05.2 Barnabé Cordeiro - Memórias 2013

Borba 05-Borba Inspiradora

05.2 Barnabé Cordeiro

Aos roçadores da Serra d`Ossa

B. Cordeiro

1

Não sou poeta nem escritor

Transporto apenas memórias

Lembrando estes trabalhadores

Contando as suas histórias

2

Ao recordar estes homens

Quis estas quadras escrever

Para homenagear os Roçadores

Que partiam ao amanhecer

3

Saiam pela madrugada

A caminho da serra d’Ossa

Era grande a caminhada

Para mais um dia de roça

4

A Serra era o destino

Para alguns que já não estão

Recordo o Tio Saturnino

O Inácio Moral e Manajão

5

Caminhavam mato abaixo

Passando pelo Burrazeiro

Quando Chegavam à Serra

Já se encontrava o Cabreiro

6

Ouviam-se os chocalhos badalar

Durante a noite e o Dia

Cabras e cabritos a berrar

Que linda era a melodia

7

Quebrando o silêncio da Serra

Ouviam-se os machados cortar

Desbastando as estevas da Terra

Que os fornos iam queimar

8

Tinha muitas e belas fontes

Desde as Grilas ao Cerejal

Secando em todos os montes

Por força do Eucaliptal

9

De um lado está o Canal

Do outro está o Montinho

E na encosta do seu Vale

S. Tiago Rio de Moinhos

10

E lá mesmo no alto da Serra

É ao S. Gens que se implora

Avista-se com o S. Lourenço

Padroeiro da Aldeia da Nora.

Barnabé Joaquim Letras Cordeiro

1945-02-04 - Natural de S. Tiago Rio de Moinhos — Borba

Passou a sua infância até 1965,na sua Aldeia – Nora, S. Tiago Rio de Moinhos, trabalhando nos fornos de cal de seu Pai e na pequena agricultura, juntamente com os irmãos.

Ausentando-se da terra em 1965,para cumprir o serviço Militar, nas Tropas Pára-Quedistas.

Fez o curso de Pára-Quedismo em Tancos e partiu para Angola no Paquete Vera –Cruz em Junho de 1967.

Regressou em 1969, começando a trabalhar em Lisboa, primeiro numa empresa de equipamentos de Aviários, mais tarde numa curta passagem por uma empresa têxtil.

Ingressou no Sindicato dos Bancários do Sul e Ilhas, como Administrativo em 1975.

Matriculou-se na Escola nocturna e completou o ensino Secundário.

Reformou-se em 2004,frequentando a seguir a Universidade da Terceira Idade no Barreiro – U.T.I.B.

Fez parte dos Órgãos Sociais da Cooperativa Cultural e Popular Barreirense, da qual faz parte como cooperador.

MEMÓRIAS E LUGARES COM HISTÓRIAIntrodução

Recorrendo ao “dossier” das minhas memórias, que o tempo ainda não apagou por completo, vou tentar transmitir algumas delas, e as minhas vivências no Alentejo, mais concretamente na Terra onde nasci, Nora, S. Tiago R. Moinhos – Borba.

Foi nesta terra que nasci, e que vivi até aos vinte e poucos anos da qual nunca me desliguei, dado que tenho aqui ainda grande parte da minha família e amigos de infância: direi que são daqui as minhas ” raízes”.

Tal como grande parte da juventude da minha geração, também eu saí da minha Terra à procura de uma vida melhor, rumando para as periferias dos grandes centros, onde nos fomos fixando criando aqui os nossos lares, novas amizades e onde nasceram e cresceram os nossos filhos.

Creio que muitos destes migrantes raramente voltaram às suas terras de origem: talvez uma pequena minoria esteja agora a regressar depois das suas reformas.

Nasci no ano de 1945, época em que, grande parte das famílias portuguesas, viviam com grandes dificuldades económicas.

De recordar que estávamos em plena ditadura Salazarista, no tempo em que havia restrições de toda a ordem, quer no plano Social, quer no plano Politico, em que não havia qualquer liberdade de expressão.

A minha família, era uma família muito numerosa, como na generalidade de quase todas as famílias nessa época, éramos sete irmãos, sendo eu o mais novo.

O meu Pai, dedicou parte da sua vida aos fornos da cal, e a alguma agricultura familiar com os meus irmãos,- a minha Mãe ocupava-se nos trabalhos de casa e a tratar dos filhos, e por ultimo a cuidar também dos netos.

Feita esta breve introdução, quero dizer que considerei importante descrever algumas das minhas memórias e percursos da minha vida, de uma forma simples e assim as poder partilhar com os meus familiares e amigos, e principalmente com os meus filhos e netos, considerando que o registo das nossas memórias é um importante “património” que lhe podemos legar.

Divagando nas Memórias do Passado

A transmissão de conhecimentos, de vivências do passado, desde as mais humildes ás mais sábias são sempre um contributo para o entendimento da nossa história e das nossas culturas, enquadradas naturalmente no seu tempo.

Dito isto, tudo o que procuro aqui relatar sobre as minhas vivências e memórias, penso que se enquadram mais num contexto autobiográfico do que episódico, por terem de facto um significado marcadamente pessoal.

Assim, e para relatar um pouco daquilo que foi a minha juventude e a situação em que se vivia na época, era inevitável não falar do sistema político e social vigente no nosso país nesses tempos.

Procuro de algum modo ser exaustivo, dado tratar-se de um relato o mais real possível, sem qualquer tipo de ficção, procurando assim com esta narrativa, ter algum rigor na cronologia de alguns dos meus percursos, e naturalmente fazer também alguns comentários e considerações sobre o passado, e a actual situação em que vivemos.

Ao falar do meu passado, das minhas memórias, teria obviamente que falar sobre o Alentejo, da minha terra e das suas gentes, relatar algumas histórias e naturalmente falar na vida dos camponeses e camponesas, e na principal economia desta região naquela época.

Neste sentido, recorri a pessoas mais antigas para me ajudarem a relembrar e analisar acontecimentos e vivências do passado, porque foram também eles os protagonistas destes tempos difíceis.

O Alentejo foi sem dúvida uma das Regiões do País onde o povo foi bastante sacrificado, dada a dureza do trabalho dentro do contexto económico daquela região. Não havia aqui indústria de grande dimensão, a população trabalhava na sua maioria na agricultura por conta dos grandes latifundiários ou ”Lavradores“ como eram conhecidos, trabalhava-se de sol a sol a troco de salários de miséria.

A região do Alentejo era constituída de facto por propriedades de grande extensão, não havendo grande espaço para a agricultura familiar: - Assim, parte da população destes Concelhos, dedicava-se como já referi à extracção do mármore, e a alguns trabalhos sazonais geralmente no sector agrícola, acompanhando assim o ciclo destes trabalhos do campo:- as ceifas, as mondas, a apanha da azeitona, as vindimas etc.

A indústria do mármore foi durante muitos anos a principal empregadora destes Concelhos; note-se que esta indústria do mármore teve uma importância fundamental no desenvolvimento destes três Concelhos; Borba, Estremoz e Vila Viçosa, porque foi sem dúvida a principal actividade económica, desta Região do Alentejo.

