09-Entrevistas

Entrevista a Manuel Francisco Ramalho Mira,

natural de Perolivas, concelho de Reguengos de Monsaraz

Após contactos com Manuel Francisco Ramalho Mira e tomarmos conhecimento da sua história de vida, decidimos com seu consentimento entrevista-lo para através do nosso Blogue contá-la aos seus visitantes.

Manuel Francisco Ramalho Mira

Nasceu em 31 de Dezembro de 1944 em Perolivas, concelho de Reguengos de Monsaraz

J.A. Gostaria então que nos contasse um pouco da sua história de vida!

M.M. Vivi pouco tempo com meus pais pois como minha avó residia perto e tinham algumas dificuldades, dos dois aos seis anos vivi praticamente em sua casa.

J.A. Começou então com algumas dificuldades!

M.M. Com cerca de seis anos, devido ao pouco rendimento de minha Avó comecei, para a ajudar a guardar porcos ganhando algum dinheiro, pelo menos para a alimentação.

Mais tarde, já com sete anos, após a morte de meu Avô e por problemas familiares, minha mãe passou a viver sozinha passando eu então a viver novamente em sua casa.

J.A. Começou cedo a assumir responsabilidades que com a sua idade não viria muito a propósito!

M.M. Para que ela pudesse viver com melhores condições continuei a trabalhar, guardando um rebanho de ovelhas cujo dono por conhecimento e acordo com outros proprietários tinham pastagens em vários concelhos. Isso obrigava-nos(tanto a mim com ao outro pastor) a grandes caminhadas que poderiam durar quinze dias ou mais de um mês de herdade em herdade na procura de alimentos para o gado(ovelhas) e não sermos vistos, dado que andávamos clandestinamente por essas herdades,ao sol e à chuva, sem condições, sem abrigo e sem mudar de roupa.

J.A. Face a esta dureza não teve problemas de saúde?.

M.M. Felizmente não pois apesar de dormíamos ao relento, andávamos sempre acompanhados de uma burra que transportava as nossas mantas, alimentos secos como pão, azeitonas, toucinho e chouriço. Em tempo de chuva tínhamos que nos abrigar debaixo de árvores para que as mantas que a burra transportava não se molhassem o que tornaria um peso insuportável para ela. De referir também que quando chovia e fazia frio, para podermos fazer alguma fogueira tínhamos que guardar debaixo da roupa lenha(mato seco) para atear a fogueira para nos aqueceremos. De referir ainda que mesmo com a idade que tinha era obrigado a ordenhar as ovelhas duas vezes ao dia,uma na parte da tarde e outra cerca das quatro horas da manhã. O leite era transportado na burra para o monte onde se faziam os queijos e como a burra sabia o caominho eu aproveitava para passar pelo sono em cima da burra.

J.A. Não chegou a ir para a Escola Primária?

M.M. Certo dia quando pastava as ovelhas em Mourão, na Herdade da Caseta em S.Leonardo, passou por mim um senhor que fazia parte de uma linha de caçadores que me perguntou que idade tinha, e quando lhe disse que tinha onze anos me questionou se tinha frequentado a escola ao que respondi que não. Passados alguns dias minha mãe recebeu uma notificação para se deslocar à escola e a partir daí tive que a frequentar pois o ensino era obrigatório. Como a distância entre a Herdade da Caseta e Mourão onde eu tinha que ir à escola era de 4 a 5 quilómetros, só a frequentei três meses, na 1ª. Classe, porque tinhamos que mudar de herdade e não voltei mais à escola.

J.A. Sentiu pena de não ter continuado na Escola?

M.M. Claro que sim mas por necessidade aos treze anos, já mais homenzinho tive que continuar a guardar gado e a trabalhar no campo como lavrar a terra com uma parelha de machos, mondei, ceifei, cavei vinhas, apanhei azeitona, etc, no Monte do Vale do Castelo, perto de Reguengos de Monsaraz para vários patrões, chegando mesmo a trabalhar para minha Madrinha Romanita.

Já com 14 anos tive que me inscrever na Casa do Povo de Reguengos para que me dessem trabalho na construção da estrada de S.Marcos para a Amieira a trabalhar no campo como lavrar a terra com uma parelha de machos, mondei, ceifei, cavei vinhas, apanhei azeitona, etc, no Monte do Vale do Castelo, perto de Reguengos de Monsaraz para vários patrões, chegando mesmo a trabalhar para minha Madrinha Romanita.

