05.3 Memórias de Francisco Pardal

CRÓNICA Nº 2 - 2014 04 03

Crédito do Amola tesouras - http://lisboanoguiness.blogs.sapo.pt/2013/06/ - Pode ouvir a 'gaita' clicando - http://www.yourepeat.com/watch/?v=cYiXsBX4YIY

crédito da camioneta - http://alcoutimlivre.blogspot.pt/2010_03_01_archive.html

OS PREGÕES em BORBA

Por Francisco Pardal

Borba, devido à sua posição geográfica, nesta zona do Alentejo, sempre foi bastante privilegiada, pela passagem dos transportes públicos, neste caso, as chamadas antigamente, camionetas de carreiras.

Desde manhã cedo, até já alta noite, era certo que imensas carreiras da então Transportadora Setubalense, faziam o seu percurso, passando por dentro da vila e chegando ao local de paragem, nos horários programados, para deixar ou apanhar passageiros, para os mais diversos destinos.

Havia no entanto, uma circunstância muito engraçada que era o local de paragem, no chamado alto da Praça, pelas duas e meia horas da tarde.

Havia até, uns chamados pacóvios, feitos mirones, vulgos caixeiros das lojas que, a essa hora, ainda estavam fechadas para o almoço, que aproveitavam para espreitar alguma passageira mais jeitosa e engraçada, para dar origem a conversas babosas, dos conquistadores sem graça nem ousadia, em vez de palavras com sentido e bem-intencionadas.

No meio daquela azáfama toda de chegadas e partidas, tinham as camionetas um chofer que as conduzia e o cobrador que, de mala de couro ao ombro, ia fazendo o corte dos bilhetes picotados com um marcador que indicava o destino do passageiro e a importância a pagar.

As bagagens das mais diversas, malas, bolsas sacos, canastras e cestas, por vezes com galinhas e coelhos, lá eram colocados por cima do tejadilho, ao qual o cobrador tinha acesso, por uma escada na parte de trás, onde um gradeamento com uma rede fixava a mercadoria.

No meio de todo este reboliço, havia algo de importante que, era a chegada dos jornais, as chamadas notícias frescas vindas de Lisboa.

Os amigos do desporto, lá procuravam os seus jornais favoritos, a Bola e o Mundo Desportivo. Outros diários, também só dois, lá tinham os seus assinantes, num certo número, sobrando poucos para venda avulsa.

Ressalta aqui a graça do seu ardina, figura popular e bem conhecida, de seu nome Avelino Companheiro, que se dava pelo nome do Senhor Avelino dos jornais. Com uma saca, cheia de jornais, lá ia ele dar a volta à vila, fazendo ecoar o seu pregão: “Século ó Bola-Século ó Bola!, repetindo de rua em rua, tantas vezes debaixo de chuva e, noutras sobre o tórrido calor do sol alentejano.

Nesta coisa de pregões, tão falados em Lisboa, das peixeiras, da mulher da fava-rica, não são os únicos em referência, no conhecimento popular, dado que, até em Borba, em tempos passados, houve pregões muito particulares.

Lembrar o pregão a anunciar, no então mercado do peixe, o preço das sardinhas, no tabuleiro do Lopo, que lá se vendem, e, como não as conseguia vender todas, lá dizia:

“Ai não as querem como-as eu!”

Havia também o Latoeiro, com a sua mala às costas, e fogareiro na mão, com o ferro de soldar e o seu apregoar cadenciado, latas ou esmaltes para pingos ou fundos:

“Essa loiça fina!”

O homem de cesto de verga enfiado no braço, anunciava o:

“Barquilho americano!”

O Casinhas apregoava, peles de coelho ou lebre, cabeças de fogão.

A mulher da água fresca, que ao toque da campainha apregoava a água da Serra d’Ossa, com o seu carro puxado pelo burrito, carregado de bilhas de barro, cobertas de verduras que, lhe enfeitavam a carroça, como sinal da pureza campestre, das fontes de água cristalina, saída de uma cascata, aberta pela natureza, a correr pelo seu pé.

O senhor Matias Seguro, ia apregoando, panos e linhas à medida que empurrava o seu grande carrinho, com “vitrines” no seu interior, cheias de artigos de retrosaria.