Inicialmente, e durante alguns anos só se procedia à extracção da pedra, porque toda a sua transformação era feita fora da região, mais concretamente na região de Pêro Pinheiro.

Actualmente esta pedra é praticamente toda transformada nas fábricas existentes nesta região, que entretanto se foram ali implantando, beneficiando desta forma toda esta zona, criando entretanto mais postos de trabalho.

Porém, convém salientar, que com a crise que presentemente estamos a atravessar, grande parte destas pedreiras e serrações que transformavam a pedra estão a encerrar, a exemplo do que está a acontecer por todo o País em outras áreas, arrastando por esta via, cada vez mais gente para o desemprego.

Naturalmente que, as consequências, são gravosas para esta região, uma vez que vão também afectar todo o comércio ali existente, dado que era a partir do rendimento das famílias que trabalhavam neste sector, que grande parte do comércio aqui existente sobrevivia.

Continuando, e relatando um pouco a actividade dos trabalhadores desta zona do País, que era maioritariamente na agricultura, seria inevitável não falar nos trabalhadores rurais, principalmente por conta dos grandes agrários, em que se trabalhava do nascer ao pôr-do-sol como já referi! Será bom lembrar aqui estes trabalhadores que se ocupavam nesta fauna agrícola, nas grandes herdades, desde os Ganhões, aos Pastores aos Maiorais.

O Maioral era o homem que estava ao serviço praticamente dia e noite, porque durante a noite era preciso tratar os animais com que trabalhavam durante o dia nas lavouras, e outros trabalhos ligados à agricultura.

Os Pastores, esses ficavam normalmente a dormir nas herdades junto dos seus rebanhos, e tinham também a seu cargo a ordenha das ovelhas, que era feita manualmente utilizando o chamado ferrado para onde era feita a ordenha.

A partir daqui, o leite era transportado para o monte da herdade onde normalmente eram os cozinheiros ou cozinheiras que faziam o queijo nos métodos tradicionais da época, com uma qualidade e sabores que hoje não se encontra com facilidade nos nossos mercados. A industrialização veio pôr fim ao fabrico deste produto que era feito de forma artesanal e sem as misturas de hoje.

A industrialização e a mecanização na agricultura deu-se talvez a partir dos anos cinquenta. A introdução desta maquinaria veio alterar completamente todo o processo agrícola. Desde as lavouras, às sementeiras, às mondas e às ceifas, eram as mulheres e os homens que se ocupavam em grande parte nestes trabalhos.

Estas novas técnicas aplicadas na agricultura, tiveram indiscutivelmente um impacto muito positivo no desenvolvimento e na produtividade agrícola, mas simultaneamente vieram substituir muita mão-de-obra, trazendo alterações nas condições sociais destes trabalhadores, porque vieram de certa forma agravar o desemprego neste meio rural, forçando muita gente a migrar para as grandes cidades, deixando o interior do país cada vez mais desertificado.

Como já referi, a introdução das novas tecnologias, aplicadas também nestas áreas, terão contribuído para um aumento da produtividade, mas em termos ambientais têm contribuído de forma negativa para alguma degradação na área da saúde e do ambiente.

As químicas que são utilizadas, para que os produtos se desenvolvam com mais rapidez, são cada vez mais frequentes. Também a cura dos produtos agrícolas que consumimos, trazem também problemas a nível do ar, das águas, dos solos do clima etc., devido aos impactos daqui resultantes.

Neste sentido, e na minha modesta opinião, as questões ambientais nunca mereceram muita atenção por parte dos poderes políticos instituídos, dado que durante muito tempo, não houve sensibilidade nem atitude politica, para minimizar os efeitos negativos dos problemas ambientais.

É de assinalar que actualmente já começa a haver alguma preocupação com as boas práticas ambientais, em que as escolas estão educar os alunos alertando-os para estes problemas.

Como entusiasta, e preocupado com o meio ambiente não podia passar sem deixar aqui esta minha preocupação, e de me pronunciar de forma simples sobre questões, que considero de extrema importância, porque este é um problema para o qual toda a população deve estar sensibilizada.

Voltando a falar como era a vida destas camponesas e camponeses no Alentejo, lembro os ranchos de mulheres e homens que eram contratados para os trabalhos sazonais, ou seja, trabalhos que só eram feitos em determinadas estações do ano.

Eram os feitores que contratavam os ranchos de homens e mulheres para trabalharem nas herdades, era muitas vezes nas praças onde se juntavam os desempregados, que estes eram contratados para estes trabalhos sazonais.

Os ranchos contratados eram sempre acompanhados por um capataz ou Manajeiro, que era o homem que dirigia os trabalhos! Este era normalmente um pouco exigente, tinha de manter a vigilância sobre os seus homens e mulheres de modo a que não aldrabassem os trabalhos, forçando-os muitas vezes a trabalhar a ritmos mais acelerados, provocando até alguns despiques entre estes trabalhadores: é bom de ver que esta prática era vantajosa para o patrão, como se deve presumir.

Era neste ambiente que se trabalhava para os lavradores, a troco de salários mal remunerados e em condições muito precárias.

De recordar que as famílias que tinham muitos filhos, e dadas as dificuldades para os criarem, eram forçados logo muito novos a abandonar a escola e ir “servir” para as famílias mais ricas, poucos eram os que iam aprender um ofício.

As raparigas, algumas migravam para as cidades a servir como domésticas, e outras ficavam a trabalhar no campo, os rapazes na grande maioria iam trabalhar para os lavradores praticamente a troco da alimentação: sempre era menos uma pessoa a alimentar em casa, só voltavam a casa dos pais aos fins-de-semana para mudar de roupa.

O agravamento das desigualdades de nível, e qualidade de vida, entre o campo e as cidades, eram nessa época mais marcantes, devido à falta de condições e protecção, principalmente nos trabalhadores rurais.

Por conseguinte, considero que a geração que me antecedeu passou por mais dificuldades e privações que a minha, inclusive os meus irmãos que são mais velhos.

Eu em relação aos meus irmãos, considero que fui privilegiado, dado que sempre trabalhei por conta do meu Pai até ir cumprir o serviço militar, enquanto alguns dos meus irmãos ainda serviram nos Lavradores, sujeitos a trabalhos e a condições totalmente diferentes daquelas que eu tive, pelo facto de não ter saído do seio familiar.

Naturalmente que beneficiei pelo facto de ser o mais novo, e a alguma evolução na melhoria das condições de vida da família.

Os meus irmãos mais velhos, logo muito novos tiveram que ir trabalhar sem que pudessem concluir o ensino primário a exemplo do que acontecia à grande maioria da juventude na década de 30/40;esta foi em minha opinião, uma geração condenada ao analfabetismo, afectando-a negativamente como é fácil de perceber.

De recordar que também em relação às questões sociais, é preciso dizer que antes do 25 de Abril não havia estado previdência que protegesse as pessoas mais carenciadas, principalmente os assalariados agrícolas que não tinham subsídio de desemprego, reforma ou segurança social.

