A cidade e as serras- Eça de Queirós

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No moinho




    D. Maria da Piedade era considerada em toda a vila como «uma senhora-modelo». O velho Nunes, director do Correio, sempre que se falava nela, dizia, acariciando com autoridade os quatro pêlos da calva:    — É uma santa! É o que ela é! A vila tinha quase orgulho na sua beleza delicada e tocante; era uma loura, de perfil fino, a pele ebúrnea, e os olhos escuros de um tom de violeta, a que as pestanas longas escureciam mais o brilho sombrio e doce. Morava ao fim da estrada, numa casa azul de três sacadas; e era, para a gente que às tardes ia fazer o giro até ao moinho, um encanto sempre novo vê-la por trás da vidraça, entre as cortinas de cassa, curvada sobre a sua costura, vestida de preto, recolhida e séria. Poucas vezes safa. O marido, mais velho que ela, era um inválido, sempre de cama, inutilizado por uma doença de espinha; havia anos que não descia à rua; avistavam-no às vezes também à janela, murcho e trôpego, agarrado à bengala, encolhido no robe-de-chambre, com uma. face macilenta, a barba desleixada e com um barretinho de seda enterrado melancolicamente até ao cachaço. Os filhos, duas rapariguitas e um rapaz, eram também doentes, crescendo pouco e com dificuldade, cheios de tumores nas orelhas, chorões e tristonhos. A casa, interiormente, parecia lúgubre. Andava -se em pontas dos pés, porque o senhor, na excitação nervosa que lhe davam as insónias, irritava -se com o menor rumor, havia sobre as cómodas alguma garrafada da botica, alguma malga com papas de linhaça;. as mesmas flores com que ela, no seu arranjo e no seu gosto de frescura, ornava as mesas, depressa murchavam naquele ar abafado de febre, nunca renovado por causa das correntes de ar; e era uma tristeza ver sempre algum dos pequenos ou de emplastro sobre a orelha, ou a um canto do canapé, embrulhado em cobertores com uma amarelidão de hospital.    Maria da Piedade vivia assim, desde os Vinte anos. Mesmo em solteira, em casa dos pais, a sua existência fora triste. A mãe era uma criatura desagradável e azeda; o pai, que se empenhara pelas tavernas e pelas batotas, já velho, sempre bêbedo, os dias que aparecia em casa passava-os à lareira, num silêncio sombrio, cachimbando e escarrando para as cinzas. Todas as semanas desancava a mulher. E quando João Coutinho pediu Maria em casamento, apesar de doente já, ela aceitou, sem hesitação, quase com reconhecimento, para salvar o casebre da penhora, não ouvir mais os gritos da mãe, que a faziam tremer, rezar, em cima no seu quarto, onde a chuva entrava pelo telhado. Não amava o marido decerto; e mesmo na vila tinha-se lamentado que aquele lindo rosto de Virgem Maria, aquela figura de fada, fosse pertencer ao Joãozinho Coutinho, que desde rapaz fora sempre entrevado. O Coutinho, por morte do pai, ficara rico, e ela, acostumada por fim àquele marido rabugento, que passava o dia arrastando-se sombriamente da sala para a alcova, ter -se-ia resignado, na, sua natureza de enfermeira e de consoladora, se os filhos ao menos tivessem nascido sãos e robustos. Más aquela família que lhe vinha com o sangue viciado, aquelas existências hesitantes, que depois pareciam apodrecer-lhe nas mãos, apesar dos seus cuidados inquietos, acabrunhavam -na. Às vezes, só, picando a sua costura, corriam-lhe as lágrimas pela face: uma fadiga da vid a invadia-a, como uma névoa que lhe escurecia a alma.        Mas se o marido de dentro chamava desesperado, ou um dos pequenos choramingava, lá limpava os olhos, lá aparecia com a sua bonita face tranquila, com alguma palavra consoladora, compondo a almofada a um, indo animar o outro, feliz em ser boa. Toda a sua ambição era ver o seu pequeno mundo bem tratado e bem acarinhado. Nunca tivera desde casada uma curiosidade, um desejo, um capricho: nada a interessava na Terra senão as horas dos remédios e o sono dos seus doentes. Todo o esforço lhe era fácil quando era para os contentar: apesar de fraca, passeava horas trazendo ao colo o pequerrucho, que era o mais impertinente, com as feridas que faziam dos seus pobres beicinhos uma crosta escura: durante as insónias do marido não dormia também, sentada ao pé da cama, conversando, lendo-lhe as «Vidas dos Santos», porque o pobre entrevado ia caindo em devoção. De manhã estava um pouco mais pálida, mas toda correcta no seu vestido preto, fresca, com os bandós bem lustrosos, fazendo -se bonita para ir dar — as sopas de leite aos pequerruchos. A sua única distracção era à tarde sentar -se à janela com a sua costura, e a pequenada em roda, aninhada no chão, brincando tristemente. A mesma paisagem que ela via da janela era tão monótona como a sua vida: em baixo a estrada, depois uma ondulação de campos, uma terra magra plantada aqui e além de oliveiras e, erguendo -se ao fundo, uma colina triste e nua, sem uma casa, uma árvore, um fumo de casal que pusesse naquela solidão de terreno pobre uma nota humana e viva.    Vendo-a assim tão resignada e tão sujeita, algumas senhoras da vila afirmavam que ela era beata: todavia ninguém a avistava na igreja, a não ser ao domingo, com o pequerrucho mais velho pela mão, todo pálido no seu vestido de veludo azul. Com efeito, a sua devoção limitava-se a esta missa todas as semanas. A sua casa ocupava -a muito para se deixar invadir pelas preocupações do Céu; naquele dever de boa mãe, cumprido com amor, encontrava uma satisfação suficiente à sua sensibilidade; não necessitava adorar santos ou enternecer -se com Jesus. Instintivamente mesmo pensava que toda a afeição excessiva dada ao Pai do Céu, todo o tempo gasto em se arrastar pelo confessionário ou aos pés do oratório, seria uma diminuição cruel no seu cuidado de enfermeira: a sua maneira de rezar era velar os filhos: e aquele pobre marido pregado numa cama, todo dependente dela, tendo -a só a ela, parecia-lhe ter mais direito ao seu fervor que o outro, pregado numa cruz, tendo para o amimar toda uma humanidade pronta. Além disso nunca tivera estas sentimentalidades de alma triste que levam â devoção. O seu longo hábito de dirigir uma casa de doentes, de ser ela o centro, a força, o amparo daqueles inválidos tornara -a terna, mas prática: e assim era ela que administrava agora a casa do marido, com um bom senso que a afeição dirigia, uma solicitude de mãe próvida. Tais ocupações bastavam para entreter o seu dia: o marido, de resto, detestava visitas, o aspecto de caras saudáveis, as comiserações de cerimónia; e passavam -se meses sem que em casa de Maria da Piedade se ouvisse outra voz estranha â família, a não ser a do dr. Abílio — que a adorava, e que dizia dela com os olhos esgazeados:    É uma fada! É uma fada!...    Foi por isso grande a excitação na casa, quando João Coutinho recebeu uma carta de seu primo Adrião, que lhe anunciava que em duas ou três semanas ia chegar à vila. Adrião era um homem célebre, e o marido de Maria da Piedade tinha naquele parente um orgulho enfático. Assinara mesmo um jor nal de Lisboa, só para ver o seu nome nas locais e na crítica. Adrião era um romancista: e o último livro, «Madalena», um estudo de mulher trabalhado a grande estilo, de uma análise delicada e subtil, consagrara-o como um mestre. A sua fama, que chegara até à vila, num vago de legenda, apresentava-o como uma personalidade interessante, um herói de Lisboa, amado das fidalgas, impetuoso e brilhante, destinado a uma alta situação no Estado. Mas realmente na vila era sobretudo notável por ser primo do João Coutinho.    D. Maria da Piedade ficou aterrada com esta visita. Via já a sua casa em confusão com a presença do hóspede extraordinário. Depois a necessidade de fazer mais toilette, de alterar a hora do jantar, de conversar com um literato, e tantos outros esforços cruéis!... E a brusca invasão daquele mundano, com as suas malas, o fumo do seu charuto, a sua alegria de são, na paz triste do seu hospital, dava-lhe a impressão apavorada de uma profanação. Foi por isso um alívio, quase um reconhecimento, quando Adrião chegou, e muito simplesmente se instalou na antiga estalagem do Tio André, à outra extremidade da vila. João Coutinho escandalizou -se: tinha já o quarto do hóspede preparado, com lençóis de rendas, uma colcha de damasco, pratas sobre a cómoda, e queria-o todo p ara si, o primo, o homem célebre, o grande autor... Adrião, porém recusou:    — Eu tenho os meus hábitos, vocês têm os seus... Não nos contrariemos, hem?... O que faço é vir cá jantar. De resto, não estou mal no Tio André... Vejo da janela um moinho e uma represa que são um quadrozinho delicioso... E ficamos amigos, não é verdade?    Maria da Piedade olhava-o assombrada: aquele herói, aquele fascinador por quem choravam mulheres, aquele poeta que os jornais glorificavam, era um sujeito extremamente simples — muito menos complicado, menos espectaculoso que o filho do recebedor! Nem formoso era: e com o seu chapéu desabado sobre uma face cheia e barbuda, a quinzena de flanela caindo à larga num corpo robusto e pequeno, os seus sapatos enormes, parecia-lhe a ela um dos caçadores de aldeia que às vezes encontrava, quando de mês a mês ia visitar as fazendas do outro lado do rio. Além disso não fazia frases; e a primeira vez que veio jantar, falou apenas, com grande bonomia, dos seus negócios. Viera por eles. Da fortuna do pai, a única terra que não estava — devorada, ou abominavelmente hipotecada, era a Curgossa, uma fazenda ao pé da vila, que andava além disso mal arrendada... O que ele desejava era vendé-la. Mas isso parecia-lhe a ele tão difícil como fazer a «Ilíada»! ... E lamentava sinceramente ver o primo ali, inútil sobre uma cama, sem o poder ajudar nesses passos a dar com os proprietários da vila. Foi por isso, com grande alegria, que ouviu João Coutinho declarar-lhe que a mulher era uma administradora de primeira ordem, e hábil nestas questões como um antigo rábula!...    — Ela vai contigo ver a fazenda, fala com o Teles, e arranja -te isso tudo... E na questão de preço, deixa-a a ela!...    — Mas que superioridade, prima! — exclamou Adrião maravilhado. — Um anjo que entende de cifras!Pela primeira vez na sua existência Maria da Piedade corou com a palavra de um homem. De resto prontificou-se logo a ser a procuradora do primo...    No outro dia foram ver a fazenda. Como ficava perto, e era um dia de Março fresco e claro, partiram a pé. Ao princípio, acanhada por aquela companhia de um leão, a pobre senhora caminhava junto dele com o ar de um pássaro assustado: apesar de ele ser tão simples, havia na sua figura enérgica e musculosa, no timbre rico da sua voz, nos seus olhos pequenos e luzidios alguma coisa de forte, de dominante, que a enleava. Tinha -se-lhe prendido à orla do seu vestido um galho de silvado, e como ele se abaixara para o desprender delicadamente, o contacto daquela mão branca e fina de artista na orla da sua saia incomodou-a singularmente. Apressava o passo para chegar bem depressa à fazenda, aviar o negócio com o Teles, e voltar imediatamente a refugiar -se, como no seu elemento próprio, no ar abafado e triste do seu hospital. Mas a estrada estendia -se, branca e longa, sob o sol tépido — e a conversação de Adrião foi-a lentamente acostumando à sua presença.    Ele parecia desolado daquela tristeza da casa. Deu-lhe alguns bons conselhos: o que os pequenos necessitavam era ar, sol, uma outra vida que aquele abafamento de alcova...Ela também assim o julgava: mas quê!, o pobre João, sempre que se lhe falava de ir passar algum tempo à quinta, afligia -se ri terrivelmente: tinha horror aos grandes ares e aos grandes horizontes: a Natureza forte fazia-o quase desmaiar; tor nara-se um ser artificial, encafuado entre os cortinados da cama...Ele então lamentou-a. Decerto poderia haver alguma satisfação num dever tão santamente cumprido... Mas enfim, ela devia ter momentos em que desejasse alguma outra coisa além daquelas quatro paredes, impregnadas do bafo da doença...    — Que hei-de eu desejar mais? — disse ela. Adrião calou-se: pareceu-lhe absurdo supor que ela desejasse, realmente, o Chiado ou o Teatro da Trindade... No que ele pensava era noutros apetites, nas ambições do coração insatisfeito... Mas isto pareceu-lhe tão delicado, tão grave de dizer àquela criatura virginal e séria — que falou da paisagem...    — Já viu o moinho? — perguntou-lhe ela. — Tenho vontade de o ver, se mo quiser ir mostrar, prima. — Hoje é tarde. Combinaram logo ir visitar esse recanto de verdura, que era o idílio da vila. Na fazenda, a longa conversa com o Teles criou uma aproximação maior entre Adrião e Maria da Piedade. Aquela venda, que ela discutia com uma astúcia de aldeã, punha entre eles como. que um interesse comum. Ela falou-lhe já com menos reserva quando voltaram. Havia nas maneiras dele, de um respeito tocante, uma atracção que a seu pesar a levava a revelar -se, a dar-lhe a sua confiança: nunca falara tanto a ninguém: a ninguém jamais deixara ver tanto da melancolia oculta que errava constantemente na sua alma. De resto as suas queixas eram sobre a mesma dor — a tristeza do seu interior, as doenças, tantos cuidados graves... E vinha-lhe por ele uma simpatia, como um indefinido desejo de o ter s empre presente. desde que ele se tornava assim depositário das suas tristezas.    Adrião voltou para o seu quarto, na estalagem do André. impressionado, interessado por aquela criatura tão triste e tão doce. Ela destacava sobre o mundo de mulheres que até ali conhecera, como um perfil suave de anjo gótico entre fisionomias de mesa -redonda. Tudo nele concordava deliciosamente: o ouro do cabelo, a doçura da voz, a modéstia na melancolia, a linha casta, fazendo um ser delicado e tocante, a que mesmo o seu pequenino espírito burguês, certo fundo rústico de aldeã e uma leve vulgaridade de hábitos davam um encanto: era um anjo que vivia há muito tempo numa vilota grosseira e estava por muitos lados preso às trivialidades do sítio: mas bastaria um sopro para o fazer remontar ao céu natural, aos cimos puros da sentimentalidade...    Achava absurdo e infame fazer a corte â prima... Mas involuntariamente pensava no delicioso prazer de fazer bater aquele coração que não estava deformado pelo espartilho, e de pôr enfim os seus lábios numa face onde. não houvesse pós de arroz... E o que o tentava sobretudo era pensar que poderia percorrer toda a província em Portugal, sem encontrar nem aquela linha de corpo, nem aquela virgindade tocante de alma adormecida... Era uma ocasião que não voltava.    O passeio ao moinho foi encantador. Era um recanto de natureza, digno de Corot, sobretudo à hora do meio -dia em que eles lá foram, com a frescura da verdura, a sombra recolhida das grandes árvores, e toda a sorte de murmúrios de água corrente, fugindo, reluzindo entre os musgos e as pedras, levando e espalhando no ar o frio da folhagem, da relva, por onde corriam cantando. O moinho era de um alto pitoresco, com a sua velha edificação de pedra secular, a sua roda. enorme, quase podre, coberta de ervas, imóvel sobre a, gelada limpidez da água escura. Adrião achou-o digno de uma cena de romance, ou, melhor, da morada de uma fada. Maria da Piedade não dizia nada, achando extraordinária aquela admiração pelo moinho abandonado do Tio Costa. Como ela vinha um pouco cansada, sentaram-se numa escada desconjuntada de pedra, que mergulhava na água da represa os últimos degraus: e ali ficaram uni momento calados, no encanto daquela frescura murmurosa, ouvindo as aves piarem nas ramas. Adrião via -a de perfil , um pouco curvada, esburacando com a ponteira do guarda -sol as ervas bravas que invadiam os degraus: era deliciosa assim, tão branca, tão loura, de uma linha tão pura sobre o fundo azul do ar: o seu chapéu era de mau gosto, o seu mantelete antiquado, mas ele achava nisso mesmo uma ingenuidade picante. O silêncio dos campos em redor isolava-os — e, insensivelmente, ele começou a falar-lhe baixo. Era ainda a mesma compaixão pela melancolia da sua existência naquela triste vila, pelo seu destino de enfermeira... Ela escutava-o de olhos baixos, pasmada de se achar ali tão só com aquele homem tão robusto, toda receosa e achando um sabor delicioso ao seu receio... Houve um momento em que ele falou do encanto de ficar ali para sempre na vila.    — Ficar aqui? Para quê? — perguntou ela, sorrindo. — Para quê? Para isto, para estar sempre ao pé de si... Ela cobriu-se de um rubor, o guarda-solinho escapou-lhe das mãos. Adrião receou tê-la ofendido, e acrescentou logo rindo:    — Pois não era delicioso?... Eu podia alugar este moinho, fazer -me moleiro... A prima havia de me dar a sua freguesia...Isto fê-la rir; era mais linda quando ria: tudo brilhava nela, os dentes, a pele, a cor do cabelo. Ele continuou gracejando, com o seu plano de se fazer moleiro, e de ir pela estrada tocando o burro, carregado de sacas de farinha.    — E eu venho ajudá-lo, primo! — disse ela, animada pelo seu próprio riso, pela alegria daquele homem a seu lado.    — Vem? — exclamou ele. — juro-lhe que me faço moleiro! Que Paraíso, nós aqui ambos no moinho, ganhando alegremente a nossa vida, e ouvindo cantar estes melros!    Ela corou outra vez do fervor da sua voz, e recuou como se ele fosse já arrebatá-la para o moinho. Mas Adrião agora, inflamado àquela ideia, pintava-lhe na sua palavra colorida toda uma vida romanesca, de uma felicidade idílica, naquele esconderijo de verdura: de manhã, a pé cedo, para o trabalho, depois o jantar na relva à beira de água; e à noite as boas palestras ali sentados, à claridade das estrelas ou, sob a sombra cálida dos céus negros de Verão...    E de repente, sem que ela resistisse, prendeu -a nos braços, e beijou -a sobre os lábios, de um só beijo, profundo e interminável. Ela tinha ficado contra o seu peito, branca, como morta: e duas lágrimas corriam-lhe ao comprido da face. Era assi m tão dolorosa e fraca, que ele soltou-a; ela ergueu -se, apanhou o guarda-solinho e ficou diante dele, com o beicinho a tremer, murmurando:    — É mal feito... É mal feito... Ele mesmo estava tão perturbado — que a deixou descer para o caminho: e daí a um momento seguiam ambos calados para a vila. Foi só na estalagem que ele pensou: «Fui um tolo!»    Mas no fundo estava contente da sua generosidade. À noite foi a casa dela: encontrou -a com o pequerrucho no colo, lavando-lhe em água de malvas as feridas que ele ti nha na perna. E então pareceu-lhe odioso distrair aquela mulher dos seus doentes. De resto um momento como aquele no moinho não voltaria. Seria absurdo ficar ali, naquele canto odioso da província, desmoralizando, a frio, uma boa mãe... A venda da fazenda estava concluída. Por isso, no dia seguinte, apareceu de tarde, a dizer-lhe adeus: partia à noitinha na diligência; encontrou-a na sala, à janela costumada, com a pequenada doente aninhada contra as suas saias... Ouviu que ele partia, sem lhe mudar a cor, sem lhe arfar o peito. Mas Adrião achou-lhe a palma da mão tão fria como um mármore: e quando ele saiu, Maria da Piedade ficou voltada para a janela, escondendo a face dos pequenos, olhando abstractamente a paisagem que escurecia, com as lágrimas, quatro a quatro, caindo-lhe na costura...    Amava-o. Desde os primeiros dias, a sua figura resoluta e forte, os seus olhos luzidios, toda a virilidade da sua pessoa, se lhe tinham apossado da imaginação. O que a encantava nele não era o seu talento, nem a sua celebridade em Lisboa, nem as mulheres que o tinham amado: isso para ela aparecia-lhe vago e pouco compreensível: o que a fascinava era aquela seriedade, aquele ar honesto e são, aquela robustez de vida, aquela voz tão grave e tão rica: e antevia, para além da sua existência ligada a um inválido, outras existências possíveis, em que se não vê sempre diante dos olhos uma face fraca e moribunda, em que as noites se não passam a esperar as horas dos remédios... Era como uma rajada de ar impregnado de todas as forças vivas da Natureza, que atravessava, subitamente, a sua alcova abafada: e respirava -a deliciosamente... Depois, tinha ouvido aquelas conversas em que ele se mostrava tão bom, tão sério, tão delicado: e à força do seu corpo, que admirava, juntava -se agora u m coração terno, de uma ternura varonil e forte, para -, cativar... Este amor latente invadiu -a, apoderou-se dela uma noite que lhe apareceu esta ideia, esta visão: «Se ele fosse meu marido!» Toda ela estremeceu, apertou desesperadamente os braços contra o peito, como confundindo -se com a sua imagem evocada, prendendo -se a ela, refugiando -se na sua força... Depois ele deu-lhe aquele beijo no moinho.    E partira!    Então começou para Maria da Piedade uma existência de abandonada. Tudo de repente em volta dela     — a doença do marido, os achaques dos filhos, as tristezas do seu dia, a sua costura-lhe pareceu lúgubre. Os seus deveres, agora que não punha neles toda a sua alma, eram-lhe pesados como fardos injustos. A sua vida representava -se-lhe como desgraça excepcional: não se revoltava ainda, mas tinha desses abatimentos, dessas súbitas fadigas de todo o seu ser, em que caia sobre a cadeira, com os braços pendentes, murmurando:    — Quando se acabará isto? Refugiava-se então naquele amor como uma compensação deliciosa . Julgando-o todo puro, todo de alma, deixava -se penetrar dele e da sua lenta influência. Adrião tornara -se, na sua imaginação, como um ser de proporções extraordinárias, tudo o que é forte, e que é belo, e que dá razão à vida. Não quis que nada do que era dele ou vinha dele lhe fosse alheio. Leu todos os seus livros, sobretudo aquela «Madalena» que também amara, e morrera de um abandono. Estas leituras calmavam -na, davam-lhe como uma vaga satisfação ao desejo. Chorando as dores das heroínas de romance, parecia sentir alívio às suas.    Lentamente, esta necessidade de encher a imaginação desses lances de amor, de dramas infelizes, apoderou-se dela. Foi durante meses um devorar constante de romances. Ia -se assim criando no seu espírito um mundo artificial e idealizado. A realidade tornava -se-lhe odiosa, sobretudo sob aquele aspecto da sua casa, onde encontrava sempre agarrado às saias um ser enfermo. Vieram as primeiras revoltas. Tornou -se impaciente e áspera. Não suportava ser arrancada aos episódios sentimentais do seu livro, para ir ajudar a voltar o marido e sentir-lhe o hálito mau. Veio-lhe o nojo das garrafadas, dos emplastros, das feridas dos pequenos a lavar. Começou a ler versos. Passava horas só, num mutismo, à janela, tendo sob o seu olhar de virgem loura toda a rebelião de uma apaixonada. Acreditava nos amantes que escalam os balcões, entre o canto dos rouxinóis: e queria ser amada assim, possuída num mistério de noite romântica...    O seu amor desprendeu -se pouco a pouco da imagem de Adrião e alargou -se, estendeu-se a um ser vago que era feito de tudo o que a encantara nos heróis de novela; era um ente — meio príncipe e meio facínora, que tinha, sobretudo, a força. Porque era isto que admirava, que queria, por que ansiava nas — noites cálidas em que não podia dormir — dois braços fortes como aço, que a apertassem num abraço mortal, dois lábios de fogo que, num beijo, lhe chupassem a alma. Estava uma histérica.    Às vezes, ao pé do leito do marido, vendo diante de si aquele corpo de tísico, numa imobilidade de entrevado, vinha-lhe um ódio torpe, um desejo de lhe apressar a morte...    E no meio desta excitação mórbida do temperamento irritado, eram fraquezas súbitas, sustos de ave que pousa, um grito ao ouvir bater uma porta, uma palidez de desmaio se havia na sala flores muito cheirosas... À noite abafava; abria a janela; mas o cálido ar, o bafo morno da terra aquecida do sol, enchiam -na de um desejo intenso, de uma ânsia voluptuosa, cortada de crises de choro...    A santa tornava-se Vénus. E o romanticismo mórbido tinha penetrado tanto naquele ser, e desmoralizara-o tão profundamente, que chegou ao momento em que bastaria que um homem lhe tocasse, para ela lhe cair nos braços — e foi o que sucedeu enfim, com o primeiro que a namorou, daí a dois anos. Era o praticante da botica.    Por causa dele escandalizou toda a vila. E agora deixa a casa numa desordem, os filhos sujos e ramelosos, em farrapos, sem comer até altas horas, o marido a gemer abandonado na sua alcova, toda a trapagem dos emplastros por cima das cadeiras, tudo num desamparo torpe — para andar atrás do homem, um maganão odioso e sebento, de cara balofa e gordalhufa, luneta preta com grossa fita passada atrás da orelha e bonezinho de seda posto à catita. Vem de noite às entrevistas de chinelo de ourelo, cheira a suor; e pede-lhe dinheiro emprestado para sustentar uma Joana, criatura obesa, a quem chamam na vila «a Bola de Unto».