O senhor Júlio amola tesouras, apitando com a sua flauta, de forma tradicional, como se de música se tratasse, o que levava as pessoas a dizerem graciosamente: temos chuva!

O senhor Taró anunciava o preço do quilo dos melões e da melancia, a vender ao fundo da praça, que lá está a vender o fulano tal. Era uma fruta que só havia na época.

Sempre aconteceu, até ao mais cuidadoso, como ainda hoje, as pessoas perderem qualquer objecto que procuravam reaver. E, lá iam procurar o nosso amigo Taró, para fazer o pregão do sucedido. E, então era ouvi-lo pelos cantos das ruas, com a sua voz meio rouca a gritar:

“Quem achou uma carteira, quê se perdeu do fundo da quinta até à praça, venha ter comigo, que eu direi de quem é… damos as ‘alvissas’”... E, assim era criada a expectativa, da descoberta do achado, que fora perdido.

O Taró era um homenzinho, que vivia de fazer recados, procurando a sua recompensa, na gratificação que recebia, mas também um grande apreciador do bom vinho, e muito amigo da pinga

Deste nosso pregoeiro, contava-se que só bebia copos de três tostões. No seu aspecto de pobre de Job, veio a falecer de repente num inverno de frio rigoroso, mas com nove tostões no bolso, ao que se dizia, com ar de graça que, ainda chegava para três copos de três.

Todas as povoações têm as suas figuras públicas que, ficam referenciadas na história dos povos.

São assim estas personagens que, dão vida e servem de exemplo às sociedades, compostas pelos mais diversos critérios, mas que devem ser aceites e acolhidas como figuras que existem para servir e merecem, que ao serem recordadas, nos fazem sentir o que representam para os nossos dias, a saudade das pessoas daqueles tempos.

Merecem a nossa estima e é esta a terra que tem uma torre, onde o relógio ao dar as horas, com marteladas nos sinos de bronze, que, quando era preciso chamar os bombeiros, eram tocados a rebate, como que a pedir socorro fazendo eco do seu som, como um pregão que era ouvido, pelas hortas, montes e vales ao longo desta planície que nos cerca.

Borba, Fevereiro de 2006

Francisco Pardal

Crónica nº 1 - 2014 01

PASSADO COM HISTORIA

TI INÁCIO

Os fundadores do blogue Amigos de Borba, agradecem e têm muito gosto em publicar, esta bonita crónica, dedicada a um grande homem, Inácio António Ramos que já partiu, mas nunca o esquecemos.

A autoria é de Francisco Pardal, mais conhecido por (Chico Cabeleireiro), brindou-nos a nós e ao povo de Borba escrevendo de uma personagem, muito querida de todos nós, que nos deixa sempre saudades, obrigado Francisco: Zé Russo.

Nas festas das primícias da seara, eram feitas as ofertas dos primeiros frutos, com cortejo levado ao altar do Senhor Deus, reveladas diversas vezes no Antigo Testamento.

Muitos milhões de taças de vinho, foram consumidas, nas festas Salomónicas e de outros Reis e Profetas, de que nos fala a Bíblia.

É desses tempos de séculos e séculos que, que nos vem o grão de trigo e o fruto da videira, os quais, nos foram deixados por Jesus Cristo, para nosso Alimento na Fé.

Confinados ao ínfimo do espaço, que como terra de vinhos, Borba se encontra, onde os modos mais artesanais era realizado o seu fabrico, desde homens que de enxada ao ombro, por um trabalho à jorna, revolviam a terra, fazendo com que as videiras produzissem, mais abundantes cachos que, seriam pisados, para deles sair o tão apreciado e saboroso liquido, hoje classificado pelos estudiosos no assunto como agridoce, encorpado e de diversos sabores.

As vindimadoras, de ranchos que cantavam alegremente pelos campos, são hoje, em grande parte substituídas por máquinas, nas colheitas da uva, até às formas mais sofisticadas, ao recolher do seu sumo, a que depois chamamos vinho.

Serve esta breve reflexão, para o que a seguir se revela, como realidade do conhecimento, que nos fica do dia-a-dia da vida.

