e deixei de usar botas e aos domingos calçava uns sapatinhos, ele sempre me queria engraxar sem pagar. Eu insistia, mas ele não me aceitava o dinheiro.

Com os dedos encardidos de pomada preta e o seu cigarro aos cantos da boca, fazia-me um carinho na cabeça e dizia: ‑ A Ti Vicência tem em sua casa um filho muito bacano… ‑ e olhava para mim, com aqueles olhos cheios de ternura e bondade.

Corroios, 30 de Junho de 2013

ZÉ RUSSO

CRÓNICA 011 - 2013 06 24 - Segunda Feira - Dia de São João

CASTELO - Rua de Santa Maria

POEMA

O odor dos corpos caminha pela rua exaltando, com andares trôpegos.

A antiga calçada do Castelo se abre na incontinência dos restos.

Na esquina da rua se improvisam umas goladas com pressa e susto.

O alvoroço na rua com o animal é um espectro de tristeza e pranto.

O sobrado da casa desaba sob a complacência de quem lhe espreita a queda.

A ruína é conquista que explode contra o pálido espanto da miséria.

Nos anos cinquenta, vivia, na minha rua, uma família que não era do gosto dos vizinhos.

O chefe da família não era nada asseado, usava umas botas onde os pés dançavam dentro delas, sem meias deitando cheiro e ao passar nas ruas cuspia para o chão.

Sua mulher era igual, não se lavava, os cabelos eram imundos e pendidos sobre a cara suja.

Junto à sua porta sentada numa cadeira catava os piolhos da cabeça dos filhos e matava-os com as unhas.

Talvez só se lavassem quando chovia.

Minha mãe avisava-me, não te quero por perto daquela família, ouviste bem?

Na esquina da rua junto à cabine do cinema, num recanto da mesma, ela ali parada olhava para os lados escondida, não sabendo que estava a ser vista por mim por detrás dos vidros da minha janela.

Colocava a garrafa do vinho à boca e consolava-se, escondendo em seguida a garrafa por baixo da sua roupa suja.

Bem bebida abria as pernas e fazia chichi em pé, encostada à porta da cabine do cinema e limpava-se à roupa, parece mentira, mas era a realidade.

Certo dia eu com mais outros miúdos, deixamos o jogo da bola, e fomos atraídos por uma grande discussão de família, no fundo da rua.

Nós escondemo-nos por detrás de um carrinho usado pelo Sr. Matias Seguro para transporte de mobílias e caixões.

A discussão era por causa do desaparecimento de uma morcela, possivelmente para o jantar, pois a fome era muita.

Os filhos e a mulher diziam não saber de nada, o marido gritava ou:

‑ o baile está armado!

A confusão era grande, a mulher já chorava, os gritos eram muitos.

Um dos filhos gritou: ‑ se calhar foi o gato que a comeu.

O pai deles, irritado, apanhou o gato, levantou-o no ar pelas patas traseiras e abriu-as com força, separando o animal em quase dois, e gritava olhando para o animal, donde nós víamos sair algum vapor.

‑ Aqui não está a morcela… Aqui não está porra nenhuma.

Nós ficamos aterrorizados com o acontecimento e revoltados.

Fugimos a sete pés, até às nossas casas não fosse o homem fazer-nos o mesmo.

Felizmente para todos os vizinhos, não moraram lá muito tempo.

Zé Russo

Corroios 15 de Junho de 2013

(Digitalizado pelo neto Miguel)

CRÓNICA 010 - 2013 06 24 - Segunda Feira - Dia de São João

Castelo-Rua de Santa Maria

O Senhor Lé-Lé

Não lhe conheci outro nome, todos o tratavam por Lé-Lé.

Este senhor era carpinteiro, vivia e trabalhava nesta rua.

Era uma figura muito interessante, e pobre como todos os moradores da rua.

Vivia só, mas sempre limpo e asseado, era um homem de poucas falas.

Minha Mãe quando amassava pão, por vezes fazia um pequeno pão com chouriço dentro, que eu lhe ia entregar quentinho, à carpintaria onde trabalhava no fabrico de caixões, na maioria em madeira de pinho.

Dizia para mim, tua mãe é uma santa mulher, eu estou-lhe muito grato, quando a encontrar lhe irei agradecer o quanto me tem ajudado.

Seu patrão era o senhor Matias Seguro, um bom homem e um excelente patrão para o Lé-Lé.

Acho que era uma pessoa triste, era raro vê-lo a rir.

Na carpintaria onde ele trabalhava, eu brincava com pequenos pedaços de madeira, fazia mesas e cadeiras em miniaturas, ensinado por ele sempre com muita paciência para mim.

Estes brinquedos eram para oferecer as minhas amiguinhas (coisas de criança)!

Certo dia apanhei um grande susto: a porta da oficina estava aberta! Como não via ninguém, sentei-me no portado da oficina… Ali estive algum tempo, até que resolvi dar uma volta pela casa e fui para onde estavam os caixões armazenados.

Qual foi o meu espanto, e encontrei o Lé-Lé dentro de um caixão deitado de costas e de mãos no peito.

Eu, assustado, gritei com medo e ia a fugir, quando ele acorda com o meu grito e também grita: ‑ Na tõ morto porra! ‑ …e chamava-me correndo atrás de mim e repetindo ‑ nã tõ morto porra! Nã tenhas medo, Zé. É que estava tanto calor que me apeteceu tirar uma sesta.

Em seguida enxugou-me as lágrimas com a fralda da sua camisa e abraçava-se a mim com muito carinho, e eu lá acalmei.

Alguns anos mais tarde, já eu era crescido quando ele morreu no hospital da vila, não sei de que doença.

Fui ao enterro. Tinha chovido muito nessa tarde.

Foi chocante para mim, vê-lo ali na urna do hospital na mesma posição em que eu o tinha visto anos atrás a dormir a sesta na oficina, mas desta vez estava mesmo morto.

E pensava para mim, tantos caixões que fabricava e vai para a terra embrulhado num lençol branco nem um caixãozito de pinho levou.

Seu corpo foi para a cova que já tinha bastante água por ter chovido muito.

Não me contive e correram-me grossas lágrimas, mas de dor e não de medo como tinha acontecido anos antes. ‑ POBRE LÉ-LÉ!

Todos os homens nascem iguais, e igual princípio os anima, os conserva, os debilita e os acaba.

Corroios, 14 de Junho de 2013 (Digitalizado em)

ZÉ RUSSO

(Inscrição à entrada do Cemitério de Borba)

«Detém, caminhante, teu passo

A humana condição chora

Olha-te bem neste espelho

Vê o que és e vai-te embora.