O trabalho, naquela época em determinadas regiões do Alentejo era escasso, e a saída para muita desta gente desempregada, e sem reformas, era andar de taleigo às costas a mendigar de porta em porta, à «pida» como se diziam os Alentejanos, ou então emigrar como hoje está a acontecer, mas hoje com uma diferença.

Naquela época eram as pessoas menos qualificadas que emigravam, actualmente são também os nossos jovens formados e bem qualificados que são forçados a sair, visto não verem qualquer perspectiva de futuro no seu País.

Foi assim que nos anos 50/60 houve o maior fluxo de emigração, não só para o estrangeiro como para os grandes centros urbanos à procura de uma vida melhor.

«Aproveito também para dizer que é num contexto muito difícil para a vida dos portugueses que estou a relatar estas minhas recordações.

Retomando, e continuando a falar das dificuldades económicas e sociais desta época, para dizer que havia também uma total ausência de liberdade de expressão, estávamos perante uma sociedade que não se podia exprimir livremente, pelo que qualquer manifestação ou reivindicação era reprimida, culminando muitas vezes com a prisão dos mais activistas.

No Alentejo, foram muitos os que foram presos pela policia política pelo facto de reclamarem os mais elementares direitos, ou que simplesmente criticavam o regime. Foi também aqui no Alentejo e no Ribatejo que em 1962 se lutou pela implantação das oito horas de trabalho, pondo fim ao horário de trabalho medieval de «sol a sol» que era começar ao nascer do sol e largar ao sol-posto.

A existência de uma ditadura que durou quase meio século, que privou o país das liberdades fundamentais, condenou-nos à pobreza e ao subdesenvolvimento económico-social e humano. A economia deste País estava ao serviço de algumas famílias poderosas, que se “apoderavam” de grande parte da riqueza produzida, mas insensíveis às questões sociais.

Naturalmente que as funções de ordem social devem ser desempenhadas pelo Estado, ora tal só é susceptível de se concretizar com êxito, se existirem meios financeiros suficientes, sendo que para isso, o Estado tem que ter os instrumentos económicos necessários, ou seja um sector público forte para fazer face a estes encargos sociais, que são direitos fundamentais para uma sociedade mais equilibrada e democrática.

Para que isto se concretize, e em meu entender, o Estado não pode apenas ser o gestor dos serviços, ou actividades que dão prejuízos.

Hoje, passadas algumas décadas, sobre conquistas alcançadas parece que estamos a caminhar no sentido em que o Estado Previdência está sendo cada vez mais posto em causa, devido em minha opinião, à economia cada vez mais neoliberal; cujas consequências nos conduzem a situações que acentuam cada vez mais as desigualdades sociais.

O Analfabetismo e o Estado Novo

Recordo mais uma vez, que o analfabetismo na época, atingia grande parte da população portuguesa, principalmente no interior do País, onde havia mais dificuldades, e porque o ensino não era obrigatório.

Só uma pequena percentagem da população frequentava o ensino secundário, e muito menos tiravam um curso, só uma pequena elite tirava um curso superior, sendo alguma desta classe o principal suporte do Estado Novo.

Os governantes de então, tentavam manter parte do povo na ignorância: um povo analfabeto está certamente mais condicionado e sempre mais exposto e permeável a serem abusados e defraudados nos seus direitos.

A cultura e os conhecimentos de uma sociedade, não podem ficar dissociados no que respeita ao desenvolvimento e ao progresso de qualquer País, a cidadania é tanto mais exercida quanto maior forem os conhecimentos do seus cidadãos.

Os níveis de analfabetismo que ainda hoje existem principalmente na população mais idosa é um exemplo de como o antigo regime desprezou o ensino, não o tornando obrigatório, o que resultou num grande défice em relação a outros Países da Europa! Calcula-se que nos anos trinta, em cada 100 portugueses 70 eram analfabetos, segundo alguns historiadores, o regime de então argumentava que os portugueses não sentiam necessidade de aprender.

O ensino em Portugal deu de facto um salto quantitativo, principalmente a seguir ao 25 de Abril de 74, foi a partir desta data que grande parte da população teve acesso ao ensino superior.

Pode-se dizer, que nunca o nosso País teve uma geração com uma formação académica como hoje, mas infelizmente sem grandes perspectivas de futuro.

Em minha opinião, devido a políticas desajustadas estamos hoje a passar por grandes dificuldades económicas e sociais, havendo até nesta ultima, alguns retrocessos, não faltando assim razões para o descontentamento cada vez mais generalizado na nossa população, porque pouco a pouco, também o nosso sistema de Segurança Social está sendo cada vez mais destruído.

Com tudo, creio, e há que reconhecer, que apesar de estarmos a regredir em algumas situações, se confrontarmos o País de hoje, com o País que tínhamos antes do 25 de Abril de 1974,é incomparavelmente mais desenvolvido.

Os portugueses têm uma qualidade de vida diferente, quer nas questões de saúde quer no ensino, apesar de haver ainda grandes assimetrias e desigualdades sociais, que ultimamente se têm vindo a agravar.

A situação de crise que hoje estamos a atravessar, está a ser muito difícil e manifestamente dramática para muitas famílias, o desemprego está a atingir uma dimensão preocupante, receio que estejamos a caminhar perigosamente para uma situação semelhante à do passado.

Neste contexto não resisto a citar Soeiro Pereira Gomes no seu livro A Engrenagem: “Para os trabalhadores sem trabalho / rodas paradas de uma engrenagem caduca”.

Posto isto, quero dizer que na situação actual, estamos metidos numa outra engrenagem, embora com contornos diferentes, mas com consequências não menos gravosas no que respeita ás grandes dificuldades porque estamos a passar, sobretudo provocada por este flagelo, que é falta de emprego.

Vou continuar, falando noutros percursos da minha vida, considerando oportuno ter introduzido antes, alguns dos aspectos mais significativos e marcantes da época.

Estou convicto, que para se projectar o futuro, não se pode menosprezar o passado, é a partir dos conhecimentos do passado, que podemos construir um futuro mais justo e mais fraterno, passando em minha opinião, por alterar o rumo destas políticas que nos estão a deixar cada vez mais pobres e dependentes do exterior. Assim, antes de passar para outros capítulos dos meus percursos, quis então deixar estas minhas modestas, mas sinceras considerações.

1956

A mudança da Família para o Monte do Abraito.

Continuando a relatar, e relembrar um pouco sobre o meu percurso, começo então por recordar um lugar que para mim tem alguma história, e muito marcante na minha juventude, porque foi neste lugar que passei parte da minha adolescência e que de alguma maneira se identifica com o que atrás foi dito. Em 1956, tinha então eu onze anos de idade foi construído o chamado Monte do Abraito, pelo então proprietário, creio que Dias Franco, natural de Borba e mais conhecido naquele meio por o “Fome Negra “não sei bem a razão deste adjectivo, mas consta-se que sendo rico era um sovina, o que se podia chamar de rico avarento.

Neste sentido, quero dizer que foi nesse ano de 1956 que toda a minha família que vivia na Nora no monte das Buscanhas que viemos na condição de rendeiros habitar este monte, que tinha sido acabado de construir tendo assim melhores condições para toda a família. Foram os meus Pais, e todos os meus irmãos que ainda eram solteiros.

