Debora Bolsoni

Noli me tangere e o nitrato de amônio


Epiderme de todos os gêneros, a tepes tem cheiro acre.

Vê-se primeiramente no exterior, embora seus inchaços acometam a vida desde as entranhas.

Por ser tão parte dos fluxos, julgam-na inócua - e na maior parte do tempo o é.

O que a redime é o fato de que há vidas que prescindem de epiderme.


Hoje se sabe que vidas não epidérmicas emergem de regiões submarinas, por exemplo. Acredita-se que tal fenômeno possa estar relacionado a antigos naufrágios.


Cogita-se que bandeiras de quarentena tremularam nas embarcações afundadas justamente nas regiões em que hoje se dispersa vidas não epidérmicas. Seriam portanto estas vidas formas evoluídas de existência, imunes à tepes? Ou tal conjectura seria apenas uma variante de nossa recusa em conceber que o não-humano nos supera não só em sua sobrevida, mas também em sua indiferença, por nós, meros mortais.


No Líbano, ontem, 2750 toneladas de nitrato de amônio, parte importante de compostos para fertilizar o solo, se aqueceu para além de sua condição física estável. Inchou-se e explodiu. Espera-se chuva ácida em toda a região onde seus gases se dispersaram. Às vidas epidérmicas pede-se que mantenham seus corpos devidamente protegidos.


Não me toque, ou noli me tangere - já dizia o personagem central de um livro sagrado. Não necessites me tocar para perceber aquilo que digo.


Ago. 2020