13- Encontro com os nossos Escritores

sábado, 17 de Fevereiro de 2018

Em Alentejo

"Alentejo Terra de Escritores"

Vidigueira

Fialho de Almeida

Photo in http://wwwpoetanarquista.blogspot.com/

A sua carreira literária foi pautada por um estilo muito irregular, baseado no naturalismo; inspirou-se, principalmente, nas sensações reais, mórbidas e grosseiras, com temas repartidos entre os cenários urbanos e campestres.[1]

O seu estilo adoptou, nos finais do Século XIX, um espírito mais decadente, em concordância com os ideais em voga nessa época.[1]

Fialho de Almeida colaborou em diversas publicações periódicas, nomeadamente nos jornais humorísticos Pontos nos ii (1885-1891)[3]e A Comédia Portuguesa (fundado em 1888)[4], e também nas revistas: Renascença [5] (1878-1879?), A Mulher [6] (1879), O Pantheon (1880-1881),[7] Ribaltas e Gambiarras (1881),[8] Branco e Negro (1896-1898),[9] Brasil-Portugal (1899-1914),[10] Serões (1901-1911).[11] e, postumamente, na Revista de turismo [12]iniciada em 1916

Entre as suas obras mais notáveis, encontram-se os cadernos periódicos Os Gatos, redigidos entre 1889 e 1894, que seguiram a mesma linha crítica d' As Farpas, de Ramalho Ortigão.[1]

Vida pessoal e formação

Fialho de Almeida nasceu em Vila de Frades, Vidigueira, no dia 7 de Maio de 1857, filho de um mestre-escola.[1]

Realizou os estudos secundários num colégio de Lisboa, entre 1866 e 1871; empregou-se numa farmácia, e formou-se em Medicina, entre 1878 e 1885. Em 1893 voltou à sua terra natal, onde desposou uma senhora abastada, que faleceu logo no ano seguinte e da qual não teve descendência.[1]

Fialho de Almeida faleceu a 4 de Março de 1911, na localidade de Cuba[1], onde foi sepultado.[2]

Nunca exerceu medicina, tendo-se dedicado ao jornalismo e à literatura.[1] Tornou-se lavrador em Cuba, mas continuou a publicar artigos para jornais, e a escrever vários contos e crónicas.[1]

Fialho de Almeida por António Carneiro.

in Wikipédia

Num artigo de opimião, datado de 31 de Dezembro de 1910, e incluído no seu livro “Saibam Quantos…”, Fialho d?Almeida escrevia:

“Há três meses completos que esta Lisboa é uma imensa cloaca de “cidadonismo” arremangado e bestiaga, emporcalhando as ruas de manifestações sem objecto, e fazendo consistir a vida cívica n’um fervilhar d’escumalha que dá vivas e morras a heroes transitórios e a patriotasnos arrivistas. A gente tranquila pergunta quando é que esta feira d’alarves fingindo envergaduras de revolucionários conscientes, e quando é que a vida estudiosa e comercial reintegra outra vez Lisboa na sua pacatez d’estudo e de trabalho”

OS GATOS DE FIALHO DE ALMEIDA

Photo in https://en.wikipedia.org/wiki/Tabby_cat

Os Gatos (fragmento) de F. Almeida

Deus fez o homem à sua imagem e semelhança, e fez o crítico à semelhança do gato. Ao crítico deu ele, como ao gato, a graça ondulosa e o assopro, o ronron e a garra, a língua espinhosa e a calinerie. Fê-lo nervoso e ágil, refletido e preguiçoso; artista até ao requinte, sarcasta até à tortura, e para os amigos bom rapaz, desconfiado para os indiferentes, e terrível com agressores e adversários.

Um pouco lambareiro talvez perante as belas coisas, e um quase nada cético perante as coisas consagradas: achando a quase todos os deuses pés de barro, ventre de jibóia a quase todos os homens, e a quase todos os tribunais, portas travessas. – Amigo de fazer jongleries com a primeira bola de papel que alguém lhe atire, ou seja, um tratado, ou seja, um código.