CRÓNICA 009 - 2013 06 15 - Terça Feira

Castelo - Rua de Santa Maria

Dona Melra

Na minha rua, mais ou menos a meio era a morada desta querida senhora adorada por todos.

A sua porta era toda enfeitada de vasos com flores, as ombreiras da sua porta e o portado era um asseio tremendo, tudo branco caiado com cal.

Era proibido por ela jogar à bola naquela zona e nós respeitava-mos muito aquela imposição dela.

À sua porta, enquanto costurava, cantava muito bem, por isso fazia-se ouvir pela rua toda, dava gosto ouvi-la em voz bem alta.

Depois de tantos anos ainda me recordo, da sua voz firme bonita e melodiosa, e de um verso que vou citar.

O meu amor é chaufer

Trabalha com gasolina

Quando passa à minha rua

O seu pópó toca a buzina

O marido da Dona Melra era o senhor Reinol, um grande homem e bom trabalhador, honesto e respeitado por todos os moradores da rua.

Tinha um pequeno senão era a bebida aos fins-de-semana e tratava mal a sua mulher, mas sem a bebida era uma paz de alma, tanto para ela como para toda a gente.

Sua mulher a Dona Melra nos três dias de Carnaval, todos os anos, vestia-se de mascara, cada dia de sua maneira, com roupas emprestadas e de cara tapada com uma meia.

Percorria a vila com um pau na mão, e quando encontrava o seu marido, descarregava nele umas boas bordoadas e fugia, a sete pés.

Quando o marido chegava a casa, queixava-se à mulher que um mascarado lhe batera imenso.

“ Ó mulher deram-me uma paulada nas costas que eu até fiquei a impar”

Ela nada dizia e ria-se sem ele dar por isso.

Durante os três dias de Carnaval ele andava sempre a apanhar com o pau, umas vezes com muita vontade, outras mais suaves com pena dele.

Todos os anos era o mesmo ritual.

Quando ele mais tarde deixou de beber, e já velhote, ela revelou-lhe o que fazia todos os anos. Ele não se zangou, até achou bem porque as merecia, e o ritual acabou.

Zé Russo

Corroios, 12 de Junho de 2013

CRÓNICA 008 - 2013 06 11 - Terça Feira

Castelo – Largo da Misericórdia

A capelinha das Almas

Num Domingo de manhã no mercado da Vila de Borba, apreciei um café com o respectivo brinhol, para matar saudades.

Em seguida ali ao lado fui visitar uma exposição de fotografias antigas, no celeiro da cultura, onde outrora em criança via descarregar e armazenar grandes quantidades de lã de ovelhas.

Adorei a exposição e é de louvar tão ilustre iniciativa.

Deixei o carro estacionado no largo da Misericórdia, ou largo do Hospital, precisamente no local, onde há muitos anos estava localizado a velha capelinha das almas (casa mortuária)

Ali parado alguns minutos, sentado no carro, pensava nas minhas brincadeiras de criança, naquele local.

Aquele território era-me muito familiar, e os meus neurónios libertaram do sótão da minha memória alguns episódios passados.

Este local, bem como outras ruas, estão cheias de verdadeiras histórias.

Faleceu no hospital uma senhora já idosa, que eu conhecia e tinha muita estimação, não só por ela, mas por todos os velhinhos.

A morte está sempre de sentinela, numa mão tem o relógio do tempo, na outra tem a foice fatal.

Todos caminhamos para o fim, semelhante aos rios que correm apressadamente para o mar, donde perdem a doçura e acabam.

Embora muito novo, mas com grande sentido humano, pelas pessoas de quem gostava e apreciava os seus valores, fui passar algum tempo no velório em sua memória na referida capelinha.

Entrei empurrando a porta e vi de um lado e de outro da urna, três pessoas de cada lado, todas vestidas de negro.

Todas já idosas. Cumprimentei todas e sentei-me na ponta de um banco corrido, perto dos pés da falecida.

No topo da capela um candeeiro de latão, muito luzidio com torcidas de pavio embebidas no azeite, iluminava a pequenina sala.

Ambiente silencioso, triste e macabro.

Neste pequeno espaço ainda conseguiram colocar uma braseira com picão (carvão miúdo, tirado dos fornos das padarias), para aquecer o ambiente frio daquele mês de inverno.

Embora ainda muito novo, apercebi-me que o ambiente não estava normal, mas pensei que fosse, do facto da casa ser tão pequena e talvez do corpo da falecida.

Após poucos minutos, cai no chão, perto de mim uma senhora já muito idosa, calculei logo o que seria (monóxido de carbono), pois tinha aprendido na escola, o seu efeito.

Eu corri e abri a porta ao máximo que pude, tirei a braseira para a rua, queimando ainda os dedos, mas não liguei muito ao facto, a minha preocupação era socorrer a senhora caída do banco quase aos meus pés.

Carreguei-a como pude, pois não pesava muito e transportei-a ao hospital ali ao lado, onde teve os primeiros socorros.

Em seguida o Sr. Enfermeiro Maltinha pediu-me para ir chamar o Sr. Dr. Verão, dizendo:

‑ Vai Zé, vai depressa, corre!

Este enfermeiro conhecia-me bem, curara-me em tempos muitas feridas na cabeça, devido a pedradas de outros miúdos.

O médico respondeu prontamente à chamada, talvez até já estivesse deitado.

Embrulhado no seu sobretudo, como era costume caminhava a meu lado muito rápido, e sempre aos pulinhos de careca ao léu, até ao hospital.

Homem muito humano, com grandes qualidades tanto de médico como de pessoa.

Conseguiu recuperar a senhora, enquanto eu esperava cá fora ao frio.

Quando saiu deu-me uma boa palmada nas costas dizendo:

‑ Salvaste de morrer, não só esta senhora, como também todas as outras que estavam com ela na casa mortuária. Morreriam todas como passarinhos (intoxicadas) menos a morta, claro está ‑ e ria-se para mim ‑ pois só se morre uma vez. Foste um verdadeiro herói, e nunca mais te vais esquecer desta noite, durante toda a tua vida… ‑ e é verdade hoje divulguei-a, pela primeira vez.

Toda ou quase toda a população, ficou a dever muito a este médico, principalmente aos mais desfavorecidos, não cobrava nada.

Bem hajas Dr. Armando Pessoa Verão, onde quer que estejas, fostes um grande exemplo de humanidade.

O tempo corre sempre em anos, meses, horas e para todos nós tem sempre o mesmo número de instantes, e cada instante, é um acontecimento ou uma mudança.

