02 - Aromas do Alentejo

«Aqui há muito quem coma ervas do campo. Éramos obrigadas a comê-las: Cardos, Alabaças, Acelgas, Beldroegas, Espargos, Saramagos, Cardinhos, Orégãos, Poejos, Coentros e outras coisas mais.»

AROMAS DO ALENTEJO

Lugar de amplas planícies de trigo e de sol, vinho e paz, ervas aromáticas e solidão, o Alentejo é também uma região única onde os seus recursos são aproveitados com admirável imaginação na arte de bem comer.

A mesa desta região tem características bem definidas e muito originais porque ela é forte, variada e perfumada. É a amais autêntica das cozinhas portuguesas e aquela que talvez melhor se coadune com o verdadeiro carácter do nosso povo, podendo mesmo dizer-se que é viril.

Vivendo numa zona interior do país, o alentejano encontrou na fauna e flora existentes um espaço de criatividade que o ajudou a sobreviver perante dificílimas condições de vida. Ao longo do tempo foi-se criando uma singular e riquíssima cozinha fortemente marcada pelas suas particularidades específicas, note-se a grande sazonalidade dos produtos, o isolamento, o clima e o modo de vida característico das suas gentes. “A mágica da cozinha alentejana encontra expressão de como, com produtos simples e pobres, elaborar pratos onde o gosto e prazer de comer constituem efectivos actos de cultura”.

Foi à volta dos cereais que se desenvolveu muito da cultura alentejana, tornando-se o princi- pal modo de vida das suas gentes, não só no trabalho diário dos campos, mas também no seu sustento. O pão é um elemento fundamental da alimentação do alentejano, não é apenas um acompanhamento da refeição, ele é um ingrediente indispensável na maior parte dos pratos, açordas, gaspachos, migas, ensopados, sopas, caldos e até mesmo na doçaria. Elaborado com os mais simples ingredientes – trigo, fermento, água e sal – chegou a ser, para as camadas menos favorecidas, a própria refeição, juntando-lhe apenas um punhado de azeitonas ou um naco de toucinho.

A este mesmo pão juntaram-se as mais diversas “coisas”, tudo o que a natureza dá e a imaginação pode conceber. É nos fortes aromas que assenta a mais importante característica desta cozinha que lhe confere especial graça. Quem não se lembra do cheiro a hortelã na “Sopa da Panela”, dos coentros na “Açorda de Bacalhau” ou ainda da carne frita nas Migas? Acontecia, também, que as ervas apanhadas pelos campos eram muitas vezes usadas para disfarçar a pobreza de uma refeição. Repare-se neste texto de Ana Isabel Nabais, 47 anos, operária agrícola, natural de Montes Juntos, Alandroal (do livro Os Comeres dos Ganhões, de Anibal Falcato Alves). “Aqui há muito quem coma ervas do campo. Éramos obrigadas a comê-las: Cardos, Alabaças, Acelgas, Beldroegas, Espargos, Saramagos, Cardinhos, Orégãos, Poejos, Coentros e outras coisas mais. As beldroegas são comidas no Verão, as alabaças e as acelgas são comidas no Inverno e na Primavera, os cardos a mesma coisa. São tudo ervas que aparecem nas alturas de crise, quando nos campos não há trabalho. Por isso as pessoas são obrigadas a deitar a mão a essas coisas, porque, nessas alturas, não há dinheiro para se comprar coisa nenhuma. Então, temos que ir apanhar ervas para comer”.

Em lugar de destaque estão também as azeitonas, elas têm um importante papel não só no acompanhamento dos pratos, principalmente do pão, como no azeite que torna tudo muito mais saboroso. Transcrevem-se aqui dois testemunhos que vêm confirmar a importância das azeitonas na alimentação alentejana. “A gente chegava de manhã, antes de nascer o sol, ao trabalho. Comia-se ali um bocadinho de pão com azeitonas e era só às vezes, quando era. Quando não as havia, era só o bocadinho de pão. Era só pão seco”. “Nas grandes casas de lavoura, havia a cozinha da ganharia onde se faziam, por vezes, açordas individuais, sendo distribuído a cada uma um pequeno dedal de azeite. Alguns trabalhadores exigiam que, na açorda de segunda-feira, lhe deitassem o azeite a que tinham direito até sábado. O resto da semana comiam, mesmo, só pão e água com o tempero do alho e dos coentros. Sabendo tirar o máximo proveito da riqueza dos seus recursos e ao mesmo tempo sabendo compensar com extraordinária habilidade as suas limitações, o alentejano criou, sem dúvida alguma, uma cozinha impar, nutritiva e surpreendentemente saborosa.

Texto de Elvira Torgal publicado na primeira revista da Alma Alentejana.

OS COMERES DOS GANHÕES

MEMÓRIA DE OUTROS SABORES

ANÍBAL FALCATO ALVES

ANÍBAL FALCATO ALVES