J.A. Durante quanto tempo se manteve esta situação?

M.M. Aos 14 anos quando deixei de trabalhar para a Madrinha fui para Reguengos como ajudante de vendedor de leite.passando mais tarde a vendedor, função que desempenhei até aos 20 anos, interrompendo esta função algumas vezes para outros trabalhos, tais como num lagar de azeite, empreitadas de ceifa e sementeiras de trigo

J.A. Chegou então a idade de ir para a tropa!

M.M. Ainda antes fui trabalhar para Vila Franca de Xira na empresa Teixeira & Duarte a escavar uma galeria subterrânea por baixo da Autoestrada A1. Mais tarde e como manobrador de máquinas trabalhei na ampliação da pista da Base aérea de Alverca. Por conta da mesma empresa e com a mesma função trabalhei nas fundações dos depósitos da Nato na Charneca de Caparica e ainda no enchimento dos depósitos de Gaz da Shell da Banática,na Caparica.

Assentei praça em Beja no Regimento de Infantaria onde fiz a recruta e, mais tarde, tirei a especialidade de cozinheiro na Póvoa de Varzim, tendo estagiado posteriormente como cozinheiro em Elvas no BC8. Mais tarde fui transferido para o quartel de Engenharia, Campo Grande e dali para a Pontinha, também quartel de Engenharia.

Fui mobilizado para o Ultramar num batalhão na Amadora e dali para Santa Margarida a aguardar embarque que aconteceu em 18 de Agosto de 1966 para Angola no navio Uige onde, após 11 dias desembarquei em Luanda. De seguida fui para o norte em Zala onde permaneci 11 meses seguindo depois para a Vila de Caçamguide, a leste de Angola, junto à Companhia dos Diamantes, onde permaneci mais 17 meses.

Foi neste navio que parti de Lisboa para Luanda, cuja viagem durou 11 dias

J.A. Certamente que continuou com vontade de ir à escola!

M.M. Sim e dado que não a tinha frequentado (ou por muito pouco tempo) aproveitei esta estadia para tirar a Quarta Classe, indispensável para futuros trabalhos e garantia de melhor qualidade de vida.

Casei-me por correspondêndia quando ainda permanecia em Zala e quando cheguei fui morar para a Freguesia de Caparica, em Almada. Comecei a trabalhar na construção civil e para tentar criar melhores condições de vida, fui tirar o curso de canalizador no Instituto de Emprego e Formação Profissional, na Amora, Seixal. Em 1970 imigrei para a Alemanha onde permaneci 1 ano regressando em 1971 tendo ido trabalhar para a Lisnave onde me mantive até à sua extinção, em 1985.

J.A. Achou então que a vida lhe estava a pregar mais uma partida?

M.M. Encarei a situação e passei a trabalhar por conta própria criando para o efeito uma empresa familiar até 2011 na construção civil, por motivos de reforma.

J.A. Já na situação de reformado desenvolveu alguma atividade que queira destacar?

M.M. Fui sócio fundador da Associação Alma Alentejana onde participei desde o seu início nas Feiras anuais dedicadas ao Alentejo, nos Fins de Semana Alentejanos em Juntas de Freguesia, Coletividades e noutras Instituições, na realização de Jogos Florais, em Almoços Temáticos e outras tudo em prol da defesa, promoção e valorização da nossa identidade cultural Alentejana

Esta foto representa mais uma atividade que desenvolvi na Alma Alentejana no baptizo do meu neto Diogo

Agora na situação de reformado além de colaborar ativamente em Coletividades e Instituições Particulares de Solidariedade Social, como voluntário, para me manter ligado às minhas origens e raízes, dedico-me também ao artesanato construindo em madeira miniaturas, desde alfaias agrícolas a peças que se usavam antigamente e que continuam a ser um testemunho, especialmente de quem estava e vivia ligado ao campo . Ainda e sempre que posso vou fazendo alguns trabalhos na minha área sempre que solicitado.