Era em Setembro, no dizer dos agricultores, mês em que São Miguel fecha as asas, tempo de vindimas e que assinala o fim do verão.

Havia na antiga rua do Biscaio, um cheiro que se tornava agradável e que vinha da taberna do Tio Inácio, onde pela janela aberta da adega, nos chegava o som das uvas em fermentação, exalando o cheiro a mostro.

O senhor Ramos na linguagem popular de Ti Inácio, figura bem conhecida de todos, e afamado pelo seu saber como escolher a uva que fazia bom vinho.

Pelo trato respeitoso e afável que apesar da diferença de idades, sempre mantivemos conversas francas e abertas.

Era à hora do serão, quando a porta da taberna se fechava, que ele e sua mulher a Ti Quica, recolhiam a casa.

Para que isso acontecesse, já antes tinham sido feitas as vindimas, que era quando o Tio Inácio, com as suas botas de borracha, tinha saltado para dentro do tino das uvas, fixado ao carro de varais, onde vinham as uvas e de forquilha nas mãos, ia lançando golpes atrás de golpes e as uvas, iam escorrendo pelo tabuleiro abaixo, até ao chão de mármore, que ele primava pela limpeza, até à adorna, onde se desfazia dos engaços e eram levadas para dentro das talhas, para fermentarem.

Cá fora na rua ouvia-se o ruído da fervura do mostro, éramos levados a dizer. Óh Tio Inácio já ferve, ao que ele respondia.

Ainda tem que levar muita volta, porque era preciso dar volta às talhas, como ele dizia, embora não saíssem do mesmo sítio, porque o que era mexido era o que estava lá dentro.

Ora aconteceu que certa vez, passando pela rua, cumprimentando-o, ele deu-me como resposta, um gesto, chamando-me com a mão, anda cá, anda cá.

A taberna aquela hora estava vazia, só nós dois, fui assim convidado a passar para o lado de dentro do balcão, o que era proibido a qualquer freguês e que ele impunha respeito, fui seguindo os seus passos, entrando na zona das talhas da adega, com o vinho por ele fabricado.

Uma das talhas tinha colocada uma torneira, em baixo ao fundo da barriga, com o registo um pouco aberto, por onde corria um fio gotejante de vinho, para dentro de um grande alguidar de barro vermelho, onde uma cabaça servia para encher os jarros de vinho, que iam para o balcão.

Subindo uns degraus de um pequeno escadote, e pegando num dos copos que servia para as provas, afastou alguns bagulhos e tirou de lá um copo com vinho por cima para eu provar, dizendo:« isto é só para nós»; dando a entender que poucos tinham a oportunidade de tal privilégio.

E eu bem ao contrario do que mandam as boas regras da enologia, de cheirar e provar, peguei no copo que ainda pingava no fundo e de um golpe suave bebi metade daquele precioso néctar, banhando nele a língua e procurando saborear o gosto, que aquele pico miudinho lhe transmitia, era puro sumo de uva, fermentado em talha de barro, pesgada com o produto próprio, acabei por fim a dar um estalo com a língua dizendo:«Oh Tio Inácio, isto parece champanhe!»,

Era isso mesmo que eu esperava ouvir.

Não sei se era vinho ou champanhe, o que era verdade, é que uma vez sabendo-se na vila que tinha vinho novo, era sinal de casa cheia e então, era ver aquela taberna cheia de homens, saídos das pedreiras, fustigados pelo árduo trabalho, alinharem-se ao balcão para beber, e erguendo os copos e inclinando o corpo para trás, saboreavam o precioso néctar, manifestando um piscar de olho, do sabor que lhes tinha ficado na boca, outros erguiam os copos virados para a luz, fazendo reflectir sobre o liquido, aquela cor linda que contem, sim, porque os olhos também comem (neste caso bebem).

Já todos querem falar ao mesmo tempo, provocando um zum zum, em que nada se percebe, vai mais um e mais um, até ficarem muito alegres e bem-dispostos.

O petisco, bem, o petisco era muitas vezes restos de pão, carne ou queijo, que vinham na lancheira, como sobras do almoço.

FRANCISCO PARDAL

(CHICO CABELEIREIRO)