Assim, foi o Filipe, o António, o Barnabé a Maria e a Rosalina. A irmã Elvira e a irmã Alzira já eram casadas na altura, e que hoje infelizmente já não se encontram entre nós.

A razão de nós irmos habitar este Monte, deve-se ao facto de o meu pai ter aqui o forno onde já vinha exercendo esta actividade com alguns dos meus irmãos, e por norma com mais dois ou três trabalhadores que trabalhavam por conta dele nesta profissão.

Eu nesta data, em 1956 tinha 11 anos de idade, acabado de sair da escola primária, começando por tomar conta dos animais e ajudar em outros trabalhos ligados à nossa actividade: pequena agricultura e forno da cal.

Era assim que, logo muito jovens nos começavam a atribuir algumas responsabilidades, em trabalhos que deviam ser para idades mais adultas, tornando os jovens dessa época, precocemente mais adultos.

Na sua grande maioria os jovens dessa época, quando terminavam a escola primária, tinham que ir trabalhar para ajudar os pais no sustento da família, por este facto os nossos pais não podiam ter em conta que a diversão também é importante: brincar também faz parte do nosso desenvolvimento psicológico enquanto crianças.

De recordar que alguns dos nossos brinquedos, éramos nós próprios, que com alguma imaginação os construíamos, aproveitando alguns materiais para esse efeito, utilizando algum material usado (nesses tempos já fazíamos reciclagem).

Longe estavam os tempos dos jogos electrónicos, facebuk ou internet, onde hoje a maioria da nossa juventude, passa demasiado tempo, e que pode tornar-se negativo, caso estas” ferramentas” não sejam bem utilizadas.

Como estou a recordar situações da juventude, que se prendem naturalmente com questões sociais, é preciso dizer que para além das dificuldades económicas das famílias, para que os seus filhos continuassem a estudar, também existia o facto das escolas secundarias ficarem distantes dos meios rurais, dificultando ainda mais a continuação na escola da juventude da minha geração, principalmente no interior do País, onde as carências mais se faziam sentir.

Não havia transportes para as crianças, tínhamos que caminhar a pé, alguns até descalços para uma escola que ficava por vezes muito longe, sujeitos ao frio ao calor e a todas as intempéries.

A escola que eu frequentava ficava a mais de dois quilómetros de distância da minha casa: recordo os Invernos rigorosos, em que os caminhos ficavam completamente inundados, havendo grandes dificuldades em chegar à Escola, que por sua vez também não tinham quaisquer condições de conforto, não havendo sequer instalações sanitárias e muito menos parques de recreio. Lembro-me perfeitamente que o nosso recreio era feito à volta da escola onde havia um descampado para brincar, e em que por vezes preparávamos algumas fugas para ir aos ninhos, mas as coisas às vezes corriam mal, porque ao chegar à escola lá tínhamos o professor Ganhão à nossa espera, para o respectivo castigo, que no mínimo era um grande puxão de orelhas ou umas valentes reguadas.

Nessa época, os nossos pais não iam ás escolas questionar os professores, por terem castigado os filhos, por considerarem que estes valores, do respeito e da disciplina eram muito importantes. Hoje, do meu ponto de vista, creio que se peca por algum excesso de zelo, por parte de alguns encarregados de educação.

As dificuldades para as crianças que frequentavam a escola longe de casa, era também motivo de preocupação para os pais, mas em relação à segurança não tinham a preocupação que hoje existe.

Pelas mais diversas circunstâncias actualmente a segurança nas escolas, principalmente nos grandes meios começa a ser preocupante.

Neste contexto, de dificuldades inerentes à época, só voltei à escola depois de adulto e já casado, para frequentar o ensino secundário em regime pós laboral, tendo concluído o antigo 5º ano na Escola Secundária dos Casquilhos.

Voltando a falar na minha actividade antes de sair do Alentejo, era de alguma forma ligada ao forno da cal, e a alguma agricultura e criação de gado, nesta propriedade onde vivia a família, como atrás já referi.

O Monte, e o forno de cal no Abraito ainda existem, embora degradados, ou praticamente em ruínas, conforme se vê nas imagens! Também a propriedade se encontra praticamente abandonada, sendo mais um exemplo de degradação que está a contribuir para a desertificação do interior, e que é comum a quase todo o País.Estamos em minha opinião, a pagar muito caro esta situação de abandono das terras, que creio ser urgente repensar e inverter esta trajectória, desenvolvendo a nossa agricultura, disponibilizando as terras a quem as ponha a produzir, chamando-lhe reforma agrária ou outro nome, é preciso é uma verdadeira reforma neste sector agrícola, pondo fim a esta politica de importação de produtos, que na grande maioria podemos produzir.

Deixando aqui esta minha observação, quero sublinhar que passei parte da minha adolescência na actividade da cal, e é nesta profissão, e na vida dos Caleiros ou Forneiros como eram conhecidos que eu não queria deixar de me pronunciar, dado que foi aqui, que durante a minha infância estive “ligado” sendo para mim muito familiar.

Direi que com mais ou menos frequência, foi este o meu trabalho até ir cumprir o serviço militar em 1966,não voltando mais a esta actividade terminado o serviço militar.

Esta profissão de caleiros, era de alguma forma artesanal, familiar e pouco rentável, os caleiros que conheci, começaram pobres e acabaram igualmente pobres. Na região havia muita gente a “coser“ cal, mas o consumo deste produto começou a diminuir devido á maior utilização do cimento, acabando assim com a grande parte dos “caleiros” começando estes a trabalhar na sua maioria na indústria do mármore.

No Concelho de Borba, S. Tiago Rio de Moinhos mais concretamente na Nora e Bairro Branco era onde estavam localizados a maioria dos fornos.

Num levantamento que fiz e não sendo muito rigoroso encontrei aproximadamente 20 fornos de cal só no Concelho de Borba.

Actualmente neste Concelho existe apenas um forno situado no Bairro Branco a laborar, e

segundo me relatou o Sr. Festas, homem já com oitenta e dois anos, é o único que ainda continua com este trabalho, embora com pouca frequência devido à sua idade. Ele confessou-me que durante a sua vida, salvo raras excepções, nunca fez outra coisa a não ser cozer cal, e está ainda “agarrado” ao forno mais por um vício, e naturalmente para ajudar a sua reforma.

Quando este homem, por força da idade deixar o ofício, é mais uma das actividades que existiam neste Concelho que vai certamente desaparecer.

Devo salientar que o facto de haver por ali tantos fornos, deve-se em meu entender por ser aí que havia a matéria-prima, ou seja a pedra calcária e a lenha.

A pedra própria para o fabrico da cal existe nesta zona em grande abundância, visto ser pedra extraída a partir do mármore e que serve para o fabrico da cal branca, utilizada para caianças e estuques; as tintas vieram substituir quase por completo o uso desta cal.

A cal branca também era utilizada na cura das vinhas adicionada ao sulfato, química utilizada para este tratamento, evitando assim determinadas doenças nas videiras, e que penso ser um composto mais amigo do ambiente.

A chamada cal preta para obras, era produzida a partir de outras rochas calcárias que também há em abundância na região, esta cal como atrás já referi, já pouco se consome tendo em conta que esta cal foi em grande parte substituída pelo cimento.