Entrevista ao Sr. António Gato da Freguesia

dos

Arcos, Concelho de Estremoz

Adega dos Arcos - Vinho da Talha

Entrevista conduzida por: B. Cordeiro

Fotografia de: B. Cordeiro

As Adegas tradicionais, equipadas com as antigas e enormes talhas de barro, vão sendo cada vez mais uma raridade no Alentejo, onde em tempos foram os principais depósitos para armazenar e conservar o vinho.

No propósito de falar com um dos donos de uma dessas adegas, fomos ao encontro do Sr. António Gato na Freguesia dos Arcos Concelho de Estremoz, onde ainda se bebe um copo da talha.

Foi à volta do velho balcão forrado a mármore da sua adega, ladeada de enormes talhas de barro, mantendo a sua traça antiga, que bebemos um copo, acompanhado com umas iscas que são uma das suas especialidades que fomos falando, enquanto enchia o bicado do vinho saído da talha, e servia os seus clientes. Um dos nossos objectivos foi falar sobre esta actividade e fabrico do vinho neste processo praticamente artesanal, recorrendo à utilização dos grandes potes de barro, técnica quase em vias de extinção.

Na sequência das diversas entrevistas que temos feito para o nosso blog, vimos mais uma vez ao encontro de alguns agentes económicos desta região onde as adegas construídas com novas tecnologias vão proliferando um pouco por todo o Alentejo.

Entendemos que conhecer e divulgar o historial destas adegas e antigas tabernas, é também contribuir para a preservação e promoção do Património da nossa região. Foi neste sentido que fomos falar com este Sr. de setenta e nove anos de idade vitivinicultor e proprietário de uma destas adegas, sendo naturalmente profundo conhecedor desta arte do fabrico do vinho neste processo tão peculiar.

B.C.-Sr.: António quer falar-nos um pouco sobre a história desta sua adega quase centenária nesta Freguesia dos Arcos, mais conhecida por adega dos gatos?

Sim, esta adega pode considerar-se quase centenária dado que o seu alvará data de 1927. Esta casa tem vindo a passar de Pais para filhos, foi aqui que comecei a trabalhar com os meus pais e depois com o meu irmão, vindo também ele a estabelecer-se no mesmo negócio aqui nos Arcos. A nossa actividade sempre esteve ligada à agricultura e também à produção de vinhos e sua comercialização.

Havia até há bem pouco tempo duas adegas com este nome, esta e a do meu irmão.

B.C.-Supostamente a sua produção é toda consumida aqui na sua Adega.

Que quantidade de litros de vinho produz e armazena nestes potes de barro?

Em grande parte o vinho que é feito nesta adega é consumido aqui, vendido ao copo e também vendido para fora, mas grande parte é para autoconsumo.

Esta casa é muito conhecida aqui na região pela qualidade do vinho, pela forma como ainda é feito e armazenado.

Também a maneira tradicional como é servido retirado directamente da talha, e também pelos nossos petiscos, seja um atractivo para muita gente que vem de outras localidades mais próximas para beber aqui o seu copito e algum convívio ao fim do dia de trabalho. Tenho também alguns clientes habituais vindos de longe, que anualmente aqui vêm buscar alguns garrafões para seu consumo.

Sobre a minha produção, depende dos anos, mas anda à volta dos quatro a cinco mil litros por colheita.

B.C.-Sr: António, nesta Freguesia dos Arcos sempre houve muitas destas tradicionais Adegas.

Actualmente estas adegas que fazem o vinho neste processo, o chamado vinho da talha são cada vez mais raras! Quer comentar?

É verdade, nos anos 40 devia haver aqui nesta Freguesia algumas trinta ou quarenta adegas, hoje estas vão sendo cada vez mais raras.

Estas adegas começaram a desaparecer a partir da construção da adega Cooperativa de Borba, e de muitas outras adegas particulares!

Nos últimos anos têm-se construído na nossa região muitas adegas com tecnologias mais modernas, produzindo vinho de boa qualidade; muitas destas adegas são de produtores e engarrafadores que já exportam muito das suas produções.

A região do Alentejo com o seu clima e bons solos sempre produziu vinho de boa qualidade. A plantação de vinhas nos últimos anos aqui nossa região tem vindo a crescer bastante, sendo um sector que ainda vai dando aqui muito trabalho, dando também um contribuindo para a nossa actividade económica.

B.C.-O Sr. é uma pessoa que cresceu e viveu à volta desta actividade do cultivo da vinha mas que também faz o seu próprio vinho.