CIVILIZAÇÃO


I
Eu possuo preciosamente um amigo (o seu nome é Jacinto) que nasceu num palácio, com quarenta contos de renda em pingues terras de pão, azeite e gado.
Desde o berço, onde sua mãe, senhora gorda e crédula de Trás-os-Montes, espalhava, para reter as Fadas Benéficas, funcho e âmbar, Jacinto fora sempre mais resistente e são que um pinheiro das dunas. Um lindo rio, murmuroso e transparente, com um leito muito liso de areia muito branca, reflectindo apenas pedaços lustrosos de um céu de Verão ou ramagens sempre verdes e de bom aroma, não ofereceria, àquele que o descesse numa barca cheia de almofadas e de champanhe gelado, mais doçura e facilidades do que a vida oferecia ao meu camarada Jacinto. Não teve sarampo e não teve lombrigas. Nunca padeceu, mesmo na idade em que se lê Balzac e Musset, os tormentos da sensibilidade. Nas suas amizades foi sempre tão feliz como o clássico Orestes. Do amor só experimentara o mel — esse mel que o amor invariavelmente concede a quem o pratica, como as abelhas, com ligeireza e mobilidade. Ambição, sentira somente a de compreender bem as ideias gerais e a «ponta do seu intelecto» (como diz o velho cronista medieval) não estava ainda romba nem ferrugenta... E todavia, desde os vinte e oito anos, Jacinto já se vinha repastando de Schopenhauer, do Eclesiastes, de outros pessimistas menores, e três, quatro vezes por dia, bocejava, com um bocejo cavo e lento, passando os dedos finos sobre as faces, com se nelas só palpasse palidez e ruína. Porquê?Era ele, de todos os homens que conheci, o mais complexamente civilizado — ou, antes, aquele que se munira da mais vasta soma de civilização material, ornamental e intelectual. Nesse palácio ( floridamente chamado o Jasmineiro) que seu pai, também Jacinto, construíra sobre uma honesta casa do século XVII, assoalhada a pinho e branqueada a cal — existia, creio eu, tudo quanto para bem do espírito ou da matéria os homens têm criado, através da incerteza e dor, desde que abandonaram o vale feliz de Septa-Sindu, a Terra das Águas Fáceis, o doce país ariano. A biblioteca — que em duas salas, amplas e claras como praças, forrava as paredes, inteiramente, desde os tapetes de Caramânia até ao tecto, donde, alternadamente, através de cristais, o sol e a electricidade vertiam uma luz estudiosa e calma — continha vinte e cinco mil volumes, instalados em ébano, magnificamente revestidos de marroquim escarlate. Só sistemas filosóficos (e com justa prudência, para poupar espaço, o bibliotecário apenas coleccionara os que irreconciliavelmente se contradizem) havia mil e oitocentos e dezassete!Uma tarde que eu desejava copiar um ditame de Adam Smith, percorri, buscando este economista ao longo das estantes, oito metros de economia política! Assim se achava formidavelmente abastecido o meu amigo Jacinto de todas as obras essenciais da inteligência — e mesmo da estupidez. E o único inconveniente deste monumental armazém do saber era que todo aquele que lá penetrava, inevitavelmente lá adormecia, por causa das poltronas, que, providas de finas pranchas móveis para sustentar o livro, o charuto, o lápis das notas, a taça de café, ofereciam ainda uma combinação oscilante e flácida de almofadas, onde o corpo encontrava logo, para mal do espírito, a doçura, a profundidade e a paz estirada de um leito.Ao fundo, e como um altar-mor, era o gabinete de trabalho de Jacinto. A sua cadeira, grave e abacial, de couro, com brasões, datava do século XIV, e em torno dela pendiam numerosos tubos acústicos, que, sobre os panejamentos de seda cor de musgo e cor de hera, pareciam serpentes adormecidas e suspensas num velho muro de quinta. Nunca recordo sem assombro a sua mesa, recoberta toda de sagazes e subtis instrumentos para cortar papel, numerar páginas, colar estampilhas, aguçar lápis, raspar emendas, imprimir datas, derreter lacre, cintar documentos, carimbar contas! Uns de níquel, outros de aço, rebrilhantes e frios, todos eram de um manejo laborioso e lento: alguns, com as molas rígidas, as pontas vivas, brilhavam e feriam: e nas largas folhas de papel Whatman em que ele escrevia, e que custavam quinhentos réis, eu por vezes surpreendi gotas de sangue do meu amigo. Mas a todos ele considerava indispensáveis para compor as suas cartas (Jacinto não compunha obras), assim como os trinta e cinco dicionários, e os manuais, e as enciclopédias, e os guias, e os directórios, atulhando uma estante isolada, esguia, em forma de torre, que silenciosamente girava sobre o seu pedestal, e que eu denominara o Farol. O que, porém, mais completamente imprimia àquele gabinete um portentoso carácter de civilização eram, sobre as suas peanhas de carvalho, os grandes aparelhos, facilitadores do pensamento — a máquina de escrever, os autocopistas, o telégrafo Morse, o fonógrafo, o telefone, o teatrofone, outros ainda, todos com metais luzidios, todos com longos fios. Constantemente sons curtos e secos retiniam no ar morno daquele santuário. Tique, tique, tique! Dlim, dlim, dlim! Craque, craque, craque! Trrre, Trrre, Trrre!... Era o meu amigo comunicando. Todos esses fios mergulhados em forças universais transmitiam forças universais. E elas nem sempre, desgraçadamente, se conservavam domadas e disciplinadas! Jacinto recolhera no fonógrafo a voz do conselheiro Pinto Porto, uma voz oracular e rotunda, no momento de exclamar com respeito, com autoridade:— Maravilhosa invenção! Quem não admirará os progressos deste século? Pois, numa doce noite de S. João, o meu supercivilizado amigo, desejando que umas senhoras parentas de Pinto Porto (as amáveis Gouveias) admirassem o fonógrafo, fez romper do bocarrão do aparelho, que parece uma trompa, a conhecida voz rotunda e oracular:— Quem não admirará os progressos deste século? Mas, inábil ou brusco, certamente desconcertou alguma mola vital — porque de repente o fonógrafo começa a redizer, sem descontinuação, interminavelmente, com uma sonoridade cada vez mais rotunda, a sentença do conselheiro:— Quem não admirará os progressos deste século? Debalde Jacinto, pálido, com os dedos trémulos, torturava o aparelho. A exclamação recomeçava, rolava, oracular e majestosa:— Quem não admirará os progressos deste século? Enervados, retirámos para uma sala distante, pesadamente revestida de panos de Arrás. Em vão! A voz de Pinto Porto lá estava, entre os panos de Arrás, implacável e rotunda:— Quem não admirará os progressos deste século? Furiosos, enterrámos uma almofada na boca do fonógrafo, atirámos por cima mantas, cobertores espessos, para sufocar a voz abominável. Em vão! Sob a mordaça, sob as grossas lãs, a voz rouquejava, surda mas oracular— Quem não admirará os progressos deste século? As amáveis Gouveias tinham abalado, apertando desesperadamente os xales sobre a cabeça. Mesmo à cozinha, onde nos refugiámos, a voz descia, engasgada e gosmosa:— Quem não admirará os progressos deste século? Fugimos espavoridos para a rua. Era de madrugada. Um fresco bando de raparigas, de volta das fontes, passava cantando com braçados de flores:Todas as ervas são bentas Em manhã de S. João...Jacinto, respirando o ar matinal, limpava as bagas lentas do suor. Recolhemos ao Jasmineiro, com o sol já alto, já quente. Muito de manso abrimos as portas, como no receio de despertar alguém. Horror! Logo da antecâmara percebemos sons estrangulados, roufenhos: «admirará... progressos... século!... » Só de tarde um electricista pôde emudecer aquele fonógrafo horrendo.Bem mais aprazível (para mim) do que esse gabinete temerosamente atulhado de civilização — era a sala de jantar, pelo seu arranjo compreensível, fácil e íntimo. À mesa só cabiam seis amigos, que Jacinto escolhia com critério na literatura, na arte e na metafísica e que, entre as tapeçarias de Arrás, representando colinas, pomares e pórticos da Ática, cheias de classicismo e de luz, renovavam ali repetidamente banquetes que, pela sua intelectualidade, lembravam os de Platão. Cada garfada se cruzava com um pensamento ou com palavras destramente arranjadas em forma de pensamento.E a cada talher correspondiam seis garfos, todos de feitios dissemelhantes e astuciosos — um para as ostras, outro para o peixe, outro para as carnes, outro para os legumes, outro para a fruta, outro para o queijo. Os copos, pela diversidade dos contornos e das cores, faziam, sobre a toalha mais reluzente que esmalte, como ramalhetes silvestres espalhados por cima de neve. Mas Jacinto e os seus filósofos, lembrando o que o experiente Salomão ensina sobre as ruínas e amarguras do vinho, bebiam apenas em três gotas de água uma gota de bordéus Chateaubriand, 1860. Assim o recomendam Hesíodo no seu Nereu, Díocles nas suas Abelhas. E de águas havia sempre no Jasmineiro um luxo redundante — águas geladas, águas carbonatadas, águas esterilizadas, águas gasosas, águas de sais, águas minerais, outras ainda, em garrafas sérias, com tratados terapêuticos impressos no rótulo... O cozinheiro, mestre Sardão, era daqueles que Anaxágoras equiparava dos Retóricos, aos Oradores, a todos os que sabem a arte divina de «temperar e servir a Ideia»: e em Síbaris, cidade do Viver Excelente, os magistrados teriam votado a mestre Sardão, pelas festas de Juno Lacínia, a coroa de folhas de ouro e a túnica milésia que se devia aos benfeitores cívicos. A sua sopa de alcachofras e ovas de carpa; os seus filetes de veado macerados em velho madeira com puré de nozes; as suas amoras geladas em éter, outros acepipes ainda, numerosos e profundos (e os únicos que tolerava o meu Jacinto), eram obras de um artista, superior pela abundância das ideias novas — e juntavam sempre a raridade do sabor à magnificência da forma. Tal prato desse mestre incomparável parecia, pela ornamentação, pela graça Dorida dos lavores, pelo arranjo dos coloridos frescos e cantantes, uma jóia esmaltada do cinzel de Cellini ou Meurice. Quantas tardes eu desejei fotografar aquelas composições de excelente fantasia, antes que o trinchante as retalhasse! E esta superfinidade do comer condizia deliciosamente com a do servir. Por sobre um tapete, mais fofo e mole que o musgo da floresta da Brocelanda, deslizavam, como sombras fardadas de branco, cinco criados e um pajem preto, à maneira vistosa do século XVIII. As travessas (de prata) subiam da cozinha e da copa por dois ascensores, um para as iguarias quentes, forrado de tubos onde a água fervia; outro, mais lento, para as iguarias frias, forrado de zinco, amónia e sal, e ambos escondidos por flores tão densas e viçosas, que era como se até a sopa saísse fumegando dos românticos jardins de Armida. E muito bem me lembro de um domingo de Maio em que, jantando com Jacinto um bispo, o erudito bispo de Chorazin, o peixe emperrou no meio do ascensor, sendo necessário que acudissem, pura o extrair, pedreiros com alavancas.