A lenha que servia de ”combustível“ para coser a cal, vinha praticamente toda da Serra d'Ossa, era para esta Serra que muitos homens se deslocavam a roçar as estevas para depois serem transportadas para os fornos da cal e também para os fornos de pão. Estes homens que iam para a Serra roçar o mato para os fornos, saiam de madrugada levando o seu taleigo ás costas com o parco farnel, quando chegavam ao trabalho certamente já iam cansados, pois o percurso era todo feito a pé, demorando mais de uma hora para cada percurso.

O transporte da lenha durante muito tempo era feito com carros de bois e com outros animais poderosos, porque era preciso ter boas parelhas de animais para poder puxar aquelas carroças carregadas, subindo e descendo a Serra até chegar aos seus destinos.

Recordo aqui alguns destes homens que faziam estes fretes, o ti Gálha com a sua poderosa mas pachorrenta junta de bois, puxando aquelas enormes cargas, sem grande esforço aparente.

O ti Eliseu com a sua parelha de machos, e também o meu Pai que tinha a sua parelha, em que era o meu irmão António quem trabalhava com ela.

Eles saiam de madrugada, acordando a Aldeia com o barulho dos guizos que usavam nas parelhas de muares, e com o ranger das rodas naquelas azinhagas cheias de buracos e pedras, porque naquela época as estradas de macadame ainda não chegavam a todos os lugares.

Recorde-se que para se transportar uma carga de lenha da Serra, era preciso quase um dia, porque a distância era grande, e os caminhos em muito mau estado, como referi, caminhos mal “andamosos” ou caminhos de cabras, como se dizia.

Em resultado do que atrás foi dito, de vez em quando lá se virava uma carroça carregada, voltando-se a repetir o mesmo trabalho, trazendo alguns prejuízos, porque o carro por vezes também sofria alguns danos, e até os próprios animais que puxavam as carroças sofriam alguns ferimentos.

Com a evolução na área dos transportes, também aqui se foi progredindo e os materiais começaram a ser transportados em camionetas que eram fretadas para o efeito, facilitando assim este trabalho, e aumentando também o ciclo da produção desta industria.

Os Homens que desbravavam a Serra

Como estou a relatar a história de vida destes homens que trabalharam grande parte do seu tempo nos fornos, e a cortar as estevas da Serra, considerei ser digno, e em jeito de homenagem, dedicar-lhe estas modestas quadras.

Aos roçadores da Serra d`Ossa

B. Cordeiro

1

Não sou poeta nem escritor

Transporto apenas memórias

Lembrando estes trabalhadores

Contando as suas histórias

2

Ao recordar estes homens

Quis estas quadras escrever

Para homenagear os Roçadores

Que partiam ao amanhecer

3

Saiam pela madrugada

A caminho da serra d’Ossa

Era grande a caminhada

Para mais um dia de roça

4

A Serra era o destino

Para alguns que já não estão

Recordo o Tio Saturnino

O Inácio Moral e Manajão

5

Caminhavam mato abaixo

Passando pelo Burrazeiro

Quando Chegavam à Serra

Já se encontrava o Cabreiro

6

Ouviam-se os chocalhos badalar

Durante a noite e o Dia

Cabras e cabritos a berrar

Que linda era a melodia

7

Quebrando o silêncio da Serra

Ouviam-se os machados cortar

Desbastando as estevas da Terra

Que os fornos iam queimar

8

Tinha muitas e belas fontes

Desde as Grilas ao Cerejal

Secando em todos os montes

Por força do Eucaliptal

9

De um lado está o Canal

Do outro está o Montinho

E na encosta do seu Vale

S. Tiago Rio de Moinhos

10

E lá mesmo no alto da Serra

É ao S. Gens que se implora

Avista-se com o S. Lourenço

Padroeiro da Aldeia da Nora.

Roçadores e Forneiros

Foi de facto e em minha opinião, uma vida de trabalho muito penosa para estes homens que iam roçar o mato para a Serra, deslocando-se a pé e a grandes distâncias, resistindo ao calor e ao frio a que estavam sujeitos no seu dia- a- dia de trabalho.

Sobre estes trabalhos que estavam de uma maneira geral relacionados com os fornos da cal, convém também dizer, que este método de “cozer” a cal demorava aproximadamente 2 dias e 2 noites sem interrupção, mantendo sempre a “caldeira” acesa, produzindo e armazenando o calor necessário para o processo da cozedura da pedra, atingindo temperaturas de 800 a 1000 graus.

O estado da “cosedura” era observado pela cor dos fumos emitidos, que normalmente o fumo ficava branco «o fumo branco parece que anuncia sempre alguma coisa de novo» e também pela cor das pedras que ficavam cor de fogo.

Os homens que estavam constantemente a “alimentar” o forno com lenha, para manter a chama acesa, eram sujeitos a grandes temperaturas emitidas pelo calor deste, e pelo calor natural e sufocante que fazia no Verão.

Recordo ver estes homens com as camisas coladas ao corpo de tanta transpiração, com a sua pele tisnada pelo calor do Verão, e do rigor do tempo a que estavam expostos durante uma vida de trabalho árduo, que era o trabalho no campo.

O trabalho nos fornos era mais intensivo no Verão, no Inverno, devido às chuvas, e porque as lenhas ficavam molhadas, o trabalho nos fornos ficavam «parados». Quando chovia nos dias em que o forno estava a coser a cal, era já motivo para muita preocupação, porque ia aumentar o consumo da lenha e mais tempo para a cal ficar cosida, logo aumentando as despesas, devido a estes imprevistos.

De salientar que esta actividade esteve sempre na posse dos pequenos “industriais” com fracos recursos, e fraca capacidade inovadora, razão pela qual nunca se fizeram investimentos, no sentido de evoluir para uma outra fase mais industrializada e menos arcaica.

Pode dizer-se que este processo acabou a funcionar nos mesmos moldes, como quando se iniciou há dezenas de anos, em práticas mais ou menos artesanais.

O pessoal que trabalhava neste ofício, neste período de inverno dedicava-se à apanha da azeitona e a alguns trabalhos sazonais, como trabalhos nas vinhas e podas. O trabalho nos campos era todo feito à jorna, pelos então chamados Faniqueiros ou Jornaleiros que eram os trabalhadores a dias.

Estes dedicavam-se praticamente só ao trabalho do campo, havendo períodos principalmente no Inverno, que não havia trabalho, logo não havia rendimentos para as famílias que viviam só do seu trabalho.

Ceifeiras e Mondadeiras

No Verão, na época das ceifas, quando ainda não haviam as máquinas para ceifar eram os homens e as mulheres que iam para herdades fazer as ceifas, as mondas também eram feitas por ranchos de mondadeiras arrancando uma a uma as ervas daninhas das grandes searas de trigo do Alentejo. As ceifeiras iam para as grandes herdades, normalmente por lá ficavam durante três a quatro semanas, só regressando no fim da safra.

Durante todo este tempo dormiam nas herdades, nos casões e nos barracões, sem qualquer privacidade entre estes trabalhadores.