Paciente em aguardar; manso e apagado, com um ar de mistério, horas e horas, a sortida dum rato pelos interstícios dum tapume, e pelando-se, uma vez caçada a presa, por fazer da agonia dela, uma distração: ora enrolando-a como um cigarro, entre as patinhas de veludo: ora fingindo que lhe concede a liberdade, e atirando-a ao ar, recebendo-a entre os dentes, roçando-se por ela e moendo-a, de a deixar num picado ou num frangalho.

Desde que nosso tempo englobou os homens em três categorias de brutos, o asno, o cão e o gato – isto é: o animal de trabalho, o animal de ataque, e o animal de humor e fantasia – por que, não escolhemos nós, o travesti do último? É o que se quadra mais ao nosso tipo, e aquele que melhor nos livrará da escravidão do asno, e das dentadas famintas do cachorro.

Razão por que nos achará aqui, leitor, miando pouco, arranhando sempre e não temendo nunca.

Vocabulário:

• Calinerie: apatia, indolência, afagos, mimos, meiguices, carinhos;

• Jongleries: jogos de mão, ligeirezas, hipocrisia, charlatanismo;

• Lambareiro: chocalheiro, guloso, amigo de lambarias, preguiçoso, madraço, pessoa que não sabe guardar segredos.

• Interstícios: intervalo, fenda, poro. Intervalo que separa as moléculas ou células de um corpo.

• Cético: que ou aquele que não confia em nada, que duvida, que é descrente, aquele que duvida do que não pode ser comprovado. Ceticismo: doutrina em que o espírito humano não pode atingir a certeza da verdade, o que resulta de um procedimento intelectual de dúvida permanente. É a absoluta falta de crença.

• Coriscava: produzia coriscos, faíscas elétricas.

• Viperinos: víboras.

• Iriadas: coloridas.

• Truculência: grosso, brutal, cruel, violento.

• Farândola: dança Provençal que se estrutura em pares, formando filas; bando de má-fama, grupos de vadios.

• Truanescos: truão; bobo, saltimbanco, mentiroso, impostor, mendigo, ladrão.

• Trautear: causar tédio e ou fastio, enganar, dar pancadas.

• Esbarrondar: desmoronar-se, tombar-se aos pedaços.

• Ambiciúnculas: ambição mesquinha.

• Cornucópia: chifres, vasos antigos que simbolizam a fertilidade, a riqueza e a abundância. Indivíduo que tem muitas posses.

• Sôfrega: pessoa voraz que tudo quer, esganado, impaciente por posses.

• Argentários: que recebe muito dinheiro, guardador ou colecionador de prata, indivíduo milionário.

• Sencerimonizado: sem cerimônia.

• Degenerescência: aquilo que degenera, que acaba, que declina.

• Diáteses: predisposição de um indivíduo a determinadas doenças; disposição moral mórbida e ou falsa.

• Empulhecidas: coisa ou pessoa empunhada, coisa que está segura, erguida.

• Canalhocracia: governo de canalhas.

• Penduricalhos: coisa pendurada, adornos, balangandã, condecoração de honra.

• Diatribes: {dia}=através de, movimento através de + {trib}= atrito + {es}. Indivíduo que vive através de brigas, atritos.

OBRA E AUTOR

Fialho de Almeida pertenceu ao Realismo/Naturalismo luso. Foi um naturalista de alma e seu conto O Corvo é conhecido no mundo todo. Ao lado de Ramalho Ortigão, Eça de Queirós e Antero de Quental modificou a conduta literária e o modo de ver as coisas, naquela época. A obra Os gatos foi inspirada nas Farpas de Ortigão. Os folhetins d’Os Gatos foram publicados em 1889 e caminha até 1894, são quase cinco anos de publicação mensal também intitulada: Publicação Mensal de Inquérito da Vida Portuguesa.

Obra de ataque e sarcasmo, pois destila fel contra instituições e pessoas; documenta tudo o que ocorre no país luso, em especial, sobre o Ultimatum Inglês (1890). Fotografa, com ironia, os acontecimentos cotidianos, como por exemplo: roubos nos conventos, Portugal sendo governado por esposas e filhas de ministros, o dia a dia dos nobres, sobre os pobres, os criminosos, os críticos etc.