Lá diz o ditado, não há uma sem duas e falando daquela antiga capelinha, onde eu na ranhura da pedra onde dizia esmolas, colocava pedacinhos de vidro.

Veio-me á lembrança uma situação muito caricata.

Morreu também, no hospital, um doente, que não se lhe conhecia família.

O corpo foi colocado, como era hábito nesse tempo, na urna do hospital que só servia apenas para o transportar para o cemitério.

Antes ia para a referida capelinha mortuária, mas só lá tinha uma pessoa a velar o corpo durante parte da noite, um amigo talvez.

Este começou a dar-lhe o sono e foi-se embora, o morto certamente não iria fugir, com a porta entreaberta.

Pela noite dentro passaram, ali, dois boémios, que nesta terra é farta.

Um deles lembrou-se, de entrar e a bebedeira deu-lhe para brincar com o morto, o que não é justo, e condenável, mas as maldades normalmente não parecem mal a quem a produz.

Sentaram o defunto, meteram-lhe um chapéu na cabeça e uma velha viola, como se estivesse a tocar e foram-se embora.

Na manhã seguinte o empregado do hospital, que iria proceder ao enterro, ao entrar viu o morto sentado com a viola, começou a correr pela rua fora gritando.

‑ O morto está vivo, o morto está vivo… ‑a agitação foi grande de muito alarido, na vizinhança.

As autoridades ainda andaram a investigar, mas não passou dali; nada conseguiram descobrir. É que os bêbados dessa noite de final de semana eram muitos.

O mais curioso é que devido ao acontecimento, muitos curiosos apareceram no funeral, para ver o morto vivo, tendo tido um grande acompanhamento da capelinha até ao cemitério, situação que não era esperada, pelo facto de não ter ninguém de família e amigos.

Zé Russo

CRÓNICA 007 - 2013 05 12 - Domingo

‘SONS da Minha Terra’

Cântico das manhãs

Com pássaros da noite

De núbias madrugadas

Sons de outras mortes

Vão acordar as dores

Das minhas dores…

‑ Levanta-te, Cara Branca, ‘Mija na Cama’… Já é tarde! Não te chamo mais… ‘ra’istepartamnunca’… Josefina! Laidinha! Zein! Vou busca-los à cama com um pau… Que vida a minha! Que castigo para se levantarem!...

O som dos galos a cantar, antes do amanhecer, marcam a sua posição nas capoeiras.

O som dos pregões de um pobre velho, o Taró, grita sem poder nos cantos das ruas:

‑ Sardinhas a dos mérréis o quilo, ma banca do Silvino…

Noutra rua, o senhor Lopo apregoa cerejas e a seguir arremata dizendo:

‑ Se não as querem, como-as eu.

O som da voz rouca do senhor Avelino, vendedor de jornais, apregoava o ‘Século? E ‘As Modas e Bordados’… ‑ O Séééééculo… Mooooodas e Bordados…. – na hora de mais canícula, em que alguns dormiam a sesta…

O silêncio, dentro das casas era enorme. Só se ouvia a voz do homem dos jornais e o saltitar do canário, dentro da sua gaiola, na varanda…

O som do sino, no seu badalar, dando as horas, que muitos ouvem, sem ouvir, mesmo longe, muito longe!

Ao falar de sinos, veio-me à memória, uma história que o meu professor Serra contava… Muito calmo, em pé, à frente de todos nós, dizia que um português, emigrante na Argentina, tinha tantas saudades da sua terra e dos sons do sino da igreja, que mandou fazer lá diversos sinos, mas em nenhum obtinha o som igual, morrendo já velho e com esse grande desgosto de suadade…

Os sons dos cascos das mulas, que caminhavam pelas ruas com aquele ‘toc toc’ gracioso, tilintando com esquilas e guizeiras, ao pescoço…

O som da sineta da escola, chamava as crianças que corriam para as aulas, acabando o recreio…

O som do rouxinol cantava nas trepadeiras e o cuco acompanhava-o nas suas lindas melodias, que partilhavam ao ‘pôr-do-sol’. Era o melhor canto da passarada. Não há outro igual, tão belo.

O som do riso de uma criança, que viu uma nota da escola, melhor do que esperava, dá-lhe vida e segurança.

O som do som do silêncio, quando a vila dorme, num decampado alentejano…

O som de um instrumento, da banda da música da vila, é tocado por um músico, que treina, no interior da sua casa, os acordes de uma marcha, como um mar manso, cantando baixo…

O som das noites de Quintas e Domingos anunciava que há cinema com discos da Amália Rodrigues… Toda a vila ouvia o ‘Barco Negro’. O Som era bem alto. Muitos Borbenses o recordam…

O som da esperança, ‘Hino do Senhor Jesus dos Aflitos’, para todos nós, é o som mais nobre, que fica cá dentro e mexe com os nossos corações, sensibilizando-nos, quando é tocado pela nossa banda e cantado pelos acompanhantes, percorrendo as ruas da vila, ao entardecer, no mês de Agosto, onde ninguém fica indiferente.

O som da Fé, cantado em oração, canto suave e de amor nas gargantas vibrantes do povo…

O som da voz da minha vizinha, Adriana, a chamar os seus filhos para o trabalho e para a escola, ecoavam através da paredes do meu quarto:

O som do pingar da água da chuva sobre o telhado bate firme e faz escorrer a água, logo pela madrugada…

Os sons da Primavera foram anunciados pela chegada das andorinhas, que vieram com o tempo agreste e cinzento dos primeiros dias de Março, cantando nos beirais dos telhados e cabos de electricidade…

Explorando nos meus ouvidos, sons da minha infância, dedico-os, aos meus conterrâneos…

«Nos tristes lances da vida

Nas horas de perigo

Sois Vós, nossa guarida

O nosso melhor Amigo»

Olhos aguados, olhos de esperança, fascínios e mistérios… joelhos no chão… colchas às janelas… O Senhor, de roxo vestido… Crianças de branco, com velas na mão, é a luz da esperança.

O som que se adivinha nas orações, dentro da igreja, todos gera e aniquila, em cada minuto o que se passa… Tudo terno, doce, alado e calmo…

O som da injustiça é terrível e a Natureza não é só mãe do que que faz perfeito, mas também do que faz sofrer!

O som de um suspiro, que pode anunciar o fim de uma vida sem sol que, enfim, lhe começa a sorrir.