II
Nas tardes em que havia «banquete de Platão» (que assim denominávamos essas festas de trufas e ideias gerais), eu, vizinho e íntimo, aparecia ao declinar do Sol, e subia familiarmente ao quarto do nosso Jacinto — onde o encontrava sempre incerto entre as suas casacas, porque as usava alternadamente de seda, de pano, de flanelas Jaegher, e de foulard das Índias. O quarto respirava o frescor e aroma do jardim por duas vastas janelas, providas magnificamente (além das cortinas de seda mole Luís XV) de uma vidraça exterior de cristal inteiro, de uma vidraça interior de cristais miúdos, de um toldo rolando na cimalha, de um estore de sedinha frouxa, de gazes que franziam e se enrolavam como nuvens e de uma gelosia móvel de gradaria mourisca. Todos estes resguardos (sábia invenção de Holland & E.C-a de Londres) serviam a graduar a luz e o ar — segundo os avisos de termómetros, barómetros e higrómetros, montados em ébano, e a que um meteorologista (Cunha Guedes) vinha, todas as semanas, verificar a precisão.Entre estas duas varandas rebrilhava a mesa de toilette, uma mesa enorme de vidro, toda de vidro, para a tornar impenetrável aos micróbios, e coberta de todos esses utensílios de asseio e alinho que o homem do século XIX necessita numa capital, para não desfear o conjunto sumptuário da civilização. Quando o nosso Jacinto, arrastando as suas engenhosas chinelas de pelica e seda, se acercava desta ara — eu, bem aconchegado num divã, abria com indolência uma revista, ordinariamente a Revista Electropática, ou a das Indagações Psíquicas. E Jacinto começava... Cada um desses utensílios de aço, de marfim, de prata, impunham ao meu amigo, pela influência omnipoderosa que as coisas exercem sobre o dono (sunt tyrannioe rerum) o dever de o utilizar com aptidão e deferência. E assim as operações do alindamento de Jacinto apresentavam a prolixidade, reverente e insuprimível, dos ritos de um sacrifício.
Começava pelo cabelo... Com uma escova chata, redonda e dura, acamava o cabelo, corredio e louro, no alto, aos lados da risca; com uma escova estreita e recurva, à maneira do alfange de um persa, ondeava o cabelo sobre a orelha; com uma escova côncava, em forma de telha, empastava o cabelo, por trás, sobre a nuca... Respirava e sorria. Depois, com uma escova de longas cerdas, fixava o bigode; com uma escova leve e flácida acurvava as sobrancelhas; com uma escova feita de penugem regularizava as pestanas. E deste modo Jacinto ficava diante do espelho, passando pêlos sobre o seu pêlo, durante catorze minutos.Penteado e cansado, ia purificar as mãos. Dois criados, ao fundo, manobravam com perícia e vigor os aparelhos do lavatório — que era apenas um resumo dos maquinismos monumentais da sala de banho. Ali, sobre o mármore verde e róseo do lavatório, havia apenas dois duches (quente e frio) para a cabeça; quatro jactos, graduados desde zero até cem graus; o vaporizador de perfumes; a fonte de água esterilizada (para os dentes); o repuxo para a barba; e ainda torneiras que rebrilhavam e botões de ébano que, de leve roçados, desencadeavam o marulho e o estridor de torrentes nos Alpes... Nunca eu, para molhar os dedos, me cheguei àquele lavatório sem terror — escarmentado da tarde amarga de Janeiro em que bruscamente, dessoldada a torneira, o jacto de água a cem graus rebentou, silvando e fumegando, furioso, devastador... Fugimos todos, espavoridos. Um clamor atroou o Jasmineiro. O velho Grilo, escudeiro que fora do Jacinto pai, ficou coberto de empolas na face, nas mãos fiéis.Quando Jacinto acabava de se enxugar laboriosamente a toalhas de felpo, de linho, de corda entrançada (paca restabelecer a circulação), de seda trouxa (para lustrar a pele) bocejava, com um bocejo cavo e lento.E era este bocejo, perpétuo e vago, que nos inquietava a nós, seus amigos e filósofos. Que faltava a este homem excelente? Ele tinha a sua inabalável saúde de pinheiro bravo, crescido nas dunas; uma luz da inteligência, própria a tudo alumiar, firme e clara sem tremor ou morrão; quarenta magníficos contos de renda; todas as simpatias de uma cidade chasqueadora e céptica; uma vida varrida de sombras, mais liberta e lisa do que um céu de Verão... E todavia bocejava constantemente, palpava na face, com os dedos finos, a palidez e as rugas. Aos trinta anos Jacinto corcovava, como sob um fardo injusto! E pela moralidade desconsolada de toda a sua acção parecia ligado desde os dedos até à vontade, pelas malhas apertadas de uma rede que se não via e que o travava. Era doloroso testemunhar o fastio com que ele, para apontar um endereço, tomava o seu lápis pneumático, a sua pena eléctrica — ou, para avisar o cocheiro, apanhava o tubo telefónico!... Neste mover lento do braço magro, nos vincos que lhe arrepanhavam o nariz, mesmo nos seus silêncios, longos e derreados, se senda o brado constante que lhe ia na alma: «Que maçada! Que maçada!» Claramente a vida era para Jacinto um cansaço — ou por laboriosa e difícil, ou por desinteressante e oca. Por isso o meu pobre amigo procurava constantemente juntar à sua vida novos interesses, novas facilidades. Dois inventores, homens de muito zelo e pesquisa, estavam encarregados, um em Inglaterra, outro na América, de lhe noticiar e de lhe fornecer todas as invenções, as mais miúdas, que concorressem a aperfeiçoar a confortabilidade do Jasmineiro. De resto, ele próprio se correspondia com Edison. E, pelo lado do pensamento, Jacinto não cessava também de buscar interesses e emoções que o reconciliassem com a vida — penetrando à cata dessas emoções e desses interesses pelas veredas mais desviadas do saber, a ponto de devorar, desde Janeiro a Março, setenta e sete volumes sobre a evolução das ideias morais entre as raças negróides. Ah! nunca homem deste século batalhou mais esforçadamente contra a seca de viver! Debalde! Mesmo de explorações tão cativantes como essa, através da moral dos negróides, Jacinto regressava mais murcho, com bocejos mais cavos!E era então que ele se refugiava intensamente na leitura de Schopenhauer e do Ecclesiastes. Porquê? Sem dúvida porque ambos esses pessimistas o confirmavam nas conclusões que ele tirava de uma experiência paciente e rigorosa, «que tudo é vaidade ou dor, que quanto mais se sabe, mais se pena, e que ter sido rei de Jerusalém e obtido os gozos todos na vida só leva a maior amargura...» Mas porque rolara assim a tão escura desilusão — o saudável, rico, sereno e intelectual Jacinto? O velho escudeiro Grilo pretendia que «Sua Excelência sofria de fartura!»
III
Ora, justamente depois desse Inverno, em que ele se embrenhara na moral dos negróides e instalara a luz eléctrica entre os arvoredos do jardim, sucedeu que Jacinto teve a necessidade moral iniludível de partir para o Norte, para o seu velho solar de Torges. Jacinto não conhecia Torges, e foi com desusado tédio que ele se preparou, durante sete semanas, para essa jornada agreste. A quinta fica nas serras — e a rude casa solarenga, onde ainda resta uma torre do século XV estava ocupada, havia trinta anos pelos caseiros, boa gente de trabalho, que comia o seu caldo entre a fumaraça da lareira e estendia o trigo a secar nas salas senhoriais.Jacinto, logo nos começos de Março, escrevera cuidadosamente ao seu procurador Sousa, que habitava a aldeia de Torges, ordenando-lhe que compusesse os telhados, caiasse os muros, envidraçasse as janelas. Depois mandou expedir, por comboios rápidos, em caixotes que transpunham a custo os portões do Jasmineiro, todos os confortos necessários a duas semanas de montanha — camas de penas, poltronas, divãs, lâmpadas de Carcel, banheiras de níquel, tubos acústicos para chamar os escudeiros, tapetes persas para amaciar os soalhos. Um dos cocheiros partiu com um cupé, uma vitória, um breque, mulas e guizos.Depois foi o cozinheiro, com a bateria, a garrafeira, a geleira, bocais de trufas, caixas profundas de águas minerais. Desde o amanhecer, nos pátios largos do palacete, se pregava, se martelava, como na construção de uma cidade. E as bagagens, desfilando, lembravam uma página de Heródoto ao narrar a invasão persa. Jacinto emagrecera com os cuidados daquele Êxodo. Por fim, largámos numa manhã de Junho, com o Grilo e trinta e sete malas.