Fialho foi um escritor revoltado devido ao ultimato e viveu contra os ingleses a vida toda. Dessa forma, termina por colocar, nos folhetins, muita raiva pessoal. Ficou tão preocupado com essas questões que perdeu terreno, nome e espaço na literatura, no teatro e nas artes. Redigiu a revista mensal exclusivamente e, durante muito tempo, bombardeou de escárnios a monarquia e o constitucionalismo na pessoa do soberano, dos ministros e dos políticos. O temperamento do autor, talvez pelas amaríssimas cruezas do começo de vida, era impetuoso e agreste. A linguagem coriscava ditos viperinos, a crítica borbulhava da sua pena em agressões, muitas vezes, plebéias. Essas atitudes tiram-no do rol dos privilegiados da crítica literária, afirma Massaud Moisés (1999).

Quando salienta: “Miando pouco, arranhando sempre e não temendo nunca” – exibia desta índole orgulhosa e ousada- a violência- num tiroteio sem regra. Logo no primeiro número, cravou garras felinas no reino de D. Luís, agatanhando-o de diatribes que não prima pela graça decente, diz Massaud.

Fialho não esgrimia com o delicado humorismo d’As Farpas: o sangue pingava dos seus ataques sarcásticos, por isso nunca se detinha diante da injúria. Nas frases aviltadas de plebeísmos, freqüentes vezes iriadas de belíssimos imprevistos, a truculência dita as idéias, embrulha-as, tece com elas uma farândola de gracejos truanescos. É um pandemônio de zombarias, continua Massaud.

Trauteou com ênfase teatral a ária pessimista dos que supunham moribunda a pátria portuguesa. Do seu macabro De profundis vinham clamores de desalento, maldições de anjo caído por culpas alheias, desdém satânicos contra os réus do drama. Nas Pasquinadas, “Ele aí vem... com o mesmo parlamento a esbarrondar de intrigas e ambiciúnculas corriqueiras, a mesma bobagem torva, a mesma falta de iniciativa nos caracteres, e esterilidade idêntica nos ventre das mulheres, no cérebro dos homens, e na cornucópia sôfrega dos argentários”. Sobre o parlamento ele dizia: Ah! não me falem nisso, é uma máquina singular: mete-se um burro, sai um deputado; faz-se do deputado um ministro, torna a sair o burro!

N’A esquina (...) “defeitos da educação geral que têm sencerimonizado os cursos por forma a, por exemplo, na vida oficial, não ser necessário a cabeça para nada, bastando notas e empenhos para o indivíduo chegar a certos postos, regulados por certos vencimentos; e também por uma degenerescência orgânica da gente, mal cruzada, comendo mal, com sangue preto (direto ou ricochetado do cruzamento brasileiro), estrelando precoce nos deboches, debatendo-se na garra das diáteses e hereditariamente empulhecidas por sessenta anos de avós políticos que fizeram do constitucionalismo uma canalhocracia estigmatizada a penduricalhos de Nossa Senhora da Conceição (...)” Há clareza sobre o preconceito que o autor detinha sobre brasileiros e negros.

No Barbear, pentear: “Os dirigentes (do país) são matéria humana podrida, escumalha cívica vivendo de prazeres tabéticos uma vida de inércia, entretida pela força do hábito, pelo favor dos reis ou desbaratado dos bens públicos” Sobre o povo....: “Povo! Não há povo”.A turba acéfala, alternadamente feroz e sentimental (tarada em todo o caso), que em Portugal faz às vezes de povo, é uma força de inércia sem a menor consciência de si própria, e que no estado de bestialidade africana em que jaz, tão cedo pode ter papel na marcha do país, restando-lhe continuar a ser explorada por caciques ou levada para o mal por papagaios de comício, no sentido das suas taras homicidas”.

Fialho foi um crítico gênio, evidenciou a verdade nua e crua e, se para alguns insinua de modo grosseiro, para outros, é um cultista que não teme, mas é temido. Para quê teimar nas transcrições de fragmentos instrutivos da estranha obsessão derrotista do autor? Pergunta Joaquim Ferreira em seu livro História da Literatura Portuguesa.