O som de um grito que a morte provocou é o pior dos sons… terrível… tenebroso…

O som murmurado por uma boca exaltada de amor, navega por dias melhores, sempre na esperança… esperando… esperando… até ao fim…

CRÓNICA 006 - 2013 05 01 - Terça-feira

‘O Amaral Gingão’ o Don Juan de Borba

Como em qualquer terra, há sempre um Don Juan, mulherengo e aventureiro. Sempre a puxar para a vaidade, vivia muito emproado, à custa dos pais, de ‘frases feitas’ para as mulheres e cabeça empastada de brilhantina, fumando ou assobiando, era a maneira de estar na vida, além de ser pescador e caçador – mas não era mentiroso!

De muitas namoradas que tinha, gostava muito da Alzira, embora ela fosse criada de uma senhora já idosa que vivia só. Os dois tinham encontros secretos.

Alzira recebia o seu namorado onde trabalhava, abrindo-lhe a porta das traseiras, quando a sua patroa se ausentava, para o chá, com as suas amigas ricas da vila.

Certo dia voltou mais cedo e lá vinha ela toda dobrada, cheia de peles ao pescoço, amparada com a sua bengala, com o cabo em prata.

Ao aperceber-se da chegada da sua patroa, Alzira ficou muito nervosa e encaminhou o Amaral, pela saída da porta principal, que dava para a Rua Marquês de Marialva que era a Rua de Évora, caminho que este não conhecia, pois sempre entrara e saíra, pela porta das traseiras.

Com muita pouca luz e quase às escuras, ele lá foi tacteando, de sapatos na mão, até perto da porta de saída. Uns metros antes, parou e ficou como uma estátua… Via, à sua frente, um grande vulto que, à primeira vista pensou ser verdadeiro, mas não era… Era uma armadura em chapa. Nem tudo o que parece, é; e o nosso homem lançou-se contra o grande boneco em chapa e ferro, agarrando-se a ele. Qual não foi o seu espanto, quando as suas mãos agarraram a chapa fria em ferro, ficando magoado com pequenos cortes.

O barulho foi enorme. O soldado, a armadura caiu no chão, despegando a cabeça do corpo.

Conseguiu abrir a porta e dar à sola, pela rua fora, com os calcanhares a bater no cu e o coração batendo acelerado…

Com o barulho a patroa gritava: ‑ Alziiiiiraaaaa, que barulho é este?

Ela muito nervosa, corria a ver o que se passara com a patroa atrás… ‑ Pobre soldado! Caíra em combate, sem ninguém lhe tocar – gritava Alzira muito nervosa. – Ter-se-á magoado muito? Até a cabeça lhe caíu! – e ria muito a marota.

O Amaral, quando regressava da caça, passava pela casa de um ex-camarada de caçadas e oferecia-lhe uma perdiz ou um coelho… Pintassilgo era o seu nome e tivera um acidente com a espingarda e ficara cego, por esta ter rebentado, perto da sua cara. Sua tristeza era grande. A maior parte do tempo, passava-o, na entrada da sua casa, de porta aberta, para ouvir os passarinhos a cantar.

Sua mulher, Teresa, era muito formosa, de fartos cabelos castanhos, lábios grossos, que deixava os homens com desejos pecaminosos.

O padeiro, Ti João, ao vê-la passar, a bandear as suas belas ancas, magicava: -- Pintassilgo, preso na gaiola e a sua ‘Pintassilga’ a arejar as penas!

O amaral Gingão começou por frequentar a casa do Pintassilgo, confortando-o bastante, conversando sobre caçadas e outros assuntos… Com tempo, começou a fazer o que melhor sabia, conquistar a mulher do amigo… A caçada começara, até que, aos poucos, consegiui…

Para entrar em casa era difícil; ele estava sempre sentado à entrada.

Teresa e Amaral combinaram encontros no quarto dos fundos. O Amaral, para entrar em casa, descalçava-se e passava, sorrateiramente, à frente do cego e ia ter com amulher dele, para o ‘bem-bom’; e assim aconteceu durante algum tempo, não se lembrando que os cegos têm mais tacto e ouvido…

Certo dia, ao passar pela frente dele, este manejou a bengala, com força na sua direcção, apanhando-o pelas pernas. Este deu um grito de dor e o cego Pintassilgo conheceu-lhe a voz.

‑ Bandido! Já te apanhei – exclamou – e logo tu que te fazias meu amigo! Devia ter vergonha. Não me bastava ser cego, senão também ser chifrudo… ‑ e chorava desconsolado!

Amaral foi-se embora, como se não se passasse nada. Não tinha pinga de remorsos, nem vergonha nenhuma.

Sua mulher ficou muito grata ao seu marido, por não a ter posto fora de casa, perdoando-a.

Ainda por cima, no dia dos anos, ofereceu-lhe uma pulseira em ouro e disse-lhe:

‑ Pensei muito. Há coisas piores na vida. É pior ser cego, do que ser ‘chifrudo’!

(O AMOR não se pode definir… E talvez seja esta a melhor definição.)

‑ Você acredita em Fantasmas???

‑ Nãaaaaao!

‑ Eu também não.

Na vila, na década de cinquenta, começou a aparecer, nalgumas ruas, um vulto todo vestido de branco, que se deslocava rapidamente, com uma corrente a arrojar pelo chão… Na vila, todos lhe chamavam o ‘MEDO’!

Fora visto, por diversas pessoas, quase sempre nas mesma ruas.

Era tema de conversas nas tabernas…

Os mais medrosos andavam muito preocupados… Os religiosos, até se benziam e comentavam – Isto são ‘Almas do outro mundo’… Outros falavam de ‘Espíritos de Pessoa Assassinada’ que vem revelar aos vivos, o crime de que foi objecto… Cada um dizia sua coisa.

Alguns mais cépticos riam e brincavam com a situação e até se juntaram alguns para patrulhar as ruas, de noite, mas, por alguns tempos, nada encontraram.

Mais tarde, fora visto, no cimo de uma rua, ao virar da esquina. Foram no seu encalço, mas, desapareceu de repente.

O Zé Pisco dizia não acreditar nada nessas patranhas de fantasmas, e que certamente era alguém de carne e osso, que não queria ser descoberto e passar despercebido, para ir ter com alguma amante…

‑ Eu vou tirar isto a limpo… ‑ e alguns dias, passou emboscado, sem dizer nada a ninguém, até que chegou uma noite e lá ia ele, rua acima, todo vestido de branco. Ficou um pouco arrepiado, mas viu para onde ele entrou. Entrara para a casa de uma senhora viúva, com cerca de quarenta anos, muito alegre… Alguns até a alcunhavam de ‘A Viúva Alegre’!

Veio para casa e contou, à sua mulher, em segredo, pedindo-lhe para não contar, mesmo a ninguém.