Eu acompanhava Jacinto, no meu caminho para Goães, onde vive minha tia, a uma légua farta de Torges: e íamos num vagão reservado, entre vastas almofadas, com perdizes e champanhe num cesto. A meio da jornada devíamos mudar de comboio — nessa estação que tem um nome sonoro em ola e um tão suave e cândido jardim de roseiras brancas. Era domingo de imensa poeira e sol — e encontrámos aí, enchendo a plataforma estreita, todo um povaréu festivo que vinha da romaria de S. Gregório da Serra.Para aquele trasbordo, em tarde de arraial, o horário só nos concedia três minutos avaros. O outro comboio já esperava, rente aos alpendres, impaciente e silvando. Uma sineta badalava com furor. E, sem mesmo atender às lindas moças que ali saracoteavam, aos bandos, afogueadas, de lenços flamejantes, o seio farto coberto de ouro, e a imagem do santo espetada no chapéu — corremos, empurrámos, furámos, saltámos para o outro vagão, já reservado, marcado por um cartão com as iniciais de Jacinto. Imediatamente o trem rolou. Pensei então no nosso Grilo, nas trinta e sete malas! E debruçado da portinhola avistei ainda junto ao cunhal da estação, sob os eucaliptos, um monte de bagagens, e homens de boné agaloado que, diante delas, bracejavam com desespero.Murmurei, recaindo nas almofadas: — Que serviço! Jacinto, ao canto, sem descerrar os olhos, suspirou: — Que maçada! Toda uma hora deslizámos lentamente entre trigais e vinhedo; e ainda o sol batia nas vidraças, quente e poeirento, quando chegámos à estação de Gondim, onde o procurador de Jacinto, o excelente Sousa, nos devia esperar com cavalos para treparmos a serra até ao solar de Torges. Por trás do jardim da estação, todo florido também de rosas e margaridas, Jacinto reconheceu logo as suas carruagens, ainda empacotadas em lona.Mas quando nos apeámos no pequeno cais branco e fresco — só houve em torno de nós solidão e silêncio... Nem procurador, nem cavalos! O chefe da estação, a quem eu perguntara com ansiedade «se não aparecera ali o Sr. Sousa, se não conhecia o Sr. Sousa», tirou afavelmente o seu boné de galão. Era um moço gordo e redondo, com cores de maçã camoesa, que trazia sob o braço um volume de versos. «Conhecia perfeitamente o Sr. Sousa! Três semanas antes jogara ele a manilha com o Sr. Sousa! Nessa tarde, porém, infelizmente, não avistara o Sr. Sousa!» O comboio desaparecera por detrás das fragas altas que ali pendem sobre o rio. Um carregador enrolava o cigarro, assobiando. Rente da grade do jardim, uma velha, toda de negro, dormitava agachada no chão, diante de uma cesta de ovos. E o nosso Grilo, e as nossas bagagens?... O chefe encolheu risonhamente os ombros nédios. Todos os nossos bens tinham encalhado, decerto, naquela estação de roseiras brancas que tem um nome sonoro em ola. E nós ali estávamos, perdidos na serra agreste, sem procurador, sem cavalos, sem Grilo, sem malas.Para que esfiar miudamente o lance lamentável? Ao pé da estação, numa quebrada da serra, havia um casal foreiro à quinta, onde alcançámos, para nos levarem e nos guiarem a Torges, uma égua lazarenta, um jumento branco, um rapaz e um podengo. E aí começámos a trepar, enfastiadamente, estes caminhos agrestes — os mesmos, decerto, por onde vinham e iam, de monte a rio, os Jacintos do século XV. Mas, passada uma trémula ponte de pau que galga um ribeiro todo quebrado por fragas (e onde abunda a truta adorável) os nossos males esqueceram, ante a inesperada, incomparável beleza daquela serra bendita. O divino artista que está nos Céus compusera, certamente, csse monte numa das suas manhãs de mais solene e bucólica inspiração.A grandeza era tanta como a graça... Dizer os vales fofos de verdura, os bosques quase sacros, os pomares cheirosos e em flor, a frescura das águas cantantes, as ermidinhas branqueando nos altos, as rochas musgosas, o ar de uma doçura de Paraíso, toda a majestade e toda a lindeza — não é para mim, homem de pequena arfe. Nem creio mesmo que fosse para mestre Horácio. Quem pode dizer a beleza das coisas, tão simples e inexprimível? Jacinto adiante, na égua tarda, murmurava:— Ah! que beleza! Eu atrás, no burro, com as pernas bambas, murmurava: — Ah! que beleza! Os espertos regatos riam, saltando de rocha em rocha. Finos ramos de arbustos floridos roçavam as nossas faces, com familiaridade e carinho. Muito tempo um melro nos seguiu, de choupo para castanheiro, assobiando os nossos louvores. Serra bem acolhedora e amável... Ah! que beleza!Por entre estes «Ahs!» maravilhados chegámos a uma avenida de faias, que nos pareceu clássica e nobre. Atirando uma nova vergastada ao burro e à égua, o nosso rapaz, com o seu podengo ao lado, gritava:— Aqui é que estemos! E ao fundo das faias havia com efeito um portão de quinta, que um escudo de armas de velha pedra, roída de musgo, grandemente afidalgava. Dentro já os cães ladravam com furor. E, mal Jacinto, e eu atrás dele no burro de Sancho, transpusemos o limiar solarengo, correu para nós, do alto de uma escadaria, um homem branco, rapado como um clérigo, sem colete, sem jaleca, que erguia para o ar, num assombro, os braços esgazeados. Era o caseiro, o Zé Brás. E logo ali, nas pedras do pátio, entre o latir dos cães, surdiu uma tumultuosa história que o pobre Brás balbuciava, aturdido, e que enchia a face de Jacinto de lividez e de cólera. O caseiro não esperava Sua Excelência. Ninguém esperava Sua Excelência. (Ele dizia sua inselência.)O procurador, o Sr. Sousa, estava para a raia desde Maio, a tratar a mãe que levara um couce de mula. E decerto houvera engano, cartas perdidas... Porque o Sr. Sousa só contava com Sua Excelência, em Setembro, para a vindima. Na casa nenhuma obra começara. E infelizmente para Sua Excelência os telhados ainda estavam sem telhas, e as janelas sem vidraças...Cruzei os braços, num justo espanto. Mas os caixotes — esses caixotes remetidos para Torges, com tanta prudência, em Abril, repletos de colchões, de regalos, de civilização?... O caseiro, vago, sem compreender, arregalava os olhos miúdos, onde já bailavam lágrimas. Os caixotes?! Nada chegara, nada aparecera. E na sua perturbação o Zé Brás procurava entre as arcadas do pátio, nas algibeiras das pantalonas... Os caixotes? Não, não tinha os caixotes!Foi então que o cocheiro de Jacinto (que trouxera os cavalos e as carruagens) se acercou, gravemente. Esse era um civilizado — e acusou logo o governo. Já quando ele servia o senhor visconde de S. Francisco se tinham assim perdido, por desleixo do governo, da cidade para a serra, dois caixotes com vinho velho da Madeira e roupa branca de senhora. Por isso ele, escarmentado, sem confiança na Nação, não largara as carruagens — e era tudo o que restava a Sua Excelência: o breque, a vitória, o cupé e os guizos. Somente, naquela rude montanha, não havia estradas onde elas rolassem. E corno só podiam subir para a quinta em grandes carros de bois — ele lá as deixara em baixo, na estação, quietas, empacotadas na lona...Jacinto ficara plantado diante de mim, com as mãos nos bolsos: — E agora?Nada restava senão recolher, cear o caldo do Zé Brás, e dormir nas palhas que os fados nos concedessem. Subimos. A escadaria nobre conduzia a uma varanda, toda coberta, em alpendre, acompanhando a fachada do casarão e ornada, entre os seus grossos pilares de granito, por caixotes cheios de terra, em que floriam cravos. Colhi um cravo. Entrámos. É o meu pobre Jacinto contemplou, enfim, as salas do seu solar! Eram enormes, com as altas paredes rebocadas a cal que o tempo e o abandono tinham enegrecido, e vazias, desoladamente nuas, oferecendo apenas como vestígio de habitação e de vida, pelos cantos, algum monte de cestos ou algum molho de enxadas. Nos tectos remotos de carvalho negro alvejavam manchas — que era o céu já pálido do fim da tarde, surpreendido através dos buracos do telhado. Não restava uma vidraça. Por vezes, sob os nossos passos, uma tábua podre rangia e cedia.Parámos, enfim, na última, a mais vasta, onde havia duas arcas tulheiras para guardar o grão; e aí depusemos, melancolicamente, o que nos ficara de trinta e sete malas — os paletós alvadios, uma bengala e um Jornal da Tarde . Através das ]anelas desvidraçadas, por onde se avistavam copas de arvoredos e as serras azuis de além-rio, o ar entrava, montesino e largo, circulando plenamente como em um eirado, com aromas de pinheiro bravo. E lá de baixo, dos vales, subia, desgarrada e triste, uma voz de pegureira cantando. Jacinto balbuciou:— É horroroso! Eu murmurei: — É campestre!IV O Zé Brás, no entanto, com as mãos na cabeça, desaparecera a ordenar a ceia para suas inselências. O pobre Jacinto, esbarrondado pelo desastre, sem resistência contra aquele brusco desaparecimento de toda a civilização, caíra pesadamente sobre o poial de uma janela, e dali olhava os montes. E eu, a quem aqueles ares serranos e o cantar da pegureira sabiam bem, terminei por descer à cozinha, conduzido pelo cocheiro, através de escadas e becos, onde a escuridão vinha menos do crepúsculo do que de densas teias de aranha.A cozinha era uma espessa massa de tons e formas negras, cor de fuligem, onde refulgia ao fundo, sobre o chão de terra, uma fogueira vermelha que lambia grossas panelas de ferro e se perdia em fumarada pela grade escassa que no alto coava a luz. Aí, um bando alvoraçado e palreiro de mulheres depenava frangos, batia ovos, escarolava arroz, com santo fervor... Do meio delas o bom caseiro, estonteado, investiu para mim jurando que «a ceia de suas inselências não demorava um credo». E, como eu o interrogava a respeito de camas, o digno Brás teve um murmúrio vago e tímido sobre « enxergazinhas no chão».— É o que basta, Sr. Zé Brás — acudi eu para o consolar. — Pois assim Deus seja servido! — suspirou o homem excelente, que atravessava, nessa hora, o transe mais amargo da sua vida serrana.Voltando a cima, com estas consolantes novas de ceia e cama, encontrei ainda o meu Jacinto no poial da janela, embebendo-se todo da doce paz crepuscular, que lenta e caladamente se estabelecia sobre vale e monte. No alto já tremeluzia uma estrela, a Vésper diamantina, que é tudo o que neste céu cristão resta do esplendor corporal de Vénus! Jacinto nunca considerara bem aquela estrela — nem assistira a este majestoso e doce adormecer das coisas. Esse enegrecimento de montes e arvoredos, casais claros fundindo-se na sombra, um toque dormente de sino que vinha pelas quebradas, o cochichar das águas entre as relvas baixas — eram para ele como iniciações. Eu estava defronte, no outro poial. E senti-o suspirar como um homem que enfim descansa.Assim nos encontrou nesta contemplação o Zé Brás com o doce aviso de que estava na mesa a ceiazinha. Era adiante, noutra sala mais nua, mais negra. E, aí, o meu supercivilizado Jacinto recuou com um pavor genuíno. Na mesa de pinho, recoberta com uma toalha de mãos, encostada à parede sórdida, uma vela de sebo, meio derretida num castiçal de latão, alumiava dois pratos de louça amarela, ladeados por colheres de pau e por garfos de ferro. Os copos, de vidro grosso e baço, conservavam o tom roxo do vinho que neles passara em fartos anos de fartas vindimas. O covilhete de barro com as azeitonas deleitaria, pela sua singeleza ática, o coração de Diógenes. Na larga broa estava cravado um facalhão... Pobre Jacinto!