Quando Fialho escreve o País das Uvas faz alusão ao seu local de nascimento (1857-1911), pois o autor é natural de Vila de Frades (o país das uvas), encravado no Baixo Alentejo, viveu até o seu casamento rico em 1893- as agruras da vida pelintra, sustentada por uma mesada familiar, o que a uma amarga experiência de colégio interno e de balcão de uma baiúca de drogas, deve ter contribuído para o azedume de seu temperamento e para a sua confessa obsessão para a riqueza.

O amigo Sousa Martins reforça nele as convicções do determinismo da hereditariedade, do meio natural e social de vida, suas convicções já tinham sido divulgadas por Taine, pelo naturalismo, por Lombroso e por Max Nordau. Esta ideologia ligada aos recalques de plebeu do escritor, explica certos aspectos realistas de sua obra: as suas vibrantes páginas de simpatia pelos miseráveis, mendigos, pobres envergonhados, gente anônima de hospital, bairros imundos, casa de malta e suas campanhas de construção da moradia popular, sua luta pela democratização do ensino, mesmo o superior, nasciam desses realismos.

O crítico luso odiava a burguesia literária e a grande burguesia financeira, não tanto a burguesia agrária em que ingressou pelo casamento. Os desvios metafísicos do determinismo naturalista manifestam-se em sua obra: a raça é uma das preocupações do autor, por isso sonha como a nova burguesia dirigente: uma aristocracia de capacidades, em que naturalmente se inclui: concebe os senso estético como produto da casta apurada pela experiência da riqueza, pela seleção nupcial que ela permite; nas numerosas alusões autobiográficas deformantes, das quais a mais importante é o capítulo Eu de À Esquina, ora se revolta contra seu próprio plebeísmo irremediável, ora se inculca um degenerado superior, com requintes estéticos.

As suas críticas, diz Ferreira, padece de introspecções mórbidas, pois eram apenas confidências do escritor monologadas, em comentários mordacíssimos, ante figuras que ele desamava ou odiava. O seu efeito turbulento dispunha as brasas da polêmica nos escritos mais inocentes – na apreciação duma poesia, duma tela, dum necrológio. Os paradoxos chispavam em frases cáusticas, denotando uma mentalidade revolta.

Não eram as conclusões dum filósofo nem sequer a de um técnico preparado em educação racional para as análises objetivas dos problemas humanos: eram sim, as explosões fuzilantes do inconformismo na derrocada das suas esperanças, continua Ferreira.

Sua linguagem deflagra a indignação do sectário, que se vê contrariado em seus desejos e sonhos. Para Fialho de Almeida, a vida é uma farsa, a vida nacional descera a tamanha degradação, seus textos repetem com insistência maníaca: o povo luso não tem qualidade,, não tem autonomia, é um povo desvirilizado, incapaz de êxitos na civilização contemporânea. Suas falas eram marcadas sempre pelo tom negro, vestindo a sociedade de negruras, sem promessas para o amanhã.

O mérito genial de Almeida que entroniza na galeria dos imortais é a sua prosa, cheia de originalidade, energia máscula, ritmos adoráveis nas frases frementes, que o elevam à alta classe dum pujante prosador; esbatido e polemista verrinoso, pois é um escritor-joalheiro da prosa. Os vocábulos aliviam-lhe o pensamento, irradiando seduções pictóricas, enlaçando o leitor em liames de estesias solares. É um paisagista de contornos nítidos, um pintor de águas-fortes rubras da canícula alentejana, diz Ferreira (1979).

TEXTO CRÍTICO DO FRAGMENTO OS GATOS

O texto de Fialho (Os Gatos), segundo Massaud (1978, p. 381), fala por si, e demonstra, com todas as letras, os propósitos que animavam o autor. A escolha do gato para simbolizar a tríplice tendência traz a grande metáfora no folhetim realista. Fialho trabalha com a metamorfose, vai, pouco a pouco, transformando pessoas em felinos de garras afiadas, inclusive a si mesmo. A tríplice tendência representa:

1) A tendência do autor;

2) A da estética literária;

3) A literatura portuguesa.