E assim foi. Não disseram nada.

O pior, foi quando a mulher do Zé Pisco, foi ter com a ‘Viúva Alegre’, a pedir satisfações.

A duas engalfinharam-se, à pancada, puxando-se os cabelos uma à outra e discutindo acaloradamente, por causa do mesmo homem que era amante das duas e chama-se, AMARAL / GINGÃO – O d. Juan de Borba!

(Nunca mais houve medos, nem fantasmas!)

Zé Russo

CRÓNICA 005 - 2013 04 23 - Terça-feira

Zé Cabeça Gorda o Contrabandista

Em Espanha, vivia-se muito pior que em Portugal. Guardas e contrabandistas guardavam mutuamente distância e respeito, embora, por vezes, bebessem juntos nas tabernas.

Qualquer deles tentava usar a máxima astúcia e inteligência: «Era o jogo do gato e do rato».

Os pobres guardas viviam tão pobres como eles. A sua origem também era rural.

Havia guardas-fiscais e carabineiros que não tinham amigos; outros lá iam fechando os olhos e repartindo o produto entre eles.

Vem esta pequena introdução para o que, a seguir, vou escrever sobre o ‘Grupo Alentejano do Zé CABEÇA GORDA’.

Por montes e vales carregavam muitos quilos às costas. Tinham de ter boas pernas e força física. Atravessavam o rio Guadiana, por vezes em locais com muita água, encobertos por vegetação, entre juncos e salgueiros, todos encharcados.

Já em território espanhol, dirigiam-se para o local da entrega, que nunca era o mesmo. Até, por vezes, utilizavam casebres abandonados.

A maioria dos produtos era café, azeite e carnes. Havia quem arriscasse mais e fazia transportes em carroças com suínos e outros animais; e para o lado de cá traziam certos tecidos, como bombazines e saragoças…

Zé Cabeça Gorda só fazia os transportes a pé com mais dois companheiros: um era o João Torto, o outro era um jovem, de nome Manuel, que me transmitiu, já há alguns anos, este acontecimento.

As suas roupas eram sempre escuras e as melhores noites eram as de lua nova.

Os receptadores espanhóis, por vezes, vinham receber a mercadoria, só em locais secretos, por ambas as partes, combinadas.

Ao chegarem a um desses sítios, usavam uma senha e uma contra-senha, para a aproximação, ou então, sinalização com panos de cor.

Cabeça Gorda fazia sempre a aproximação sem qualquer carregamento às costas, deixando os seus companheiros a alguma distância, escondidos.

Ao chegar já perto, gritavam os espanhóis: ‑ Quem vem lá faça alto! Diga a senha!

Este respondeu dizendo: ‑ Martelo.

Mas, a resposta não chegava, e o Zé Cabeça Gorda parou, desconfiado.

Em seguida, os espanhóis falaram que se tinham esquecido da contra-senha, que seria a palavra ‘marmita’.

Mas, como era muito valente e ia armado, foi ao encontro deles. Em seguida, combinaram a entrega e a quantia em dinheiro, mostrando eles um maço de notas… Como era de noite e com pouca luz, o dinheiro sempre na mão deles e a certa distância…

Em seguida, Zé Cabeça Gorda marchou, para ir buscar a mercadoria, até junto dos seus camaradas que o esperavam.

Ao chegar, desabafou com eles dizendo:

‑ Ó João, fiquei a modosque desconfiado com os espanhóis. Não sabiam a ‘contra-senha’ e estavam nervosos... Ainda por cima, um deles não era conhecido… Era gordo e barrigudo… mais parecia um porco para a matança…

‑ Será emboscada?

‑ Talvez nos queiram roubar o café – dizia João Torto.

Manuel não dizia nada. Era muito novo e não dava palpites.

João Torto alvitrou: ‑ E se nós enchêssemos os sacos, que aqui temos vazios, com terra. São iguais aos do café até cheiram a café… e “de noite, todos os gatos são pardos”…

Assim fizeram e lá foram até ao local onde os esperavam, fiacando o jovem Manuel de guarda ao café.

Depois da entrega, receberam o dinheiro, e caminharam o mais rápido possível…

Pararam junto do Manuel e contaram o dinheiro para o dividir… Ficaram muito surpresos! O maço de notas só tinha uma ou duas notas bem dobradas por fora. O Seu interior era papel da mesma medida das notas, presas com um elástico.

Zé Cabeça Gorda ficou danado, mas em seguida, ria-se imenso, até não poder mais.

‑ Queriam enganar-nos! …Eu bem desconfiei! Nós fomos enganados, mas eles também levaram terra em vez de café… Não gostei da cara daqueles marmanjos…

João Torto disse: ‑ Gostava de ser mosca, para os ver ‘com estes dois, que a terra há-de comer’ e virem terra, em vez de café…

‑ Vamos mas é esperar aqui, até virem os receptadores verdadeiros. Estes, certamente, vão acertar na ‘contra-senha’.

Algumas horas depois, vieram, e as trocas foram feitas, entregando o café e recebendo o dinheiro.

Contando o sucedido aos espanhóis, estes prometeram dar uma lição, ao traidor que revelou o sítio secreto.

Despediram-se: «Ladrão que rouba ladrão, tem cem anos de perdão!»

Zé Russo

A seguir à ‘Guerra Civil de Espanha’, durante os anos quarenta e cinquenta, foi a época mais propícia desta actividade.

Todas as populações conviviam pacificamente, de um lado e do outro da fronteira. Era uma actividade bastante lucrativa. Ganhavam pouco, mas, apesar de pouco, um dia correspondia a uma semana de trabalho.

Nas aldeias raianas, mais próximas de Espanha, muitos se dedicavam ao contrabando. Só o padre é que lá não ia, ou até ele lá ia.

Ser contrabandista não era ser herói ou bandido, era um modo de vida. Embora fosse delito, não era pecado. Era um facto socialmente e tolerado. A fome era o seu código de honra.

CRÓNICA 004 - 2013 04 14 - Domingo

Num fim-de-semana, no mês de Março, em passeio com dois amigos, quis que conhecem-se Borba e por lá andei, mostrando-lhes o que de melhor temos.

Em seguida, fomos almoçar a um restaurante e apreciar um bom assado de borrego, regado com um bom vinho da terra. Tudo maravilhoso.

Todos gostámos e fiquei muito satisfeito. Mandámos, em seguida, vir a sobremesa.

‑ Dois pudins ‘molotofy’, se faz favor…

Eu não quis.

‑ A minha melhor sobremesa são os elogios dos amigos – disse.

Eles riam bem-dispostos.