Pode dizer-se que é um produtor consumidor uma vez que a sua produção é para consumir nesta casa! Querer-nos também explicar como é este ciclo do vinho feito nos moldes tradicionais?

O Vinho feito nos moldes tradicionais já é muito raro fazer-se, não só porque são cada vez menos estas adegas, como também pelas grandes dificuldades que nos criam em termos de exigências. Por outro lado há cada vez menos pessoas que faziam esses trabalhos, os tempos são outros e todas estas tradições vão morrendo.

O vinho que era esmagado com os pés como antigamente nestas pequenas adegas particulares, passou a ser feito com um esmagador e um desengaçador; sendo depois transportado ainda com as peliculas através de mangueiras para os potes.

Aqui este mosto vai ficar durante a fermentação durante mais ou menos quarenta dias, sendo mexido todos os dias com um mexedor de madeira. B.C.-Acha que estas antigas adegas vão resistir, tendo em conta a grande quantidade destas mais modernas com outras tecnologias que vão crescendo cada vez mais?

Penso que estas adegas antigas não vão resistir por muito tempo, quando estas pessoas mais velhas desaparecerem também acaba o fabrico do vinho feito á maneira antiga, assim como estas tabernas

Hoje devido a tantas exigências vão acabando com todas estas casas, acabando por matar e tornar cada vez mais pobres e mais desertificadas estas pequenas aldeias que aqui iam criando algum movimento e dando alguma vida ao comércio local. Estas adegas/tabernas funcionavam também como um ponto de encontro onde muitos se deslocavam para beber um copo, fazendo parte de uma cultura popular de muitas localidades sendo lugar de convívio com os seus cantes e até algumas conspirações quando o álcool começava a trepar.

B.C.-Sr. António, obrigado pelo tempo que me dispensou, e espero vê-lo aqui ainda por muito mais tempo.

que também vão acabando á medida que os seus donos vão desaparecendo e se vão reformando. A juventude de hoje não está muito virada para estas coisas, mas é pena que estas tradições acabem porque tudo isto faz parte do nosso Património, principalmente nos meios rurais. B.C.-Esta sua adega/taberna sempre trabalhou nestes moldes á base de petiscos!

Nunca pensou em evoluir para a abertura de um restaurante mantendo o mesmo traço original?

Não, nunca pensamos em fazer isso porque ao, fazer daqui um restaurante era fazer mais do mesmo. Estas casas com o seu estilo antigo ainda são muito apreciadas: repare que de vez em quando aparecem por aqui alguns estrangeiros que apreciam muito estas adegas.

Essa mudança, também obrigava a um grande investimento e os meus filhos têm os seus empregos e não é intenção deles continuar com este negócio, a menos que fiquem sem os seus empregos e nessa altura serão eles a decidir.

Eu devido à idade, e da minha mulher, já não irei ter por muito mais tempo esta casa aberta.

Também a casa que pertencia ao meu irmão, que entretanto faleceu também já encerrou.

B.C.-Disse que este ramo de negócio tem vindo a passar de pais para filhos; mas tendo em conta aquilo que me transmitiu esta tradição acaba aqui o seu “reinado “?

Naturalmente que sim, pelas razões que lhe disse.

Qualquer outra pessoa que viesse explorar esta casa que não seja da família, não podia continuar a funcionar nestes moldes. Só quem tenha produção das suas vinhas é que pode manter este negócio.

Entrevista com o músico, ilustrador, cineasta e escritor Afonso Cruz: Jesus Cristo bebia cerveja no Alentejo

20-09-2013 10:19:24

Jesus Cristo bebia cerveja em vez de vinho. Pelo menos na recriação que Afonso Cruz faz da Última Ceia. Um quadro encenado, irónico, algo provocatório e simultaneamente dramático que transporta Jerusalém para uma pequena aldeia do Alentejo. Músico, ilustrador, cineasta e escritor, Afonso Cruz é um dos mais conceituados e premiados autores na nova literatura portuguesa. E o romance Jesus Cristo bebia cerveja é uma obra universal construída a partir das nuances próprias à ruralidade alentejana. Afonso Cruz vive há cinco anos perto de Sousel e o “DA” encontrou-o em Castro Verde, no decorrer do festival Planície Mediterrânica, onde o coletivo artístico Terra Mexe criou uma intervenção a partir do Livro do Ano. Foi assim que ficámos a saber que “a verdade é um somatório de mentiras” ou que a cultura é a única solução para a crise.