O tom polêmico e azedo corria por conta da irritação do autor folhetinista, porventura despeitado por Ramalho e Eça terem mais prestígio ou pelo problema inglês, este último, pertencente a todo luso que se preze. Seus textos traduzem um pendor hipercrítico arraigado na Literatura Portuguesa desde os começos, com a cantiga de escárnio e de maldizer. O autor, em sua obra Os Gatos e, com seu gênero satírico e sua crítica desaforada subjetiva e inconseqüente, nutria, sem dúvida, um sonho verdadeiro de reforma sócio-cultural em seu país.

Não é o homem comum que Fialho ataca no texto, mas sim o crítico, este sim é como um gato: cheio de graça ondulosa, cheio de movimentos ligeiros, afagos e mimos, com sussurros e garras afiadas, língua cheia de espinhos e indolências. O crítico é nervoso, ágil, preguiçoso e refletido, é um artista de requinte e um animal sarcástico. O autor não escolheu este bicho à-toa; o felino é misterioso e fascinante ao mesmo tempo, uma mistura de coisa sensual e algo maldito. Tem sete vidas, o que leva a crer que críticos animalescos nunca morrem, têm uma língua eterna.

A metáfora trazida à baila por Fialho vestiu como uma luva todo crítico que fala muito, mas nada modifica. É ágil para sair e escapar de qualquer problema que surja de repente. Guloso, o crítico é um indivíduo que não guarda segredos, muito pelo contrário, ardiloso, utiliza-os ao seu bel prazer. É um quase nada cético, não se tortura diante de paradigmas, em seu mundo não há isto ou aquilo (sagrado), mesmo porque descrente (duvida de tudo), vive sem culpas ou pecados, tanto que define os deuses como pés de barro, simples estátuas, sem poderes; homens como ventre de jibóia e, tribunais como portas que brincam e fazem travessuras.

Todo crítico, segundo Fialho é sádico: goza com sua presa, e não a mata a um só golpe, delicia-se com a tortura lenta. Os homens (seres brutos) porque bichos dividem-se em três:

1) Animal de trabalho (homem);

2) Animal de ataque (cão);

3) Animal de humor e fantasia (gato)

Dada a divisão, é óbvio que o homem desejaria ser sempre um felino em lugar de um burro de carga; aos gatos ficam a tranqüilidade, a sensualidade e a beleza encantatória. O gato é um animal cheio de simbologias, está sempre metido em feitiçarias e catimbós, por seu mistério é ligado às bruxas e aos encantamentos.

O historiador francês Robert Darnton, em O Grande Massacre de Gatos evidencia o felino como representante número um do burguês, da fartura, do excesso de trato e de afagos. Este simbolizava a diferença gritante entre o modo de vida do operário e o do padrão. O gato, por exemplo, comia carne de primeira, enquanto que o empregado, a ração. Há uma ilustração dessa diferença na obra de Ariano Suassuna O auto da Compadecida, os empregados (personagens) trocavam suas comidas pela do bichinho da madame.

O gato, no decorrer da história das civilizações, simbolizou muita coisa: a extrema bondade, a ingenuidade, a extrema maldade, este bichinho, muitas vezes, representou o lado ruim tão somente, foi até associado ao demônio e à luxúria, durante o final da Idade Média e o início do Renascimento.

Às vezes, sua obra remete a um Gomes Leal (poeta realista) em que há sugestões de panteísmos gerais, o comando da personalidade pela potência misteriosa da terra, da vida anônima, da hereditariedade, do instinto sexual – ou sugere um Cesário Verde (poeta realista do cotidiano), um pulsar e um sofrer coletivo pela cidade, pelos bairros lôbregos, dos casarões hospitalares, uma dor, um gozo ou uma febre.

Seu sentimento de rivalidade literária o descontrola ao julgar Eça e Guilherme de Azevedo depois de mortos, mas exalta, ao mesmo tempo, o pessoalismo camiliano. Tem o culto pelo corpo belo, mas se compraz em descrever o aleijão, o enfezado, o esburrado pela doença e, sobretudo, os tipos decadentes como as condessinhas frágeis, a tísica gentil que gosta de ingerir pétalas de rosa. Ele próprio sente-se um decadente em sua sociedade também decadente.