A nossa surpresa veio do empregado que nos disse:

‑ Não temos pudins ‘molotofy’ – estando nós a vê-los na vitrine, muito apetitosos e lourinhos.

Chamando a atenção para o facto, este disse que não estava enganado no pedido, mas não tinha ‘pudim molotofy’ mas sim ‘pudim reagantofy’.

Nós olhámos uns para os outros e rimos, de riso amarelo.

‑ Não tem problema algum. Traga lá essa coisa. Nós hoje, aqui no seu restaurante, somos todos republicanos.

O empregado, com ar sisudo, lá trouxe os dois pudins para os meus amigos.

Depois de uma óptima refeição, vieram os digestivos, uma boa ‘aguardente velha de Borba’, claro está.

E o tempo das anedotas veio logo a seguir, desvalorizando o nome dos pudins…

‑ Se calhar já sabem aquela tal… e por aí fora, iam surgindo…

‑ A verdade se diga, eu não tenho jeito nenhum para contar anedotas.

Íamos contando algumas e todos riamos bastante…

Quem ri é porque se sente bem… É próprio do homem…

Também se contaram algumas de alentejanos… Eu, como alentejano, até gosto de ouvir… Sou superior a todas essas piadas… Não me sinto incomodado sobre isso. Até porque os alentejanos só nascem no Alentejo, mas burros nascem em todo o lado.

Com uma candura muito própria, o meu amigo, falava para mim:

‑ Oh, Zé, se não percebeste esta, eu repito… ‑ e tudo ria bem-disposto…

Na mesa ao lado, um conterrâneo meu, com menos sentido de humor, levantou-se da mesa e com ar de indignado falou:

‑ Não percebo porque estão feitos alarves, com anedotas de alentejanos!... Nós cá na terra tratamos todos muito bem. Ainda há dias, um lisboeta apareceu lá numa festinha da freguesia e na barraca dos ‘Comes e Bebes’ perguntou – Também servem cachorros? – e eu respondi: ‑ nós aqui, servimos ‘toda a gente’…

Foi risota total, passando ele logo para a nossa mesa confraternizando connosco, contando também boas anedotas e bebendo ao nosso lado.

Foi um dia bem passado, num ambiente deliciosamente alentejano.

Vem ao caso, contar o que se passou, nesta época com o Presidente Reagan, lembrando o atentado à sua vida. Tinha sido alvejado a tiro no tórax perfurando-lhe um pulmão, quando saía do Hotel Hilton, em Washington.

Conduzido ao hospital e depois de observado, confirmou-se a necessidade da operação. Já duas equipas das mais famosas se apressavam e prontificavam a operar o Presidente, mas o director do pequeno hospital foi peremptório e insistiu que o Presidente fosse tratado como qualquer outro doente.

Um jovem médico, cirurgião de serviço, foi destacado para a operação.

Antes de começar o trabalho, Reagan falou para o cirurgião:

‑ Tenho que lhe fazer uma pergunta muito importante. O senhor é Democrata ou é Republicano? – O jovem cirurgião não hesitou na resposta: ‑ Senhor Presidente, hoje, neste hospital, somos todos Republicanos…

Gosto de comer e beber, viver com alegria, sem estar obcecado com a saúde.

As espectativas e os ângulos de observação que tenho quanto ao modo e maneira de ser das pessoas são interessantes.

Sempre que estou na minha terra, Borba, não me apetece ir embora. A minha vida parece parar no tempo.

Vem tudo isto a propósito do que irei escrever.

Quero com isto dizer que os somatórios de acontecimentos, alguns aparentemente insignificantes, têm uma certa graça e são a essência da vida. Transformar esses pequenos nadas em frases e fundamentalmente passá-las para o papel é um segredo de uma vida, que me satisfaz bastante.

A vida é feita de pequenos nadas, como canta Sérgio Godinho. Sem estes pequenos nadas, resta apenas deixar passar o tempo, acumular os anos e envelhecer sem gosto.

Almoço em Borba

‘Pudim Molotofy’ ou ‘Pudim Regantofy’?

Prossigo nos trilhos da memória e na revisitação do passado. Estávamos no início da década de oitenta. Estes e outros tempos que correm, são marcados pelo poder e pelo valor das aparências. Todos ou quase todos querem ser ou parecerem ser aquilo que não são de facto.

O Presidente foi tratado e bem, pelo jovem cirurgião, nesse longínquo dia trinta de Março de mil novecentos e oitenta e um. Também nós, nesta década, fomos bem servidos, no restaurante, com o ‘Pudim Reagantofy’ – ‘Todos éramos Republicanos'!

Zé Russo

CRÓNICA 003 - 2013 04 05 - Sexta Feira

A Preta sabia o caminho até à vila e vice-versa, melhor ainda, até à taberna do Zé da Pazinha, onde o Tio Sebastião bebia o seus copitos de vinho.

Atrás da égua seguia sempre a sua cadela castanha, de nome: “DERAM-MA”!

Fazia-se transportar, como era normal, na época, por uma besta. Era uma égua de cor preta e de pêlo muito bonito. O seu nome era a “PRETA”.

O Tio Sebastião, como qualquer outro bom alentejano da época, não era excepção… gostava muito de beber o seu copito de vinho e por vezes, mais que a conta…

Hoje faço por passar por ali e perco algum tempo olhando para o velho poço abandonado, onde eu tirava a água… olho as pedras que serviram de muro aos currais… piso alguns velhos tijolos que, há cerca de sessenta anos pisava com os meus pés em formação… Sinto uma grande nostalgia, difícil de explicar e entender… Tudo são ruínas!

Era ali que eu em pequeno brincava, na eira, no redil das ovelhas ou até a fugir à frente de um grande ganso, que me queria dar bicadas quando por perto me encontrava.

O Tio Sebastião Galhanas do monte de Santa Bárbara

Travessia do Lago da Fonte das Bicas

“Un Bom Vivant”

O ‘DIA DA PIDA’

Durante a década de quarenta e cinquenta, viveu no Monte de Santa Bárbara, muito perto da Ermida e a dois ou três quilómetros da Vila de Borba, o meu Tio Sebastião, casado com uma irmã mais velha da minha mãe, a minha Tia, Joana Russo.