Este trabalho era contratado com o manajeiro por um determinado tempo, sendo que, para cumprirem o contrato tinham que trabalhar praticamente sempre de empreitada e muitas horas.

As refeições para estes trabalhadores eram transportadas pelo Manteeiro, que levava as refeições aos criados, montado no seu cavalo, ou em carroças e que eram servidas no local onde se encontravam a ceifar. De salientar que estas refeições eram basicamente as sopas de tomate, os gaspachos, as sopas de cebola a sopa de grão com carne de badana: as badanas eram as ovelhas mais velhas que havia no rebanho, que eram mortas na época das ceifas, para dar à criadagem.

Estes ceifeiros e ceifeiras que praticamente passavam um mês a ceifar, o dinheiro que lá ganhavam neste período, era praticamente para pagar as dívidas ao merceeiro, que entretanto se tinham acumulado devido aos fracos salários e à falta de trabalho.

As pequenas mercearias nas Aldeias, geralmente vendiam a crédito, confiando nos seus clientes; sabiam que logo que tivessem trabalho respeitavam os seus compromissos pagando as suas dívidas.

Esses tempos difíceis, parece que tendem a regressar dada a situação de dificuldades que neste período muitas das famílias estão a passar.

Hoje recordo aqueles homens e mulheres, que tanto trabalharam para um país que nada lhe deu, foram homens e mulheres tratados com pouca dignidade, chegavam à velhice sem direito a uma reforma digna.

Foram homens e mulheres sujeitas à dureza do trabalho do campo, ganhando salários de miséria, por conseguinte foram explorados, e sacrificados durante toda a sua vida.

As mulheres sempre foram mais sacrificadas, porque não só tinham o trabalho de casa a seu cargo, como também o trabalho do campo e tratar dos filhos, quantas vezes os tinham que levar consigo para o trabalho, sujeitos ao frio, ao calor e à chuva, improvisando abrigos para os resguardar do rigor do tempo.

Também às mulheres estava destinado o trabalho da casa, havia nos homens da época preconceitos instaurados no que respeitava a fazerem quaisquer trabalhos domésticos.

Assim, eram raros os homens que sabiam cozinhar ou faziam qualquer trabalho doméstico, se algum homem o fizesse logo era sujeito a criticas dos amigos ou da vizinhança, porque as mulheres eram consideradas as fadas do lar.

Também recordo o facto de as mulheres terem que se deslocar a grandes distâncias para lavar a roupa. Lembro-me que para lavarem a roupa se tinham de deslocar a um tanque muito distante, num lugar chamada a Cabeça Alta”. Era para este tanque de água, que muita gente vinda de longe se tinha que deslocar para lavar a roupa! Não havia lavadouros públicos, portanto os lavadouros eram os ribeiros e as pedreiras, que entretanto ficavam cheias de água no inverno.

Era normalmente aos fins-de-semana que as mulheres iam lavar a roupa porque durante os dias de semana andavam a trabalhar no campo.

Também a água para o consumo doméstico a tinham que a ir buscar aos poços, ou às nascentes que ficavam a alguma distância: nas aldeias não havia água canalizada.

Recordo também aqui as minhas irmãs e a minha mãe a transportarem as bilhas à cabeça sem as segurarem, e levando muitas vezes outra bilha ao quadril.

A este propósito, quero também dizer que era nas idas à fonte que os rapazes aproveitavam para ir ao encontro das raparigas; era nos caminhos da fonte que se aproveitava para ir namoriscar: ir à fonte por vezes era o pretexto para os encontros de namorados, sem que tivessem sob a mira das mães, ou de irmãos mais novos que eram incumbidos dessa vigilância.

As Azenhas movidas com a água da Nascente

E porque estou a “viajar” no tempo, quero lembrar alguns dos usos e costumes e de algumas das fontes de rendimento destas gentes, e nestes locais, realçando por exemplo a importância da nascente de água onde nós íamos abastecer para o nosso consumo.

Era a partir desta nascente, que está localizada a montante da Ribeira, que estas azenhas, movidas com esta água, que se fabricavam as farinhas para o fabrico do pão da região. Havia na época muita gente que fabricava o seu pão nos fornos a lenha, o chamado pão caseiro actualmente são raras as pessoas que fabricam o seu pão. Os moinhos, tal como os fornos a lenha foram desaparecendo.

Era, e ainda é com esta água que «corre» de forma natural, ou seja por gravidade, durante todo o ano desta nascente da povoação da Ribeira, que se faz ainda algum regadio desde a Ribeira a S. Tiago Rio de Moinhos.

Segundo o testemunho de algumas destas pessoas que aqui viveram, era a partir destas pequenas Hortas e Azenhas, que saia o sustento para muitas destas famílias aqui residentes. Actualmente é quase nulo o regadio que se faz nestes terrenos que se encontram nas margens desta Ribeira, tudo aquilo que hoje por ali se cultiva é praticamente para auto consumo, tudo isto se deve ao grande despovoamento que se tem vindo a verificar já a alguns anos.

Esta situação de abandono das suas terras, por parte de grande parte desta população e de praticamente de todo o Alentejo, deve-se ao facto de nunca se terem criado condições para que as pessoas mais novas aí se fixassem, deixando assim estas povoações cada vez mais isoladas e consequentemente mais pobres.

Neste sentido, creio que estamos a caminhar, para uma situação de retrocesso de âmbito social e cultural, pondo em causa as mudanças alcançadas com a revolução de Abril.

Para falar nas grandes mudanças que se deram nestas aldeias, que agora estão a ficar mais desertificadas; direi que foi a partir do 25 Abril com o poder local, que foi possível fazerem-se grandes transformações na área das infra-estruturas, que contribuíram de forma significativa para uma melhoria na qualidade de vida dessas pessoas.

A água canalizada, a luz eléctrica, os caminhos, tudo isto foi feita em grande parte nestas aldeias e montes onde antes nada existia. Os serões, eram passados à volta da lareira, à luz da candeia ou do candeeiro a petróleo, passados em família à chaminé, ouvindo histórias e algumas conversas banais dos mais velhos, atiçando o lume quando já esmoreciam as brasas de uma lenha que ia ardendo lentamente.

Naturalmente o que aqui relato, não é novidade nem desconhecido para as pessoas daquela época, porque foram eles os protagonistas destes tempos difíceis e de grandes carências, mas que considero no entanto ser importante reflectir sobre situações da época, quer sejam de boas, ou más memórias.

Assim, e sensível a estas realidades, o meu testemunho, porque ainda vivi parte desta época, vai para os mais novos para que possam ter uma ideia de como era a situação em que vivia grande parte da população Alentejana desses tempos. Hoje passadas algumas décadas de Regime Democrático, a nossa situação económica está-nos a fazer regredir aos tempos difíceis do passado.

Naturalmente que o progresso, e o bem-estar social, só é possível através do desenvolvimento económico, criando riqueza e a sua melhor distribuição, baseados na convicção que isto é possível, se forem criadas condições que assentem num principio de maior equilíbrio social.

Tudo isto, e em meu entender encerra direitos e deveres, mas também encerra, alguma combatividade e determinação por parte das populações e dos trabalhadores.