Tem um estilo marcante nos contos País das Uvas, (1863; Cidade dos Vícios, (1882) e Os Gatos (1889-94 é a antropomorfização das paisagens, das plantas, a constante mitificação inconsciente das forças instintivas. Essas obras se consumam pela sugestão simbolista do mistério metafísico, do requinte sobrenatural de beleza, da plenitude mórbida da sensação.

A distorção do realismo é, até certo ponto, consciente em Fialho, que critica o preconceito naturalista da arte como objetividade fotográfica, e que, em compensação, sublinha a importância do estilo, atribuindo-se, a si como à sua geração, o papel de criação de uma nova linguagem plástica, como por exemplo: o arcaísmo, o galicismo, o regionalismo, o glossário médico, a fantasia sufixal e a etimologia do escritor, e que é riquíssimo em valores de evocação sensorial (fibrilhas, espiralitas, fosfenas, titilações, estrupidas, putrilagens etc).

À sinestesia, à notação preciosista, ao eixo barroco das percepções sensitivas de certos estados psicopatológicos correspondem às audácias de uma imaginação real ou alucinatória, o que se explica na descrição do Enterro de D. Luís n’Os Gatos em diversas equivalências plásticas e dramáticas. Toda obra de Fialho vibra numa tensão destinada a recuar os limites do inexpressivo, ele escreveu o melhor conjunto de contos da literatura lusa da época e, em muitas páginas, como por exemplo, Os ceifeiros.

Neste captou momentos inéditos da experiência humana, transcendendo certos limites do seu próprio âmbito social.

Seu amigo e admirador Manuel Teixeira Gomes que foi ministro, diplomata e presidente da República, o imitava no estilo. Fialho foi, sem dúvida, o principal formador do naturalismo, por intermédio de sua formação de estilo decadente*.

*SARAIVA, Antônio José. & LOPES, Oscar. História da Literatura Portuguesa. Porto: Editorial Porto, Portugal, s/d

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António Murteira

Canto Matinal | de Évora ao Cairo

o novo livro do autor eborense António Murteira

com a chancela das Edições Colibri

Lisboa | Casa do Alentejo

14 de novembro | sábado | 16 horas

Apresentação pela escritora

Carmo Miranda Machado

Com a participação de

Rosa Honrado Calado

Diretora da Casa do Alentejo

Fernando Mão de Ferro

Editor | Edições Colibri

Piano

Dinis Mendes

Leitura

Margarida Guerreiro

José Lourido

António Murteira

Anexo: Foto do autor e capa do livro

Sinopse

Canto Matinal

de Évora ao Cairo

O livro está organizado em quatro episódios, ficcionados a partir de acontecimentos ocorridos na cidade de Évora e no Alentejo, os quais, através do narrador e dos personagens, espelham algumas das mais prementes interrogações e sentimentos dos humanos no mundo contemporâneo: A estória de Violante e Pedro Páramo; Canto Matinal; Conversa numa esplanada do Cairo; A última carta de amor.

Os personagens de Canto Matinal - Violante, Pedro Páramo, João Rufino, o Velho, o Magricela, Ibn al Ândaluz, maria L., Hânelá e, até, Jonas, o cão - apreendem e evidenciam o essencial: em cada época histórica, os desafios são sempre novos e complexos. E os sonhos também.

Sobre o autor

António Murteira nasceu na aldeia de S. Mancos (Alentejo | Portugal). Vive em Évora.

Político (1971-1995). Engenheiro Técnico Agrário. Periodista free-lancer. Diretor executivo da Revista Alentejo. Escritor.

Tem viajado e vivido em África, na Europa e noutros lugares, em cidades como Luanda, Huambo, Bissau, Maputo, Moscovo, Paris, Havana, Lisboa ou Beja, Portalegre e Santiago do Cacém.

Esteve na Guerra Colonial, em Moçambique. Foi membro do Comité Central do Partido Comunista Português. Participou na Revolução de Abril e na Reforma Agrária. Foi eleito na Assembleia Municipal de Évora e Deputado à Assembleia da República.