Depois de montado a custo na Preta, o taberneiro dava uma palmadinha na anca e lá ia até ao Monte, de dia ou de noite, chovesse ou fizesse sol…

Ao chegar, escarvava com as patas da frente à porta, até vir a Ti Joana ajudar o seu marido a descer e, com os seus fortes braços, guiava-o até à cama, tirando-lhe as botas, ralhando com ele, com grandes reprimendas: ‑ Valha-me Santa Bárbara Bendita !!! … Em seguida guardava o animal na quadra e dava-lhe a paga do merecido esforço com uma guloseira…

Homem muito trabalhador, mas por vezes um pouco excêntrico, entrava pelo largo portão da taberna, montado na sua égua, até ao balcão, sem desmontar… Era servido pelo taberneiro, com uma bandeja na mão com dois copos de vinho.

Este meu tio tinha coisas interessantes… Em todos os anos tinha um dia especial: havia o dia de beber… e pagava a todos os presentes, na taberna e a quem passasse em redor… Se a vida não lhe corria de feição, aproveitava para comemorar o dia do riso, contrariando a tristeza… Desatava a rir e tudo ria à sua volta tanto de o verem a ele rir, como das anedotas que contava…

Certo dia, depois de ter sido assaltado pelo caminho, chegou à taberna e disse:

‑ Hoje é o ‘Dia de Dar’ – e deu tudo o que tinha, chegando em ceroulas à sua casa, montado em pêlo na Preta…

Certo dia, na taberna do Zé da Pazinha, ficou muito incomodado com um fanfarrão que só tinha dinheiro e pouco mais… Cabeça não tinha muita, pensando ser muito esperto. Sabendo que o Tio Sebastião não sabia nadar, aramado em vivaço, quis apostar com ele, na gozação…

‑ Aposto contigo que não és capaz de atravessar o ‘lago’! – não especificando como.

‑ Apostado!

E disse:

‑ Trezentos mil reis. Acordado?

‑ Sim.

‑ Aqui o Zé da Pazinha fica com o dinheiro em depósito e ainda por cima, aposto que, antes de o atravessar, vou comer uma dúzia de ovos estrelados… ‑ Assim disse e assim o fez.

Depois de comer, montou a sua égua, indo até ao lago, por detrás da Fonte das Bicas. Pelo caminho, atrás dele, iam muitos curiosos para ver o que acontecia… Todos pensavam que ele se descia do animal para atravessar o lago a nado…

A entrada do lago, antigamente, era mais rampada e de terra batida. Hoje é calcetada.

Montado na égua Preta, atravessou o lago, não uma vez, mas duas, sem cair, nadando nas partes mais fundas, saindo calmamente, por onde tinha entrado.

Tudo batia palmas e gritava: Grande Homem!

Ganhou assim a aposta ao fanfarrão e falou em seguida a todos, de cima do animal, todo molhado até à cintura: ‑ Não quero o dinheiro da aposta… vai ser distribuído pelos pobres, no próximo sábado, ‘DIA DA PIDA’. Para quem não saiba, o ‘Dia da Pida’ era o dia em que todos os pobres mais necessitados, pediam esmolas, às portas de quem podia dar alguma coisa.

A taberna do Zé da Pazinha, no sábado seguinte, encheu-se de gente. O dinheiro foi entregue e repartido.

Com quase toda a certeza, em Borba, e certamente até aos dias de hoje, não houve mais ninguém que tivesse o atrevimento de atravessar o lago, em cima de um equídeo, a não ser este ‘Bom Homem’, muito corajoso, esperto e amigo de dar…

Bem hajas, meu Tio

Onde quer que estejas

Nunca me esquecerei

De ti:

Zé Russo

CRÓNICA 002 - 2013 04 02 - Terça Feira

O Velho Alentejano perdido na cidade…

(A Terceira Idade!?)

Actualmente vive-se mais tempo. Espanta-me por isso que, em vez de permanecermos jovens até mais tarde, nos tornemos ou nos tornem velhos cada vez mais cedo.

Ventos contrários empurram e derrubam os velhos…

Quem é que se importa hoje com a sabedoria dos mais velhos?

Ninguém sabe, e ainda bem, o que o futuro nos reserva…

Ninguém sabe quando chegará a sua vez de partir sozinho…

Todos nascemos e morremos sós…

Pouco a pouco, ou quase de repente, descobrimos que somos velhos… também eu caminharei com passos incertos e desiguais, um dia… quem sabe…

Todos caminhamos na roda do tempo a passos largos e clandestinos para o ‘universo social’ onde nos vão chamando ‘idosos’, ‘terceira idade’, ‘seniores’…

Estávamos na véspera de Natal. A azáfama nas ruas era muita e embora Almada, onde há tantos Alentejanos, não seja muito grande, as pessoas faziam compras, como eu.

Estávamos na década de noventa…

No meio da confusão, um senhor, com talvez mais de oitenta anos, ao cruzar-se comigo, chamou-me educadamente:

-- Desculpe… É que eu não sei onde estou… Vim passar o Natal a casa do meu filho e agora estou perdido, não dou com a casa dele…

Ajeitando uma plisse de gola de raposa pelos ombros, acrescentou que saiu à rua para apanhar ar, farto de estar fechado em casa…

-- Sabe o nome da rua onde mora o seu filho? Sabe o número da porta?

-- Não, não sei. O meu filho trabalha num banco e, a esta hora, deve estar no trabalho.

-- Qual é o banco em que trabalha, sabe?

-- Não, não sei o nome… Lá na terra só há um. Só sei que é muito longe… ele tem que ir de carro e leva a minha nora.

Larguei os meus afazeres e andei horas, de carro, para um lado e para outro a procurar indícios ou da rua onde morava o filho, mas nada. Já cansados de tanto procurar, disse para o velho senhor:

-- Vamos mas é parar e beber ou comer alguma coisa… também deve estar com fome.

Entrámos num café:

-- Então, o que quer tomar?

-- Bebo um copo de vinho, mas comer não quero. Tenho aqui um bolo no bolso, que não me apeteceu comer quando tomei o pequeno-almoço com o meu filho…

Fomos conversando e ele desabafou, dizendo:

-- Leve-me, mas é para a minha aldeia… aí é que eu conheço tudo… e me sinto bem…

Eu sorri e tentava uma solução… -- …que é que hei-de fazer, para saber onde mora o filho deste senhor?

Ele ia falando muito certo e sem pânico… muito mais calmo do que eu…

-- É na minha aldeia que gosto de viver, onde ainda se canta e se assobia… todos nos conhecemos… e falamos… até podemos gritar para espantar a solidão… gosto de ver o voo das cegonhas e de as ver pousar nos seus ninhos, em liberdade… não gosto de gaiolas… Tomara que passe o Natal, para me poder ir embora daqui…

Eu, sem querer, ao vê-lo levar o bolo à boca, olhei para o papel que o embrulhava, e verifiquei o nome da pastelaria. Como tinha dito que tomara o pequeno-almoço com o filho, deduzi que seria perto da sua casa, fui logo lá direito… ainda era um pouco longe.

