Alberto Caeiro é o heterônimo bucólico de Fernando Pessoa, considerado o mestre entre todos os outros.
Sua poesia concentra-se na simplicidade do olhar: ver o mundo tal como é, sem metáforas nem interpretações ocultas. O campo, os animais, o vento e o sol aparecem como presenças imediatas e suficientes em si mesmas.
Para Caeiro, pensar demais é um desvio — basta sentir. É dele que Ricardo Reis e Álvaro de Campos recebem inspiração, reconhecendo nele uma figura quase mítica, um guia que ensina a viver com naturalidade e aceitação.
Este livro contém, para além das poesias do livro O Guardador de Rebanhos, cartas e textos dos outros heterônimos de Fernando Pessoa, nos quais falam sobre e para Alberto Caeiro.
Eu nunca guardei rebanhos,
mas é como se os guardasse.
Minha alma é como um pastor,
conhece o vento e o sol
e anda pela mão das Estações,
a seguir e a olhar.
Toda a paz da Natureza sem gente
vem sentar-se a meu lado.
Mas eu fico triste como um pôr do sol
para a nossa imaginação,
quando esfria no fundo da planície
e se sente a noite entrada
como uma borboleta pela janela.
Mas a minha tristeza é sossego,
porque é natural e justa,
e é o que deve estar na alma
quando já pensa que existe
e as mãos colhem flores sem ela dar por isso.
Como um ruído de chocalhos
para além da curva da estrada,
os meus pensamentos são contentes.
Só tenho pena de saber que eles são contentes,
porque, se o não soubesse,
em vez de serem contentes e tristes,
seriam alegres e contentes.
Pensar incomoda como andar à chuva,
quando o vento cresce e parece que chove mais.
Não tenho ambições nem desejos.
Ser poeta não é uma ambição minha;
é a minha maneira de estar sozinho.
E se desejo às vezes,
por imaginar, ser cordeirinho
(ou ser o rebanho todo
para andar espalhado por toda a encosta
a ser muita coisa feliz ao mesmo tempo),
é só porque sinto o que escrevo ao pôr do sol,
ou quando uma nuvem passa a mão por cima da luz
e corre um silêncio pela erva fora.
Quando me sento a escrever versos
ou, passeando pelos caminhos ou pelos atalhos,
escrevo versos num papel que está no meu pensamento,
sinto um cajado nas mãos
e vejo um recorte de mim
no cimo dum outeiro,
olhando para o meu rebanho e vendo as minhas ideias,
ou olhando para as minhas ideias e vendo o meu rebanho,
e sorrindo vagamente como quem não compreende o que se diz
e quer fingir que compreende.
Saúdo todos os que me lerem,
tirando-lhes o chapéu largo
quando me veem à minha porta
mal a diligência levanta no cimo do outeiro.
Saúdo-os e desejo-lhes sol,
e chuva, quando a chuva é precisa,
e que as suas casas tenham
ao pé de uma janela aberta
uma cadeira predileta
onde se sentem, lendo os meus versos.
E ao lerem os meus versos pensem
que sou qualquer coisa natural —
por exemplo, a árvore antiga
à sombra da qual, quando crianças,
se sentavam com um baque, cansados de brincar,
e limpavam o suor da testa quente
com a manga do bibe riscado.
poema completo
Num meio-dia de fim de Primavera
Tive um sonho como uma fotografia.
Vi Jesus Cristo descer à terra.
Veio pela encosta de um monte
Tornado outra vez menino,
A correr e a rolar-se pela erva
E a arrancar flores para as deitar fora
E a rir de modo a ouvir-se de longe.
Tinha fugido do céu.
Era nosso demais para fingir
De segunda pessoa da Trindade.
No céu era tudo falso, tudo em desacordo
Com flores e árvores e pedras.
No céu tinha que estar sempre sério
E de vez em quando de se tornar outra vez homem
E subir para a cruz, e estar sempre a morrer
Com uma coroa toda à roda de espinhos
E os pés espetados por um prego com cabeça,
E até com um trapo à roda da cintura
Como os pretos nas ilustrações.
Nem sequer o deixavam ter pai e mãe
Como as outras crianças.
O seu pai era duas pessoas —
Um velho chamado José, que era carpinteiro,
E que não era pai dele;
E o outro pai era uma pomba estúpida,
A única pomba feia do mundo
Porque não era do mundo nem era pomba.
E a sua mãe não tinha amado antes de o ter.
Não era mulher: era uma mala
Em que ele tinha vindo do céu.
E queriam que ele, que só nascera da mãe,
E nunca tivera pai para amar com respeito,
Pregasse a bondade e a justiça!
Um dia que Deus estava a dormir
E o Espírito Santo andava a voar,
Ele foi à caixa dos milagres e roubou três.
Com o primeiro fez que ninguém soubesse que ele tinha fugido.
Com o segundo criou-se eternamente humano e menino.
Com o terceiro criou um Cristo eternamente na cruz
E deixou-o pregado na cruz que há no céu
E serve de modelo às outras.
Depois fugiu para o Sol
E desceu pelo primeiro raio que apanhou.