Tem publicados os livros:

Azul e Branco e Ocre (1998), apresentado, em Lisboa, por Álvaro Cunhal; Dias Felizes (2000); adeus, azules (2002); Uma Revolução na Revolução | Reforma Agrária no Sul de Portugal (2004), pela Editora Campo das Letras (Porto);

e os livros A PAC e o futuro do Alentejo (dir. e texto, 2003); Até Amanhã | em Laetoli no Alentejo numa Lua (2010); Comeres com Poemas | Para Viver um Grande Amor (2012); Cultura a Sul | Alentejo (coletânea com diversos convidados, 2013), Canto Matinal | de Évora ao Cairo (2015), pelas Edições Colibri (Lisboa)."

Encontro com os nossos escritores

Um retrato da serra de Serpa

João Mário Caldeira, natural de Santo Aleixo da Restauração

Licenciado em História, levou uma vida dedicada ao ensino onde, para além das funções docentes, desempenhou cargos de direção e de orientação pedagógica em algumas escolas de ensino público e privado. Está aposentado, mas leciona a disciplina de História nas academias seniores de Serpa e de Moura. Participa com alguma regularidade em órgãos de informação e seminários sobre assuntos relacionados com o património local, especialmente sobre o Alentejo.

Não foi por acaso que Serpa foi a cidade escolhida para a apresentação de Quase só a voz do vento, de João Mário Caldeira. “A aparição do livro nesta cidade foi quase uma imposição”, explica o autor. A maior parte do romance decorre na serra de Serpa e depois “a Câmara de Serpa acarinhou e patrocinou a iniciativa”.

Depois do Discurso do Sol faltava Quase só a voz do vento?

Não me tinha dado conta que havia uma sucessão de elementos da natureza no título dos meus dois últimos livros, embora eles apareçam em contextos diferentes. O sol discursa no horizonte do anterior livro acompanhando a roda das estações no cenário das quais se movimentam os homens. A voz do vento, o título de agora, foi o que perdurou na serra de Serpa quando dela desapareceram os moradores que tinham concorrido para a sua mais personalizada história. Os verdadeiros “serrenhos” já lá não vivem. Ficou o vento. Entretanto posso dizer que é no tempo, condicionado pela natureza, que tudo acontece. Sem ele não havia História e muito menos histórias. Talvez daí a tendência para trazer à baila o sol e o vento sempre presentes desde que o homem existe, ora beneficiando-o, ora pregando-lhe partidas.

O que retrata este seu livro?

Fundamentalmente a vivência da gente heroica que habitou a serra de Serpa nos começos do século passado, vivência que não seria muito diferente dos que gastaram as suas vidas nas serras de todo o mundo onde as condições só excecionalmente são favoráveis. Ainda que baseado em factos concretos referentes à partilha da serra de Serpa, cuja complexidade daria um bom trabalho de história local, o clima que se vive no livro envereda em certos momentos por uma irrealidade só possível numa obra de ficção. Entretanto, como se refere na contracapa da publicação, alguma coisa se mantém de concreto: a alienação tardia de um baldio público, a migração para o local de pequenos agricultores sedentos de terra, as relações de vizinhança, de afetividade e de amor entre os residentes, a crendice de muitos, a malevolência de alguns, as perturbações de outros, a instabilidade ocorrida nos primeiros tempos da República, a dualidade entre os da serra e da planície, a crise interna do País agravada pela guerra de 1914/18.

O Alentejo, a margem esquerda do Guadiana, inevitavelmente estão entranhados na sua escrita?

Como não haviam de estar? Quem pode escapar a todo este ambiente que se bebeu com o leite e que a pouco e pouco tomou conta de nós? Só se pode escrever sobre o que se conhece, sobre o que nos impressiona, nos domina (por vezes de uma forma incómoda). A história do Alentejo, mormente a da primeira metade do século passado, tem muito de epopeico, o que é um desafio para quem escreve. Não se trata de bairrismo nem coisa parecida, mas sim de uma espécie de mandato que nos impele a falar da nossa gente, única no panorama nacional, condicionada a fatores que radicam desde há muito na discriminação social e económica procedente de uma história injusta. A margem esquerda do Guadiana não será muito diferente do Alentejo em geral mas é, sem dúvida, uma região mais pobre, subjugada por uma interioridade que sempre a marcou, motivo pelo qual clama de forma mais insistente por quem lhe descubra as diferenças, em que as dificuldades são a regra, começando pela esturreira do sol. Talvez, por isso, o cante tenha aqui uma forma mais pungente de se afirmar, talvez que aqui a memória esteja mais eivada de sofrimento, a revolta seja maior, haja mais orgulho em dizermos que somos daqui. Isso me leva a escrever sobre esta gente a que pertenço, que é a minha. Quase uma obrigação.