Já na pastelaria, perguntei se conheciam o filho daquele senhor, mas ninguém sabia…

Já na rua, pronto a desistir mais uma vez, o senhor voltou-se para mim com grande alegria:

-- Já sei onde estou. A casa do meu filho é ali, ao pé daquela fotografia cravada na parede…

Era um painel publicitário de um partido político.

Descansei enfim, quando o vi meter a chave na porta de um primeiro andar, num prédio daquela rua e despediu-se:

-- Tu és muito porreiro! És alentejano?

-- Sou e com muito orgulho!

Apertámos as mãos e despedi-me: -- Tem que ter mais cuidado… -- e parti com a consciência tranquila.

Amanhã, quem sabe, serei eu a andar perdido, sem saber onde fica a minha casa, o lar, ou a instituição, ou o ‘depósito de velhos’… Nunca se sabe o dia de amanhã…

Passados tantos anos, dei comigo a pensar. – Que seria daquele bom homem e dos seus sonhos de liberdade na sua aldeia… Certamente já não andará pela sua aldeia para ver e admirar o voo das cegonhas…

Zé Russo

CRÓNICA 001 - 2013 03 26

O PILHA GALINHAS

Na horta do Ti João da Quinta as galinhas foram perturbadas no seu sono por um amigo do alheio. A Ti Mafalda punha as mãos e olhava para o céu: ‑ Valha-me Deus Nosso Senhor… estavam todas a pôr… tão gordas e desenxovalhadas… era uma alegria vê-las tão lindas…O Ti João ficou furioso, embora muito calmo e sempre bem-disposto; já muito curvado pelo peso anos, dizia para em si, em voz baixa: ‑ Quem seria o safardanas?! Se o apanhasse a roubar, dava-lhe uma boa sova.

Seu vizinho e amigo, Pedro Farelo, ao saber, foi logo ter com o Ti João, para ver melhor o que se passava… Foram ao galinheiro… estava tudo intacto… nada estava estragado… Mas chamou-lhes a atenção as pegadas ali existentes na lama. Faltavam umas galinhas…

-- Esquisito! Quem poderia ter sido!?

Já voltavam, o Farelo chamou a atenção do Ti João: - Olha aqui estas pegadas na lama… Quem aqui veio, veio descalço, talvez para não fazer barulho, por causa dos cães, mas repara… Pedro, quem aqui esteve tinha só quatro dedos no pé… e é no pé direito. Quem será o marau?

Combinaram investigar pelas tabernas. Iam perguntando a um e a outro… quem poderia não ter o dedo grande do pé direito… Era difícil, pois tudo andava calçado!

O dono duma outra taberna, ao ouvir a conversa, disse para o Ti João.

– O Zé Pisco é que não tem um dedo no pé… um dia, ouvi falar nisso… Parece que o perdeu, quando andava de ajuda na caça e ficou a tomar conta da espingarda do caçador…

O Zé Pisco, de facto, não tinha um dedo no pé direito… o dedo grande… Certo dia, dera um tiro sem querer no seu próprio pé, quando transportava uma espingarda e esta se disparou sozinha… Este homem foi, durante uns tempos, mochileiro de alguns caçadores mais endinheirados. Era ele quem carregava os pesos e também fazia de batedor em caçadas.

Demorou algum tempo a ficar bom do pé, daí que muitas pessoas sabiam o que tinha acontecido devido a ter andado por ali a coxear…

Gostava pouco de trabalhar… fazia pequenos trabalhos… também alguns recados a uns aqui, uns avios a outros, além… era uma espécie de ‘estafeta’ de pequenos mandados… além de engraxar sapatos aos Domingos.

Dois dias após o roubo era Domingo e dia de mercado na vila. Combinaram os dois amigos ir até ao mercado para ver se viam as galinhas e o tal Zé Pisco. Pedro Farelo levou com ele um cacete ferrado na ponta, não fosse precisar dele para qualquer emergência.

Dona Mafalda também queria ir, por conhecer bem as suas galinhas, mas o Ti João não achou bem. Não seria boa política meter saias naquele assunto de galináceos e podia dar para o torto. Nunca se sabe!

Lá foram os dois amigos até ao mercado, vendo os mercadores que por ali estavam e, não foi preciso muito tempo… Viram logo o Zé Pisco atrás de uns cestos de canas, improvisados, com galinhas… Conheceram-nas logo.

Aproximaram-se, e o Ti João, acompanhado do Pedro Farelo, disse para o Pisco:

-- Olha lá, ó Zé Pisco, és um ladrão pouco esperto… Quando roubares galinhas, não deixes lá ficar a tua marca… Se tivesses ido calçado, eu não sabia ainda que tinhas sido tu… Tornaste a dar outro tiro no pé, mas desta vez sem sangue… Agora, vais lá coloca-las no mesmo sítio, onde estavam, e é já… Já basta de chatices.

Este fez-se de novas, disfarçando, como se não esperasse… tentou mostrar-se perplexo… mas cheio de medo… e nada dizia, de olhos cravados no chão…

Pedro Farelo colocou-lhe o pau, que trazia, em cima do ombro, dizendo:

-- Ou fazes o que o Ti João mandou, ou levas umas lambadas, ou meto-te o pau pelo cu acima…

O Pisco ficou a tremer, ainda com mais medo…

Ti João interveio: -- Não é preciso… ele será bem-mandado… Ou então dou-lhe a escolher: ou vou lá em cima à ‘Guarda’ e vais preso, ou vais ficar com uma alcunha da qual nunca mais te livras… Que preferes?

-- Guarda, não senhor, Ti João… guarda nããããão.

-- Então vou-te pôr uma alcunha…

O Zé Pisco logo se prontificou a levar as galinhas e foi colocá-las no mesmo sítio.

Dona Mafalda ficou toda feliz por voltar a ver os seus bichinhos, dando-lhe logo comida. De tão feliz que estava nem ralhou com o ladrão e só dizia:

-- “Gato escondido com o rabo de fora…”

O tempo foi passando e a estória ficou a ser conhecida… Pedro Farelo contava o sucedido de taberna em taberna e o Pisco, lá ficou conhecido por «O Pilha Galinhas», até que se foi embora da vila, para outro concelho, pois ninguém o contratava para fazer nada e andava por ali envergonhado… Até os miúdos, ao passar por ele, gritavam: ~

-- «Olha o Pilha Galinhas… Olha o pilha Galinhas…»

Zé Russo