Texto Paulo Barriga

De onde surgiu a ideia de reinventar Jesus Cristo a beber cerveja no Alentejo?

Li, por acaso, uma teoria sobre isso. Cristo poderia realmente ter bebido cerveja. E até há quem considere que bebia cerveja e não vinho, apesar das possibilidades de ter bebido as duas bebidas serem poucas. A história parte de uma metáfora, ou seja, uso a cerveja como metáfora para contar uma história sobre transformações, sobre aquilo que nós somos capazes de dar pelo outro, aquilo que nós somos capazes de sacrificar, de nos transformarmos.

Isso não é uma provocação? O livro não esconde, ele próprio, alguma confrontação com a Igreja Católica, com os seus cânones mais firmados?

Só aparentemente. De um modo geral o cristianismo nunca teve problemas com o álcool, os monges sempre fizeram cerveja, vinho e até uísque e portanto nunca houve objeção nenhuma a respeito do álcool ao contrário do Islão. Se Maomé bebesse cerveja seria sim um confronto com a ideia que se tem do profeta. No caso de Jesus Cristo, não. E o facto de ele beber cerveja não diminui ou faz dele um alcoólico ou o que seja.

A protagonista Rosa, a determinada altura, pensa para consigo mesmo que Deus se esconde de todos, mas evita acima de tudo os padres. É evidente que há aqui, dentro da toada do humor, uma certa crítica…

Na maior parte dos meus livros acontece isso, tento que existam muitas opiniões sobre a vida, sobre as coisas que nos rodeiam. Tento, por exemplo, apresentar um padre que possa ter uma perspetiva mais religiosa, alguém que possa ter uma perspetiva científica, alguém que possa ter uma perspetiva mística e por aí fora. Acho que a verdade é uma multiplicidade de ângulos, é um somatório de mentiras, e quanto mais mentiras tivermos sobre o mesmo assunto, mais próximo estaremos da verdade. E eu não posso excluir nem as críticas nem os elogios. Gosto de incluir todas as variantes e todas as versões, gosto muito, por exemplo, de ler tudo o que são heresias, para perceber as outras possibilidades ao lado e não só o pensamento ortodoxo.

O padre deste livro é um bom herege, um malandro.

Claro, porque essa também é uma ideia de homem. Temos aquela sensação de perfeição em relação aos padres e até quando falamos deles revoltamo-nos muito mais. Isso acontece, por exemplo, nos casos de pedofilia. Se há um padre pedófilo, em vez de um leigo pedófilo, reagimos de forma diferente. Como se fosse mais grave, porque achamos que eles devem ser mais perfeitos, devem ter uma conduta moral irrepreensível, e devem ter mais responsabilidade. Não sei se devem ter, porque somos todos seres humanos e a nossa responsabilidade, acho eu, é toda igual e por eu não ser padre não quer dizer que não tenha a responsabilidade de ser bom, de me esforçar ao máximo e de fazer o melhor pelos outros.

Este enredo, que é de uma ironia brutal, de um sarcasmo enorme, mas que também tem uma carga trágica bastante forte, é inspirado no Alentejo. Há algum sítio que tenha sido decalcado para a aldeia do livro?

Não, são uma série de impressões. Acho que a maior parte dos escritores faz o mesmo que eu, que é juntar uma amálgama de ideias para criar uma personagem. Junta coisas que reconhece de várias pessoas e cria uma só. Para criar uma aldeia alentejana também é assim. Na verdade é até um processo aristotélico. Por exemplo, a ideia de cavalo forma­-‑se a partir dos vários cavalos que eu vi até arranjar o arquétipo do cavalo. E no caso da aldeia alentejana é um pouco isso. É o que eu conheço do Alentejo, mudei-me para cá há cinco anos, logo era mais fácil escrever sobre o Alentejo do que escrever sobre uma aldeia no País Basco, por exemplo, ou em Gales. Uma história deste tipo convinha passar-se numa aldeia, um sítio fechado, longe de Jerusalém, mas que se pudesse transformar na cidade sagrada.