Não me querendo dispersar muito por questões, que sendo sociais, são também políticas, por estarem intimamente ligadas; mas a este propósito é sempre bom realçar alguns acontecimentos marcantes da História, lembrando por exemplo a grande luta das mulheres Americanas que em 8 de Março 1857 se barricaram na fábrica onde trabalhavam, reivindicando salários iguais aos dos homens com idênticas funções, e redução dos horários de trabalho.

O dia 8 de Março, data deste acontecimento foi consagrado em 1910 como o Dia Internacional da Mulher.

Também a luta dos trabalhadores em 1 de Maio de 1886 nas ruas de Chicago, reivindicando a redução dos horários de trabalho de 13 para 8 horas também só foi conseguida através de grandes manifestações destes trabalhadores, foi assim que em 1889 foi decretado o Dia Internacional do Trabalhador, que por enquanto ainda se comemora.

Foi também no Alentejo e Ribatejo, que os trabalhadores agrícolas com as suas lutas, alcançaram o horário das oito horas.

Quero então dizer, que ao longo da nossa história sempre houve gente que não se resignou, e que pagaram com as suas vidas algumas conquistas alcançadas que ainda vigoram.

Deixando estes comentários, que são de alguma forma inerentes ao nosso passado histórico, e continuando relembrar o passado deste povo Alentejano, mais concretamente aos que acompanhei mais de perto; não posso deixar de recordar alguns desses homens que trabalhavam no forno por conta do meu Pai, relatando alguns episódios que acompanhei de perto.

Lembro-me do ti Inácio Moral, o tio Saturnino, o tio Manajão, etc. Lembro estes por serem os mais velhos e já falecidos. Há um destes, o ti Inácio Moral, que não me esqueço por ser uma figura carismática porque tinha de facto um dom especial dada a forma como ele exprimia as suas ideias, e de alguma forma invulgar em relação às outras pessoas daquele meio.

Recordo este homem já um pouco curvado devido à idade, e à dureza do trabalho durante uma vida, com as suas mãos calejadas a pegar nas pedras de cal quase em brasa, sem deixar transparecer qualquer dor, tal era a calosidade nas suas mãos.

Guardo também dele outra faceta: no período em que se estava a cozer a cal, quando acabava o seu turno, em vez de ir descansar, ele ficava grande parte do seu tempo à conversa com os seus camaradas de trabalho.

Era um homem analfabeto, como o eram quase todos os homens dessa época, mas que “prendia” as pessoas com as suas “ladainhas,” não as usadas no culto católico porque ele era ateu, mas nas questões políticas.

Ele era já na época um grande contestatário do sistema, eu como era muito novo não compreendia o alcance daquelas palavras, só mais tarde comecei a perceber o sentido das mesmas, porque todo o seu “discurso “se baseava nas grandes injustiças sociais. Ainda hoje penso se não terei sido “contaminado” com todos aqueles relatos vindos de pessoas analfabetas mas com uma grande sabedoria.

Naturalmente que na época, as pessoas estavam sempre receosas de falarem nas dificuldades e injustiças, criticando o regime, porque estavam sujeitas a serem denunciadas por alguém que tivesse ao serviço do antigo regime, os chamados bufos que nunca se sabia quem eram, nem onde estavam.

Qualquer informação anti-regime tinha que ser passada na clandestinidade, porque os partidos que se opunham ao regime também estavam na clandestinidade, as noticias nos jornais ou qualquer outro órgão de informação tinha que passar pela censura.

Referindo-me ainda às dificuldades económicas existentes nessa época, para dizer que havia uma grande camaradagem e espírito de solidariedade entre estas pessoas, e que na verdade esse espírito ainda hoje é mais ou menos visível nos pequenos meios.

Nos grandes centros, as pessoas devido à agitação do dia-a-dia, são muitas vezes alheias ao que se passa à sua volta, ignorando por vezes algumas situações, criando até alguns estigmas! Contrariamente ao que se passa nos meios pequenos como atrás referi, onde praticamente todas as pessoas se conhecem e se entreajudam quando é necessário. Atrevo-me a dizer que nos pequenos meios por vezes estamos mais acompanhados, do que no bulício das grandes cidades.

Mãe Joana

Recordando aqueles tempos da minha infância, lembro-me que ao fim do dia de trabalho no forno, havia normalmente sempre uma bucha“ em que cada um levava o que tinha sobejado do “farnel”, mas grande parte era a minha Mãe que arranjava sempre qualquer coisa do que havia em casa para a merenda do pessoal.

A minha Mãe era de facto uma pessoa muito generosa, muito solidária, estava sempre disposta a ajudar com aquilo que podia.

Em relação aos filhos, era ela com as suas pequenas poupanças que iam dando algum dinheiro aos filhos quando ainda eram solteiros, dado que o meu Pai não tinha muito essa preocupação.

As mães, como sempre, e à sua maneira, estão sempre mais atentas aos problemas dos filhos.

Com toda a humildade digo que a minha Mãe era uma verdadeira matriarca, os valores que ela nos deixou foi a melhor herança, porque estes valores e princípios traduzem-se na forma como todos os seus filhos se relacionam uns com os outros, de forma fraterna e solidaria, e tudo isto se deve em minha opinião a um bom ambiente familiar que existia entre nós.

A minha Mãe faleceu aos setenta e quatro anos de idade de forma inesperada, quando ainda fazia muita falta aos filhos e aos netos de que tanto ela gostava - seja com que idade for, que os nossos Pais nos deixam, a sua falta é sempre muito sentida, naturalmente que a perda dos nossos são sempre perdas irreparáveis.

Relembrando ainda as diversas etapas em todo este ciclo de vida, quero dizer que, mesmo tendo em conta as dificuldades que existiam, não nos faltava o essencial; desde as matanças do porco, e de praticamente toda a criação era criado naquela propriedade, produzia-se praticamente para o nosso consumo.

O pão também era feito num forno de lenha que existia no monte e amassado num grande alguidar de barro pelos meus irmãos mais velhos! Era eu, que muitas vezes ia buscar a farinha ao Sétil montado num burro, a uma daquelas moagens que havia ali nas margens da ribeira.

Lembro as merendeiras com chouriço que a minha mãe fazia nos dias em que se fazia o pão e que eram uma delícia, as tibornas com o pão quente acabado de sair do forno, são coisas que retenho na minha memória.

Bons e saudosos os tempos das cozeduras do pão e das matanças do porco criados a bolota em campo aberto.

Como não havia electricidade, também não dispúnhamos de frigoríficos. Assim; toda a carne que praticamente se consumia durante o ano, era salgada e metida nas salgadeiras para assim se poder conservar durante muito tempo em boas condições.

Nas matanças do porco, era sempre um dia em que se juntavam os amigos para um dia de festa e convívio, lembro que a cachola, o tal guisado com miúdos de porco, e também o serrabulho eram uns dos pratos favoritos desse dia.