Mas lá abancou resignado, e muito tempo, pensativamente, esfregou com o seu lenço o garfo negro e a colher de pau. Depois, mudo, desconfiado, provou um gole curto do caldo, que era de galinha e rescendia. Provou, e levantou para mim, seu companheiro e amigo, uns olhos largos que luziam, surpreendidos. Tornou a sorver uma colherada do caldo, mais cheia, mais lenta... E sorriu, murmurando com espanto:
— Está bom! Estava realmente bom: tinha fígado e tinha moela: o seu perfume enternecia. Eu, três vezes, com energia, ataquei aquele caldo: foi Jacinto que rapou a sopeira. Mas já arredando a broa, arredando a vela, o bom Zé Brás pousara na mesa uma travessa vidrada, que transbordava de arroz com favas. Ora, apesar de a fava (que os Gregos chamaram ciboria) pertencer às épocas superiores da civilização e promover tanto a sapiência que havia em Sício, na Galácia, um templo dedicado a Minerva Ciboriana — Jacinto sempre detestara favas. Tentou todavia uma garfada tímida. De novo os seus olhos, alargados pelo assombro, procuraram os meus. Outra garfada, outra concentração... E eis que o meu dificílimo amigo exclama:— Está óptimo! Eram os picantes ares da serra? Era a arte deliciosa daquelas mulheres que em baixo remexiam as panelas, cantando o Vira, meu bem? Não sei — mas os louvores de Jacinto a cada travessa foram ganhando em amplidão e firmeza. E diante do frango louro, assado no espeto de pau, terminou por bradar:— Está divino! Nada, porém, o entusiasmou como o vinho, o vinho caindo de alto, da grossa caneca verde, um vinho gostoso, penetrante, vivo, quente, que tinha em si mais alma que muito poema ou livro santo! Mirando à luz de sebo o copo rude que ele orlava de espuma, eu recordava o dia geórgico em que Virgílio, em casa de Horácio, sob a ramada, cantava o fresco palhete da Rética. E Jacinto, com uma cor que eu nunca vira na sua palidez schopenháurica, sussurrou logo o doce verso:Rethica quo te carmina dicat Quem dignamente te cantará, vinho daquelas serras?! Assim jantámos deliciosamente, sob os auspícios do Zé Brás. E depois voltámos para as alegrias únicas da casa, para as janelas desvidraçadas, a contemplar silenciosamente um sumptuoso céu de Verão, tão cheio de estrelas que todo ele parecia uma densa poeirada de ouro vivo, suspensa, imóvel, por cima dos montes negros. Como eu observei ao meu Jacinto, na cidade nunca se olham os astros por causa dos candeeiros — que os ofuscam: e nunca se entra por isso numa completa comunhão com o universo. O homem nas capitais pertence à sua casa, ou, se o impelem fortes tendências de sociabilidade, ao seu bairro. Tudo o isola e o separa da restante Natureza — os prédios obstrutores de seis andares, a fumaça das chaminés, o rolar moroso e grosso dos ónibus, a trama encarceradora da vida urbana... Mas que diferença, num cimo de monte, como Torges! Aí todas essas belas estrelas olham para nós rebrilhando, à maneira de olhos conscientes, umas fixamente, com sublime indiferença, outras ansiosamente, com uma luz que palpita, uma luz que chama, como se tentassem revelar os seus segredos ou compreender os nossos... E é impossível não sentir uma solidariedade perfeita entre esses imensos mundos e os nossos pobres corpos. Todos são obra da mesma vontade. Todos vivem da acção dessa vontade imanente. Todos, portanto, desde os Úranos até aos Jacintos, constituímos modos diversos de um ser único, e através das suas transformações somam a mesma unidade. Não há ideia mais consoladora do que esta — que eu, e tu, e aquele monte, e o Sol que, agora, se esconde são moléculas do mesmo Todo, governadas pela mesma Lei, rolando para o mesmo Fim. Desde logo se somem as responsabilidades torturantes do individualismo. Que somos nós? Formas sem força, que uma Força impele. E há um descanso delicioso nesta certeza, mesmo fugitiva, de que se é o grão de pó irresponsável e passivo que vai levado no grande vento, ou a gota perdida na torrente! Jacinto concordava, sumido na sombra. Nem ele nem eu sabíamos os nomes desses astros admiráveis. Eu, por causa da maciça e indesbastável ignorância de bacharel, com que saí do ventre de Coimbra, minha mãe espiritual. Jacinto, porque na sua ponderosa biblioteca tinha trezentos e dezoito tratados sobre astronomia! Mas que nos importava, de resto, que aquele astro além se chamasse Sírio e aquele outro Aldebarã? Que lhes importava a eles que um de nós fosse José e o outro Jacinto? Éramos formas transitórias do mesmo ser eterno — e em nós havia o mesmo Deus. E se eles também assim o compreendiam, estávamos ali, nós à janela num casarão serrano, eles no seu maravilhoso infinito, perfazendo um acto sacrossanto, um perfeito acto de Graça — que era sentir conscientemente a nossa unidade, e realizar, durante um instante na consciência, a nossa divinização.Assim enevoadamente filosofávamos — quando Zé Brás, com uma candeia na mão, veio avisar que «estavam preparadas as camas de suas inselências...» Da idealidade descemos gostosamente à realidade, e que vimos então nós, os irmãos dos astros? Em duas salas tenebrosas e côncavas, duas enxergas, postas no chão, a um canto, com duas cobertas de chita; à cabeceira um castiçal de latão, pousado sobre um alqueire: e aos pés, como lavatório, um alguidar vidrado em cima de uma cadeira de pau!Em silêncio, o meu supercivilizado amigo palpou a sua enxerga e sentiu nela a rigidez de um granito. Depois, correndo pela face descaída os dedos murchos, considerou que, perdidas as suas malas, não tinha nem chinelas nem roupão! E foi ainda Zé Brás que providenciou, trazendo ao pobre Jacinto, para ele desafogar os pés, uns tremendos tamancos de pau, e para ele embrulhar o corpo, docemente educado em Síbaris, uma camisa da caseira, enorme, de estopa mais áspera que estamenha de penitente, e com folhos crespos e duros como lavores em madeira... Para o consolar, lembrei que Platão, quando compunha o Banquete, Xenofonte, quando comandava os Dez Mil, dormiam em piores catres. As enxergas austeras fazem as fortes almas — e é só vestido de estamenha que se penetra no Paraíso.— Tem você — murmurou o meu amigo, desatento e seco — alguma coisa que eu leia?... Eu não posso adormecer sem ler!Eu possuía apenas o número do Jornal da Tarde , que rasguei pelo meio e partilhei com ele fraternalmente. E quem não viu então Jacinto, senhor de Torges, acaçapado à borda da enxerga, junto da vela que pingava sobre o alqueire, com os pés nus encafuados nos grossos socos, perdido dentro da camisa da patroa, toda em folhos, percorrendo na metade do Jornal da Tarde , com os olhos turvos, os anúncios dos paquetes — não pode saber o que é uma vigorosa e real imagem do desalento!Assim o deixei — e daí a pouco, estendido na minha enxerga também espartina, subia, através de um sonho jovial e erudito, ao planeta Vénus, onde encontrava, entre os olmos e os ciprestes, num vergel, Platão e o Zé Brás, em alta camaradagem intelectual, bebendo o vinho da Rética pelos copos de Torges! Travámos todos três bruscamente uma controvérsia sobre o século XIX. Ao longe, por entre uma floresta de roseiras mais altas que carvalhos, alvejavam os mármores de uma cidade e ressoavam cantos sacros. Não recordo o que Xenofonte sustentou acerca da civilização e do fonógrafo. De repente tudo foi turbado por fuscas nuvens, através das quais eu distinguia Jacinto, fugindo num burro que ele impelia furiosamente com os calcanhares, com uma vergasta, com berros, para os lados do Jasmineiro!
V Cedo, de madrugada, sem rumor, para não despertar Jacinto, que, com as mãos sobre o peito, dormia placidamente no seu leito de granito — parti para Goães. E durante três quietas semanas, naquela vila onde se conservam os hábitos e as ideias do tempo de el-rei D. Dinis, não soube do meu desconsolado amigo, que decerto fugira dos seus tectos esburacados e remergulhara na civilização. Depois, por uma abrasada manhã de Agosto, descendo de Goães, de novo trilhei a avenida de faias, e entrei o portão solarengo de Torges, entre o furioso latir dos rafeiros. A mulher do Zé Brás apareceu alvoroçada à porta da tulha. E a sua nova foi logo que o Sr. D. Jacinto (em Torges, o meu amigo tinha dom) andava lá em baixo com o Sousa nos campos de Freixomil.— Então, ainda cá está o Sr. D. Jacinto? Sua inselência ainda estava em Torges — e sua inselência ficava para a vindima!... Justamente eu reparava que as janelas do solar tinham vidraças novas; e a um canto do pátio pousavam baldes de cal; uma escada de pedreiro ficara arrimada contra a varanda; e num caixote aberto, ainda cheio de palha de empacotar, dormiam dois gatos.— E o Grilo apareceu? — O Sr. Grilo está no pomar, à sombra. — Bem! E as malas? — O Sr. D. Jacinto já tem o seu saquinho de couro... Louvado Deus! O meu Jacinto estava, enfim, provido de civilização! Subi contente. Na sala nobre, onde o soalho fora composto e esfregado, encontrei uma mesa recoberta de oleado, prateleiras de pinho com louça branca de Barcelos e cadeiras de palhinha, orlando as paredes muito caiadas que davam uma frescura de capela nova. Ao lado, noutra sala, também de faiscante alvura, havia o conforto inesperado de três cadeiras de verga da Madeira, com braços largos e almofadas de chita; sobre a mesa de pinho, o papel almaço, o candeeiro de azeite, as penas de pato espetadas num tinteiro de frade, pareciam preparadas para um estudo calmo e ditoso das humanidades; e na parede, suspensa de dois pregos, uma estantezinha continha quatro ou cinco livros, folheados e usados, o D. Quixote, um Virgílio, uma História de Roma, as Crónicas de Froissart. Adiante era certamente o quarto de D. Jacinto, um quarto claro e casto de estudante, com um catre de ferro, um lavatório de ferro, a roupa pendurada de cabides toscos. Tudo resplandecia de asseio e ordem. As janelas cerradas defendiam do sol de Agosto, que escaldava fora, os peitoris de pedra. Do soalho, borrifado de água, subia uma fresquidão consoladora. Num velho vaso azul, um molho de cravos alegrava e perfumava. Não havia um rumor. Torges dormia no esplendor da sesta. E, envolvido naquele repouso de convento remoto, terminei por me estender numa cadeira de verga junto à mesa, abri languidamente o Virgílio, murmurando:Fortunate Jacinthe! tu inter arua nota Et fontes sacros frigus captabis opacum.Já mesmo irreverentemente adormecera sobre o divino bucolista, quando me despertou um brado amigo. Era o nosso Jacinto. E imediatamente o comparei a uma planta, meio murcha e estiolada no escuro, que fora profusamente regada e revivera em pleno sol. Não corcovava. Sobre a sua palidez de supercivilizado, o ar da serra ou a reconciliação com a vida tinham espalhado um tom trigueiro e forte que o virilizava soberbamente. Dos olhos, que na cidade eu lhe conhecera sempre crepusculares, saltava agora um brilho de meio-dia, decidido e largo, que mergulhava francamente na beleza das coisas. Já não passava as mãos murchas sobre a face — batia com elas rijamente na coxa... Que sei eu? Era uma reencarnação. E tudo o que me contou, pisando alegremente com os sapatos brancos o soalho, foi que se sentira, ao fim de três dias em Torges, como desanuviado, mandara comprar um colchão macio, reunira cinco livros nunca lidos, e ali estava...