Bruna Soares

(in http://da.ambaal.pt/noticias/?id=6416)

"Passou sobre a casa o tempo de quatro gerações, tempo suficiente para que nela acontecessem muitas coisas, umas mais estranhas do que outras. Das mais trágicas foi a que ocorreu no dia em que um dos elementos da família matou a irmã com um tiro de caçadeira e depois se afogou no poço que havia em frente. No mesmo poço outro suicídio se deu quando no local só havia um abrigo provisório, facto de que há notícia gravada numa rocha. Exceptuando casos tão graves, tudo ali decorreu em aparente normalidade, ao contrário do que sucedeu em volta, onde acontecimentos estranhos assombraram o sossego dos moradores. "

"Sob um céu que muda de semblante conforme as estações, decorre um tempo pesado, vivido em época não muito distante pelos naturais do sul do Alentejo a que se reportam as crónicas deste livro. Nelas há um propósito, não claramente explícito, de justificar atitudes e comportamentos das pessoas. A gente austera que aí se evoca, senhora de si, vertical , solidária, sobrevivendo num mar de terra que nunca lhe pertenceu, persiste no livro contrapondo ao dramatismo da existência uma ironia sem paralelo no epaço nacional. "

"Lendo este romance, o leitor não se sente só contagiado pela simpatia que a personagem principal nele provoca; ele sente-se igualmente motivado pela curiosidade despertada pela descoberta de outras épocas, de outras formas de vida, de outras realidades que percepciona como verdadeiras e que lhe alargam os horizontes existenciais. Este romance cumpre, deste modo, uma das funções maiores reservadas à boa literatura e que muitas vezes tão arredada está daquilo que se publica contemporaneamente - refiro-me, claro está, à função de "educar deleitando", máxima grande de todos os grandes. "

"Numa aldeia do interior alentejano, assolada pela crise que varreu a região em meados do século XX, desenrola-se um trágico confronto entre vizinhos relativo às "terras do povo" que formam o baldio adjacente à povoação. Assentando o romance neste tema, o autor elege uma jovem mulher da aldeia que, embora não participando directamente no conflito, paira como contraponto sobre a marcha dos acontecimentos, envolvida numa sucessão de experiências amorosas que justificam o seu desassossego sentimental. " (Sinopses das Ed.Colibri)

A Margem Esquerda do Guadiana – As Gentes, a Terra, os Bichos

"A partir de textos que ao longo do tempo João Mário Caldeira foi publicando em jornais e revistas ou apresentado em encontros e congressos, nasce o livro Margem Esquerda do Guadiana: As Gentes, a Terra, os Bichos.

Os escritos coligidos sobre a Margem Esquerda do Guadiana, espaço alentejano confinado ao curso do rio e à fronteira com a Espanha, apresentavam-se, segundo o autor, como uma manta de retalhos policroma. Daí que combinar temas de modo a conferir unidade ao conjunto de textos tenha sido, para João Mário, quase como combinar cores.

Três grandes temas foram estabelecidos, sendo a sua abordagem principalmente etnológica. No primeiro, as Gentes, reuniram-se textos que versavam sobre as gentes da Margem Esquerda no geral, bem como sobre as diferentes profissões tradicionais. No segundo, a Terra, agruparam-se escritos referentes à comida alentejana, às festividades, à arquitectura tradicional, ao fabrico do queijo de ovelha, às fortificações medievais de Serpa, à problemática dos centros históricos e ainda reflexões sobre a posse da terra e o desenvolvimento rural. Por último, em os Bichos, juntaram-se dados sobre o meio ambiente, chamando ao palco bichos e plantas da região. Nesse contexto, fazem-se referências às actividades venatórias e de pesca no rio. " (in CM de Serpa)