Havia a tradição, na altura das matanças do porco, em que se dava o chamado “presente” que se traduzia na oferta de um bocado da carne do porco. Isto quer dizer que na altura das matanças, havia com muita frequência na casa das pessoas a chamada “carne nova” porque todos os vizinhos retribuíam os seus presentes da matança do seu porco. Era de facto um ritual que se praticava na província, e cujas tradições vão morrendo em nome da higiene alimentar, segundo as autoridades sanitárias “A.S.A.E”.

Em minha opinião são este conjunto de conhecimentos populares, hábitos, usos e costumes que também fazem parte do nosso património Regional e Cultural, que se deviam preservar, mas que por força das mudanças de hábitos da sociedade, e também quem sabe, motivados por outros interesses, que estas tradições se têm vindo a perder.

Na fotografia aqui exposta, em que estou com o meu Pai, tinha eu mais ou menos 6 anos de idade, e o meu Pai 47,em termos de idade o meu Pai era ainda um homem novo, mas fisicamente já aparentava um homem mais velho. O rigor do tempo, e do trabalho a que estavam expostos, deixavam bem vincadas as marcas estampadas nos seus rostos.

O meu Pai era uma pessoa muito reservada, homem de poucas palavras, só falava muito quando bebia o seu copito, mas toda a gente o estimava, vivia-se num ambiente familiar, em que o meu Pai era o patrão mas também era o companheiro de trabalho, existia uma grande proximidade e um bom relacionamento entre toda aquela gente.

Hoje recordo aquele local que mais parecia um ponto de encontro: passava por ali muita gente, desde os pastores a outros” forasteiros “que faziam ali as suas paragens, aproveitando para porem as notícias em dia, naturalmente centradas nas questões de trabalho.

Na verdade existia ali alguma amizade e convívio entre as pessoas, havia sempre tempo para um intervalo para comer uma “bucha “nem que fosse pão e azeitonas, um bocado de toucinho e um copo de vinho, porque sem este, o convívio não seria perfeito: o garrafão andava sempre ali por perto.

O Barnabé por ser o mais novo, era quem estava quase sempre destinado a ir buscar o vinho à Adega do “Pateta “mais tarde à taberna do Plácido Barriga, adega que ficava próxima do monte onde nós habitávamos.

Há que recordar que, em tempos, existiam por ali muitas pequenas Adegas, em que o vinho, que fabricavam, era depois armazenado naqueles enormes potes de barro, para depois ser comercializado nas suas tabernas. Hoje raramente se armazena o vinho nessas tão conhecidas talhas de barro que já não se fabricam, e começam a ser riquíssimas peças de decoração.

Houve um ano em que o meu Pai também ali fez o vinho, mas segundo sei quando chegou a estar em boas condições de maturação já praticamente tinham esgotado a talha, dada a grande “clientela” que foi aparecendo.

Contam os meus irmãos mais velhos que o ti David Sapateiro e o António Pinto que era o pastor, eram os maiores “clientes”, mas eram clientes a quem não se cobrava nada, porque o meu pai não vendia o vinho, destinava-se ao consumo da casa e para os amigos.

O ti David já depois de velho dedicou-se à venda de peixe que vendia de porta em porta transportando-o dentro de uma cesta, montado num burro ou a pé.

Este peixe andava por vezes mais que um dia no cesto fora do frio, mas para que ficasse mais preservado do calor e das moscas, arranjavam sempre umas folhas verdes, normalmente de couve ou de figueira para o proteger, era assim a solução térmica.

Como se deve calcular este pescado, de fresco já não tinha nada, mas ele dizia que tinha acabado de chegar da lota.

Era um homem muito amigo da “pinga”, dizia ele acerca do vinho que foi feito lá no monte: ‑ Não digam a ninguém que o vinho é bom, digam sempre que não presta, porque se dizem que é bom, aparecem mais “clientes” e o vinho acaba mais depressa. Era de facto pelo que eu ainda me lembro dele, um homem com um grande espírito e sentido humorístico.

Os Bonecos do Tonho Águas - Mestre Talhinas

Como estou a recordar algumas pessoas da terra não posso deixar de me pronunciar também sobre as nossas tradições populares que também fazem parte do nosso Património cultural, e naturalmente falar de um homem da nossa Freguesia que foi sem dúvida um grande artista e Poeta Popular.

Este homem, António Talhinhas foi uma referência para S. Tiago Rio de Moinhos, ele foi de facto um grande poeta e um grande artista na arte de representar as suas Marionetas, os tão famosos bonecos de Sto. Aleixo, que são sobejamente conhecidos no Alentejo e no País.

Na minha infância, era um divertimento não só para crianças como para os adultos, ele percorria todas aquelas Aldeias onde representava a sua arte de bonecreiro,- o “espectáculo” era sempre feito em qualquer casão ou espaço que lhe emprestassem, e o anúncio era feito através do toque de um tambor, porque o Alto-falante ainda era coisa rara.

Mas o Mestre Talhinhas ou “Tonho Águas” como era também conhecido, tinha outra faceta não menos talentosa que era arte poética, ele tem publicado em livro um vasto trabalho em versos quadras e décimas, ao ler algumas delas não resisti a transcrever umas dessas décimas, não só por falar no Património da nossa terra, como creio que também é importante divulgar e lembrar pessoas talentosas como foi este homem do povo.

Deixo-lhe a minha discreta homenagem – com esta Décima do Poeta António Talhinhas

S. Tiago Rio de Moinhos

Terra de enorme valor

Desde o Seixo ao Alfaval

Tu és um jardim em flor

(Pai Henrique)

É verdade que a nossa família foi uma família muito acolhedora, e mesmo com as dificuldades que quase toda a gente tinha, havia sempre um gesto amigável e solidário, dai haver aquela empatia

A propósito, conta-se que uma destas pessoas a que já fiz referência e que era o Ti Inácio Moral teve uma reacção a uma observação de outro camarada de trabalho que dizia:

-- O Ti Henrique devia ser rico!

-- Resposta pronta do Inácio Moral.

-- Não digas isso seu parvo, porque se ele fosse rico não nos queria aqui! Era com este sentido de humor que ele exprimia também as suas ideias.

Tens muitas e boas vinhas

És em vinho especial

Tens muitos fornos de cal

Muitas paredes branquinhas

Muitas e finas farinhas

Se fazem nos teus moinhos

Só te faltam bons caminhos

P'ra qualquer te passear

Tudo o mais é de encantar

Santiago Rio de Moinhos

Quatro grandes albufeiras

Guardam água pró Verão

Que rega milho e feijão

E outras várias sementeiras

Belíssimas oliveiras

Bom gado e muito pastor

Ganhão e trabalhador

E boas jeiras de terra

Isto e mais em ti se encerra

Terra de enorme valor

Tens fortíssimas nascentes

Cuja água rega as hortas

E até vai banhar as portas

Matando a sede aos viventes

Tens lagares muito valentes

Dum modelo sem igual

Dentro enfim de Portugal

Nenhuma aldeia te afronta

Só te falta a estrada pronta

Desde o Seixo ao Alfaval

No centro como raiz

Tens igreja antiga e bela

Mandada fazer foi ela

No tempo de D. Diniz

És também farta e feliz

Em pedras de fina Flor

És um vaso encantador

Que deleita a vista nossa

Da Vigária à Serra D’Ossa

Tu és um jardim em Flor