A vinda para o Alentejo, há cinco anos atrás, modificou de alguma forma a sua maneira de escrever, a sua forma oficial de encarar a literatura e a arte em geral?

Julgo que não. Embora o facto de me ter mudado, de ter vindo de Lisboa, possa, em algumas coisas, ter mudado a minha forma de pensar. Revejo-me nalguns vícios da cidade que no campo não fazem sentido. Lembro-me de o cartunista, o Bandeira, ter dito uma vez que o campo é um mito urbano. Quando chegamos ao campo, temos uma ideia higienizada, uma ideia muito efabulada do que é o campo e a vida no campo. No livro Jesus Cristo bebia cerveja, porque se passa no Alentejo, obviamente que fui usar muitas das coisas que fui ouvindo e que fui vivendo no Alentejo. Até porque muitas das coisas que no livro acontecem vi acontecerem realmente, estão ligeiramente modificadas, os espaços, as personagens, mas são circunstâncias verdadeiras.

O Afonso Cruz também tem uma banda chamada Soaked Lamb (ensopado de borrego), que também tem no nome alguma inspiração alentejana…

Já não sei quem batizou a banda, isso já se perdeu nas nossas memórias, mas lembro-me que fiz mais do que uma vez ensopado de borrego. Encontrávamo-nos em minha casa para gravar e devo ter feito ensopado de borrego mais do que uma vez e alguém sugeriu o nome em inglês.

O Afonso Cruz é ilustrador, escritor premiado, cineasta e músico. Em qual destas áreas se sente mais artista, onde é que se sente mais realizado?

Costumo dizer que se tivesse de escolher apenas uma, e se eu fosse inteligente, escolheria a música. Porque a música muito facilmente muda o nosso temperamento de infelicidade ou de tristeza ou da depressão para a alegria. Mudamos o ritmo e aquilo realmente mexe connosco. Por outro lado, a escrita. Um livro demora muito tempo a ser escrito, mas é mais gratificante no final. Não sei qual escolheria… todas estas áreas têm características muito diferentes e também nos preenchem de maneira muito diferente.

O grande hit atual dos Soaked Lamb é o tema “Palhaços”. Como é que olhas para o País, pelo menos para o País cultural neste tempo de crise? Esta música é um grito de revolta brutal…

Quase sempre, nestas alturas, se fazem as opções erradas. Acho que um grande investimento na cultura seria sempre a única maneira de sair de uma crise porque precisamos de criatividade, de coisas novas. Se não tivermos cultura não conseguimos sair do espaço onde nos encontramos e do sítio onde estamos e ao qual estamos habituados e seremos sempre uma espécie de marionetas de outros que, esses sim, serão mais criativos e mandar-nos-ão fazer uma série de coisas e transformar o País numa série de operários, quase de máquinas. Nós precisávamos acima de tudo de criatividade e a criatividade, ainda por cima, gera muito dinheiro, como toda a gente sabe; gera muito mais do que os têxteis ou o calçado ou outra coisa qualquer que achamos que trará muita riqueza ao País. A criatividade não é um território só da arte. Pertence a todas as profissões e toda a gente precisa dela para ser melhor naquilo que faz.

A arte também pode ser uma arma de combate político?

A arte estará sempre na vanguarda. E se as pessoas compreenderem melhor a arte, compreenderem a cultura, compreenderem o seu passado, mais facilmente terão armas para criar um futuro.

Estou a lembrar-me de uma frase do livro Jesus Cristo bebia cerveja em que um jardineiro, uma personagem secundária, diz a determinada altura que o povo é como as solas dos sapatos, apenas serve para pisar. Há uma crítica social implícita neste observar do jardineiro?

Todos os livros, mesmo quando não focam nomes nem fenómenos da atualidade, têm sempre uma crítica social e eu acho que isso é imprescindível. Vivemos em sociedade, estamos no sítio onde estamos porque vivemos em conjunto, porque cooperamos uns com os outros, e não porque há competição. A competição é saudável dentro de uma cooperação, evidentemente, mas se não houvesse cooperação nós nunca estaríamos aqui. Não haveria sociedade e não haveria o homem como nós o conhecemos e a humanidade como a conhecemos. Por isso a coisa fundamental é cooperar e depois vem a competição dentro dessa cooperação.

Texto extraído do Diário do Alentejo de 8 de Junho de 2014