— Para todo o Verão? — Para todo o sempre! E agora, homem das cidades, vem almoçar umas trutas que eu pesquei, e compreende enfim o que é o Céu.As trutas eram, com efeito, celestes. E apareceu também uma salada fria de couve-flor e vagens, e um vinho branco de Azães... Mas quem condignamente vos cantará comeres e beberes daquelas serras?De tarde, finda a calma, passeámos pelos caminhos coleando a vasta quinta, que vai de vales a montes. Jacinto parava a contemplar com carinho os milhos altos. Com a mão espalmada e forte batia no tronco dos castanheiros, como nas costas de amigos recuperados. Todo o fio de água, todo o tufo de erva, todo o pé de vinha o ocupava como vidas filiais por que fosse responsável. Conhecia certos melros que cantavam em certos choupos. Exclamava enternecido:— Que encanto, a flor do trevo! À noite, depois de um cabrito assado no forno, a que mestre Horácio teria dedicado uma ode (talvez mesmo um carme heróico) conversámos sobre o Destino e a Vida. Eu citei, com discreta malícia, Schopenhauer e o Ecclesiastes... Mas Jacinto ergueu os ombros, com seguro desdém. A sua confiança nesses dois sombrios explicadores da vida desaparecera, e irremediavelmente, sem poder mais voltar, como uma névoa que o sol espalha. Tremenda tolice! Afirmar que a vida se compõe, meramente, de uma longa ilusão — é erguer um aparatoso sistema sobre um ponto especial e estreito da vida, deixando fora do sistema toda a vida restante, como uma contradição permanente e soberba. Era como se ele, Jacinto, apontando para uma urtiga, crescida naquele pátio, declarasse, triunfalmente: «Aqui está uma urtiga! Toda a quinta de Torges, portanto, é uma massa de urtigas.» — Mas bastaria que o hóspede erguesse os olhos, para ver as searas, os pomares e os vinhedos!De resto, desses dois ilustres pessimistas, um, o alemão, que conhecia ele da vida — dessa vida de que fizera, com doutoral majestade, uma teoria definitiva e dolente? Tudo o que pode conhecer quem, como este genial farsante, viveu cinquenta anos numa soturna hospedaria de província, levantando apenas os óculos dos livros para conversar, à mesa- redonda, com os alferes da guarnição! E o outro, o israelita, o homem dos Cantares, o muito pedantesco rei de Jerusalém, só descobre que a vida é uma ilusão aos setenta e cinco anos, quando o poder lhe escapa das mãos trémulas, e o seu serralho de trezentas concubinas se torna ridiculamente supérfluo à sua carcaça frigida. Um dogmatiza funebremente sobre o que não sabe — e o outro sobre o que não pode. Mas que se dê a esse bom Schopenhauer uma vida tão completa e cheia como a de César, e onde estará o seu schopenhauerismo? Que se restitua a esse sultão, besuntado de literatura, que tanto edificou e professorou em Jerusalém, a sua virilidade — e onde estará o Ecclesiastes? De resto, que importa bendizer ou maldizer da vida?Afortunada ou dolorosa, fecunda ou vã, ela tem de ser vivida. Loucos aqueles que, para a atravessar, se embrulham desde logo em pesados véus de tristeza e desilusão, de sorte que na sua estrada tudo lhes seja negrume, não só as léguas realmente escuras, mas mesmo aquelas em que cintila um sol amável. Na Terra tudo vive — e só o homem sente a dor e a desilusão da vida. E tanto mais as sente, quanto mais alarga e acumula a obra dessa inteligência que o torna homem, e que o separa da restante Natureza, impensante e inerte. É no máximo da civilização que ele experimenta o máximo de tédio. A sapiência, portanto, este em recuar até esse honesto mínimo de civilização, que consiste em ter um tecto de colmo, uma leira de terra e o grão para nela semear. Em resumo, para reaver a felicidade, é necessário regressar ao Paraíso — e ficar lá, quieto, na sua folha de vinha, inteiramente desguarnecido de civilização, contemplando o anho aos saltos entre o tomilho, e sem procurar, nem com o desejo, a árvore funesta da Ciência! Dixi!Eu escutava, assombrado, este Jacinto novíssimo. Era verdadeiramente uma ressurreição no magnífico estilo de Lázaro. Ao surge et ambula que lhe tinham sussurrado as águas e os bosques de Torges, ele erguia-se do fundo da cova do Pessimismo, desembaraçava-se das suas casacas de Poole, et ambulabat, e começava a ser ditoso. Quando recolhi ao meu quarto, àquelas horas honestas que convêm ao campo e ao Optimismo tomei entre as minhas a mão já firme do meu amigo, e pensando que ele enfim alcançara a verdadeira realeza, porque possuía a verdadeira liberdade, gritei-lhe os meus parabéns à maneira do moralista de Tíbure:Vive et regna, fortunate Jacinthe! Daí a pouco, através da porta aberta que nos separava, senti uma risada fresca, moça, genuína e consolada. Era Jacinto que lia o D. Quixote. Oh bem-aventurado Jacinto! Conservava o agudo poder de criticar, e recuperara o dom divino de rir!Quatro anos vão passados. Jacinto ainda habita Torges. As paredes do seu solar continuam bem caiadas, mas nuas.De Inverno enverga um gabão de briche e acende um braseiro. Para chamar o Grilo ou a moça, bate as mãos, como fazia Catão. Com os seus deliciosos vagares, já leu a Ilíada. Não faz a barba. Nos caminhos silvestres pára e fala com as crianças. Todos os casais da serra o bendizem. Ouço que vai casar com uma forte, sã e bela rapariga de Goães. Decerto crescerá ali uma tribo, que será grata ao Senhor!Como ele, recentemente, me mandou pedir livros da sua livraria (uma Vida de Buda, uma História da Grécia e as obras de S. Francisco de Sales) fui, depois destes quatro anos, ao Jasmineiro deserto. Cada passo meu sobre os fofos tapetes de Caramânia soou triste como num chão de mortos. Todos os brocados estavam engelhados, esgaçados. Pelas paredes pendiam, como olhos fora de órbitas, os botões eléctricos das campainhas e das luzes — e havia vagos fios de arame, soltos, enroscados, onde a aranha regalada e reinando tecera teias espessas. Na livraria, todo o vasto saber dos séculos jazia numa imensa mudez, debaixo de uma imensa poeira. Sobre as lombadas dos sistemas filosóficos alvejava o bolor: vorazmente a traça devastara as Histórias Universais: errava ali um cheiro mole de literatura apodrecida — e eu abalei, com o lenço no nariz, certo de que naqueles vinte mil volumes não restava uma verdade viva! Quis lavar as mãos, maculadas pelo contacto com estes detritos de conhecimentos humanos. Mas os maravilhosos aparelhos do lavatório, da sala de banho, enferrujados, perros, dessoldados, não largaram uma gota de água; e, como chovia nessa tarde de Abril, tive de sair à varanda, pedir ao céu que me lavasse.Ao descer, penetrei no gabinete de trabalho de Jacinto e tropecei num montão negro de ferragens, rodas, lâminas, campainhas, parafusos... Entreabri a janela, e reconheci o telefone, o teatrofone, o fonógrafo, outros aparelhos, tombados das suas peanhas, sórdidos, desfeitos sob a poeira dos anos. Empurrei com o pé este lixo do engenho humano. A máquina de escrever, escancarada, com os buracos negros marcando as letras desarraigadas era como uma boca alvar e desdentada. O telefone parecia esborrachado, enrodilhado nas suas tripas de arame.Na trompa do fonógrafo, torta, esbeiçada, para sempre muda, fervilhavam carochas. E ali jaziam, tão lamentáveis e grotescas, aquelas geniais invenções, que eu saí rindo, como de uma enorme facécia, daquele supercivilizado palácio.A chuva de Abril secara: os telhados remotos da cidade negrejavam sobre um poente de carmesim e ouro. E, através das ruas mais frescas, eu ia pensando que este nosso magnífico século XIX se assemelharia um dia àquele Jasmineiro abandonado, e que os outros homens, com uma certeza mais pura do que é a Vida e a Felicidade, dariam como eu com o pé no lixo da supercivilização, e, como eu, ririam alegremente da grande ilusão que findara, inútil e coberta de ferrugem.Àquela hora, decerto, Jacinto, na varanda em Torges, sem fonógrafo e sem telefone, reentrado na simplicidade, via, sob a paz lenta da tarde, ao tremeluzir da primeira estrela, a boiada recolher entre o canto dos boiadeiros.

Cartas D’amor- Primeira Carta a Madame de Jouarre


Minha querida madrinha.
Ontem, em casa de Madame de Tressan, quando passei, levando para a ceia Libuska, estava sentada, conversando consigo, por debaixo do atroz retrato da marechala de Mouy, uma mulher loura, de testa alta e clara, que me seduziu logo, talvez por lhe pressentir, apesar de tão indolentemente enterrada num divã, uma rara graça no andar, graça altiva e ligeira de deusa e de ave. Bem diferente da nossa sapiente Libuska, que se move com o esplêndido peso de uma estátua! E do interesse por esse outro passo, possivelmente alado e diânico (de Diana), provém estas gratujas.Quem era? Suponho que nos chegou do fundo da província, de algum velho castelo do Anjou com erva nos fossos, porque me não lembro de Ter encontrado em Paris aqueles cabelos fabulosamente louros como o sol de Londres em Dezembro – nem aqueles ombros decaídos, dolentes, angélicos, imitados de uma madona de Mantegna, e inteiramente desusados em França desde o reinado de Carlos X, do “Lírio no Vale” e dos corações incompreendidos. Não admirei com igual fervor o vestido preto, onde reinavam coisas escandalosamente amarelas. Mas os braços eram perfeitos; e nas pestanas, quando as baixava, parecia pender um romance triste. Deu-me assim a impressão, ao começo, de ser uma elegíaca do tempo de Chateaubriand. Nos olhos porém surpreendi-lhe depois uma faísca de vivacidade sensível – que a datava do século XVIII. Dirá minha madrinha: “Como pude eu abranger tanto, ao passar, com Libuska ao lado fiscalizando?” É que voltei. Voltei, e da ombreira da porta readmirei os ombros de velas por trás, entre as orquídeas, nimbava de ouro; e sobretudo o sutil encanto dos olhos – dos olhos finos e lânguidos... Olhos finos e lânguidos. É a primeira expressão em que hoje apanho decentemente a realidade.Por que é que não me adiantei, e não pedi uma “ apresentação?” Nem sei. Talvez o requinte em retardar, que fazia com que La Fontaine, dirigindo-se mesmo para a felicidade, tomasse sempre o caminho mais longo. Sabe o que dava tanta sedução ao Palácio das Fadas, nos tempos do rei Artur? Não sabe. Resultados de não ler Tennyson... Pois era a imensidade de anos que levava a chegar lá, através de jardins encantados, onde cada recanto de bosque oferecia a emoção inesperada de um flirt, de uma batalha, ou de um banquete... (Com que mórbida propensão acordei hoje para o estilo asiático!) O fato é que, depois da contemplação junto à ombreira, voltei a cear ao pé da minha radiante tirana. Mas por entre a banal sandwich de foie-gras, e um copo de Tokay que Voltaire, já velho, se recordava de ter bebido em casa de Madame de Etioles (os vinhos dos Tressans descendem em linha varonil dos venenos de Brinvilliers), vi, constantemente vi, os olhos finos e lânguidos. Não há senão o homem, entre os animais, para misturar a languidez de um olhar fino a fatias de foie-gras. Não o faria decerto um cão de  boa raça. Mas seríamos nós desejados pelo “efêmero feminino” se não fosse esta providencial brutalidade? Só a porção da matéria que há no homem faz com que as mulheres se resignem à incorrigível porção de ideal, que nele há também – para eterna perturbação do mundo. O que mais prejudicou Petrarca aos olhos de Laura – foram os “Sonetos”. E quando Romeu, já com um pé na escada de seda, se demorava, exalando o seu êxtase em invocações à noite e à Lua – Julieta batia os dedos impacientes no rebordo do balcão, e pensava: “Ai, que palrador que és, filho dos Montaigus!” Este detalhe não vem em Shakespeare – mas é comprovado por toda a Renascença. Não me amaldiçoe por esta sinceridade de meridional céptico, e mande-me dizer que nome tem, na paróquia, a loura castelã do Anjou. A propósito de castelos: cartas de Portugal anunciam-me que o quiosque por mim mandado erguer em Sintra, na minha quintarola, e que lhe destinava como “seu pensadoiro e retiro nas horas de sesta” – abateu. Três mil e oitocentos francos achatados em entulho. Tudo tende à ruína num país de ruínas. O arquiteto que o construiu é deputado, e escreve no “Jornal da Tarde” estudos melancólicos sobre as Finanças! O meu procurador em Sintra aconselha agora, para reedificar o quiosque, um estimável rapaz, de boa família, que entende de construções e que é empregado na procuradoria Geral da Coroa! Talvez se eu necessitasse um jurisconsulto, me propusessem um trolha. É com estes elementos alegres, que nós procuramos restaurar o nosso império de África! Servo humilde e devoto.