Hoje vive na minha aldeia comigo.
É uma criança bonita de riso e natural.
Limpa o nariz ao braço direito,
Chapinha nas poças de água,
Colhe as flores e gosta delas e esquece-as.
Atira pedras aos burros,
Rouba a fruta dos pomares
E foge a chorar e a gritar dos cães.
E, porque sabe que elas não gostam
E que toda a gente acha graça,
Corre atrás das raparigas
Que vão em ranchos pelas estradas
Com as bilhas às cabeças
E levanta-lhes as saias.
A mim ensinou-me tudo.
Ensinou-me a olhar para as coisas.
Aponta-me todas as coisas que há nas flores.
Mostra-me como as pedras são engraçadas
Quando a gente as tem na mão
E olha devagar para elas.
Diz-me muito mal de Deus.
Diz que ele é um velho estúpido e doente,
Sempre a escarrar no chão
E a dizer indecências.
A Virgem Maria leva as tardes da eternidade a fazer meia.
E o Espírito Santo coça-se com o bico
E empoleira-se nas cadeiras e suja-as.
Tudo no céu é estúpido como a Igreja Católica.
Diz-me que Deus não percebe nada
Das coisas que criou —
«Se é que ele as criou, do que duvido.» —
«Ele diz, por exemplo, que os seres cantam a sua glória,
Mas os seres não cantam nada.
Se cantassem seriam cantores.
Os seres existem e mais nada,
E por isso se chamam seres.»
E depois, cansado de dizer mal de Deus,
O Menino Jesus adormece nos meus braços
E eu levo-o ao colo para casa.
……
Ele mora comigo na minha casa a meio do outeiro.
Ele é a Eterna Criança, o deus que faltava.
Ele é o humano que é natural,
Ele é o divino que sorri e que brinca.
E por isso é que eu sei com toda a certeza
Que ele é o Menino Jesus verdadeiro.
E a criança tão humana que é divina
É esta minha quotidiana vida de poeta,
E é porque ele anda sempre comigo que eu sou poeta sempre.
E que o meu mínimo olhar
Me enche de sensação,
E o mais pequeno som, seja do que for,
Parece falar comigo.
A Criança Nova que habita onde vivo
Dá-me uma mão a mim
E a outra a tudo que existe
E assim vamos os três pelo caminho que houver,
Saltando e cantando e rindo
E gozando o nosso segredo comum
Que é o de saber por toda a parte
Que não há mistério no mundo
E que tudo vale a pena.
A Criança Eterna acompanha-me sempre.
A direcção do meu olhar é o seu dedo apontando.
O meu ouvido atento alegremente a todos os sons
São as cócegas que ele me faz, brincando, nas orelhas.
Damo-nos tão bem um com o outro
Na companhia de tudo
Que nunca pensamos um no outro,
Mas vivemos juntos e dois
Com um acordo íntimo
Como a mão direita e a esquerda.
Ao anoitecer brincamos as cinco pedrinhas
No degrau da porta de casa,
Graves como convém a um deus e a um poeta,
E como se cada pedra
Fosse todo um universo
E fosse por isso um grande perigo para ela
Deixá-la cair no chão.
Depois eu conto-lhe histórias das coisas só dos homens
E ele sorri, porque tudo é incrível.
Ri dos reis e dos que não são reis,
E tem pena de ouvir falar das guerras,
E dos comércios, e dos navios
Que ficam fumo no ar dos altos mares.
Porque ele sabe que tudo isso falta àquela verdade
Que uma flor tem ao florescer
E que anda com a luz do Sol
A variar os montes e os vales
E a fazer doer aos olhos os muros caiados.
Depois ele adormece e eu deito-o.
Levo-o ao colo para dentro de casa
E deito-o, despindo-o lentamente
Ecomo seguindo um ritual muito limpo
E todo materno até ele estar nu.
Ele dorme dentro da minha alma
E às vezes acorda de noite
E brinca com os meus sonhos.
Vira uns de pernas para o ar,
Põe uns em cima dos outros
E bate as palmas sozinho
Sorrindo para o meu sono.
……
Quando eu morrer, filhinho,
Seja eu a criança, o mais pequeno.
Pega-me tu ao colo
E leva-me para dentro da tua casa.
Despe o meu ser cansado e humano
E deita-me na tua cama.
E conta-me histórias, caso eu acorde,
Para eu tornar a adormecer.
E dá-me sonhos teus para eu brincar
Até que nasça qualquer dia
Que tu sabes qual é.
……
Esta é a história do meu Menino Jesus.
Por que razão que se perceba
Não há-de ser ela mais verdadeira
Que tudo quanto os filósofos pensam
E tudo quanto as religiões ensinam?
s.d.
“O Guardador de Rebanhos”. In Poemas de Alberto Caeiro. Fernando Pessoa. (Nota explicativa e notas de João Gaspar Simões e Luiz de Montalvor.) Lisboa: Ática, 1946 (10ª ed. 1993). - 32.
“O Guardador de Rebanhos”. 1ª publ. in Presença, nº 30. Coimbra: Jan.-Fev. 1931.