Cartas D’amor- Primeira Carta a Clara


Não, não foi na Exposição dos Aguarelistas, em Março, que eu tive consigo o meu primeiro encontro, por mandado dos Fados. Foi no inverno, minha adorada amiga, no baile dos Tressans. Foi aí que a vi, conversando com Madame de Jouarre, diante de um console, cujas luzes, entre os molhos de orquídeas, punham nos seus cabelos aquele nimbo de ouro que tão justamente lhe pertence como “rainha de graça entre as mulheres”. Lembro ainda, bem religiosamente, o seu sorrir cansado, o vestido preto com relevos cor de botão de ouro, o leque antigo que tinha fechado no regaço; mas logo tudo em redor me pareceu irreparavelmente enfadonho e feio; e voltei a readmirar, a meditar em silêncio a sua beleza, que me prendia pelo esplendor patente e compreensível, e ainda por  não sei quê de fino, de espiritual, de dolente e de meigo que brilhava através e vinha da alma. E tão intensamente me embebi nessa contemplação, que levei comigo a sua imagem, decorada e inteira, sem esquecer um fio dos seus cabelos ou uma ondulação da seda que a cobria, e corri a encerrar-me com ela, alvoroçado, como um artista que nalgum escuro armazém, entre poeira e cacos, descobrisse a obra sublime de um mestre perfeito.E, por que o não confessarei? Essa imagem foi para mim, ao princípio, meramente um quadro, pendurado no fundo da minha alma, que eu a cada doce momento olhava – mas para  lhe louvar apenas, com crescente surpresa, os encantos diversos de linha e de cor. Era somente uma rara tela, posta em sacrário, imóvel e muda no seu brilho, sem outra influência mais sobre mim que a de uma forma muito bela que cativa um gosto muito educado. O meu ser  continuava livre, atento às curiosidades que até aí o seduziam, aberto aos sentimentos que até aí o solicitavam; — e só quando sentia a fadiga das coisas imperfeitas ou o desejo novo de uma ocupação mais pura, regressava à imagem que em mim guardava, como um Fra Angélico, no seu claustro, pousando os pincéis ao fim do dia, e ajoelhando ante a Madona a implorar dela repouso e inspiração superior.  Pouco a pouco, porém, tudo o que não foi esta contemplação, perdeu para mim o valor e encanto. Comecei a viver cada dia mais retirado no fundo da minha alma, perdido na admiração da imagem que lá rebrilhava —  até que só essa ocupação me pareceu digna da vida, no mundo todo não reconheci mais que uma aparência inconstante, e fui como um monge na sua cela, alheio às coisas mais reais, de joelhos e hirto no seu sonho, que é para ele a única realidade. Mas não era, minha adorada amiga, um pálido e passivo êxtase diante da sua imagem. Não! Era antes um ansioso e forte estudo dela, com que eu procurava conhecer através da forma e essência, e (pois a Beleza é o esplendor da Verdade) deduzir das perfeições do seu Corpo as superioridades da sua Alma. E foi assim que lentamente surpreendi o segredo da sua natureza; a sua clara testa que o cabelo descobre, tão clara e lisa, logo me contou a retidão do seu pensar: o seu sorriso, de uma nobreza tão intelectual, facilmente me revelou o seu desdém do mundanal e do efêmero, a sua incansável aspiração para um viver de verdade: cada graça de seus movimentos me traiu uma delicadeza do seu gosto: e nos seus olhos diferenciei o que neles tão adoravelmente se confunde, luz de razão, calor que melhor alumia... Já a certeza de tantas perfeições bastaria a fazer dobrar, numa adoração perpétua, os joelhos mais rebeldes. Mas sucedeu ainda que, ao passo que a compreendia e que a sua Essência se me manifestava, assim visível e quase tangível, uma influência descia dela sobre mim – uma influência estranha, diferente de todas as influências humanas, e que me dominava com transcendente onipotência. Como lhe poderei dizer? Monge, fechado na minha cela, comecei a aspirar à santidade, para me harmonizar e merecer a convivência com a Santa a que me votara. Fiz então sobre mim um áspero exame de consciência. Investiguei com inquietação se o meu pensar era condigno da pureza do seu pensar; se no meu gosto não haveria desconcertos que pudessem ferir a disciplina do seu gosto; se a minha idéia da vida era tão alta e séria como aquela que eu pressentira na espiritualidade do seu olhar, do seu sorrir; e se meu coração não se dispersara e enfraquecera de mais para poder palpitar com paralelo vigor junto do seu coração. E tem sido em mim agora um arquejante esforço para subir a uma perfeição idêntica àquela que em si tão submissamente adoro.De sorte que a minha querida amiga, sem saber, se tornou a minha educadora. E tão dependente fiquei logo desta direção, que já não posso conceber os movimentos do meu ser senão governados por ela e por ela enobrecidos. Perfeitamente sei que tudo o que hoje surge em mim de algum valor, idéia ou sentimento, é obra dessa educação que a sua alma dá à minha, de longe, só com existir e ser compreendida. Se hoje me abandonasse a sua influência —  devia antes dizer, como um asceta, a sua Graça – todo eu rolaria para uma inferioridade sem remição. Veja pois como se me tornou necessária e preciosa... E considere que, para exercer esta supremacia salvadora, as suas mãos não tiveram de se impor sobre as minhas – bastou que eu a avistasse de longe, numa festa, resplandecendo. Assim um arbusto silvestre floresce à borda de um fosso, porque lá em cima nos remotos céus fulge um grande sol, que não o vê, não o conhece, e magnanimamente o faz crescer, desabrochar, e dar o seu curto aroma... Por isso o meu amor tinge esse sentimento indescrito e sem nome que a Planta, se tivesse consciência, sentiria pela luz.E considere ainda que, necessitando de si como da luz, nada lhe rogo, nenhum bem imploro de quem tanto pode e é para mim dona de todo bem. Só desejo que me deixe viver sob essa influência, que, emanando do simples brilho das suas perfeições, tão fácil e docemente opera o meu aperfeiçoamento. Só peco esta permissão caridosa. Veja pois quanto me conservo distante e vago, na esbatida humildade de uma adoração que até receia que o seu murmúrio, um murmúrio de prece, roce o vestido da imagem divina...Mas se a minha querida amiga por acaso, certa do meu renunciamento a toda a recompensa terrestre, me permitisse desenrolar junto de si, num dia de solidão, a agitada confidência do meu peito, decerto faria um ato de inefável misericórdia – como outrora a Virgem Maria quando animava os seus adoradores, ermitas e santos, descendo numa nuvem e concedendo-lhes um sorriso  fugitivo, ou deixando-lhes cair entre as mãos erguidas uma rosa do paraíso. Assim, amanhã, vou  passar a tarde com Madame de Jouarre. Não há aí a santidade de uma cela ou de uma ermida, mas quase o seu isolamento: e se a minha querida amiga surgisse, em pleno resplendor, e eu recebesse de si, não direi uma rosa, mas um sorriso, ficaria então radiosamente seguro de que este amor, ou este meu sentimento indescrito e sem nome que vai além do amor, encontra ante seus olhos piedade e permissão para esperar.

Cartas D’amor- Segunda Carta a Clara


Meu amor,
Ainda há poucos instantes (dez instantes, dez minutos, que tanto gastei num desolador desde a nossa Torre de Marfim), eu sentia o rumor do teu coração junto ao meu, sem que nada os separasse senão uma pouca de argila mortal, em ti tão bela, em mim tão rude – e já estou tentando reconfigura ansiosamente, por meio deste papel inerte, esse inefável estar contigo que é hoje todo o fim da minha vida, a minha suprema e única vida. É que , longe da tua presença, cesso de viver, as coisas para mim cessam de ser – e fico como um morto jazendo no meio de um mundo morto, Apenas, pois, me finda esse perfeito e curto momento de vida que me dás, só com pousar junto de mim e murmurar o meu nome – recomeço a aspirar desesperadamente para ti, como uma ressurreição! Antes de te amar, antes de receber das mãos de meu deus a minha Eva – que era eu, na verdade? Uma sombra flutuando entre sombras. Mas tu vieste, doce adorada, para me fazer sentir a minha realidade, e me permitir que eu bradasse também triunfalmente o meu – “Amo, logo existo!” E não foi só a minha realidade que me desvendaste – mas ainda a realidade de todo este universo, que me envolvia como um ininteligível e cinzento montão de aparências. Quando há dias, no terraço de Savran, ao anoitecer, te queixavas que eu contemplasse as estrelas estando tão perto dos teus olhos, e espreitasse o adormecer das colinas junto ao calor dos teus ombros – não sabias, nem eu te soube então explicar, que essa contemplação era ainda um modo novo de te adorar, porque realmente estava admirando, nas coisas, a beleza inesperada que tu sobre elas derramas por uma emanação que te é própria, e que antes de viver ao teu lado, nunca eu lhes percebera, como se não percebe a vermelhidão das rosas ou o verde tenro das relvas antes de nascer o Sol! Foste tu, minha bem-amada, que alumiaste o mundo. No teu amor recebi a minha iniciação. Agora entendo, agora sei. E, como o antigo iniciado, posso afirmar: “Também fui a Elêusis; pela larga estrada pendurei muita flor que não era verdadeira, diante de muito altar que não era divino; mas a Elêusis cheguei, em Elêusis penetrei – e vi e senti a verdade!...”E acresce ainda, para meu martírio e glória, que tu és tão suntuosamente bela e tão etereamente bela, de uma beleza feita de Céu e de Terra, beleza completa e só tua, que eu já concebera – que nunca julgara realizável. Quantas vezes, ante aquela sempre admirada e toda perfeita Vênus de Milo, pensei que, se debaixo da sua testa de Deusa, pudessem tumultuar os cuidados humanos; se os seus olhos soberanos e mudos se soubessem toldar de lágrimas; se os seus lábios, só talhados para o mel e para os beijos, consentissem em tremer no murmúrio de uma prece submissa; se sob esses seios, que foram o apetite sublime dos Deuses e Heróis, um dia palpitasse o amor e com ele a Bondade; se o seu mármore sofresse, e pelo sofrimento se espiritualizasse, juntando ao esplendor da Harmonia a graça da Fragilidade; se ela fosse do nosso tempo e sentisse os nossos males, e permanecendo Deusa do Prazer se tornasse Senhora da Dor – então não estaria colocada num museu, mas consagrada num santuário, porque os homens, ao reconhecer nela a aliança sempre almejada e sempre frustrada do Real e do Ideal, decerto a teriam aclamado in aeternum, como a definitiva Divindade. Mas quê! A pobre Vênus só oferecia a serena magnificência da carne. De todo lhe faltava a chama que arde na lama e a consome. E a criatura incomparável do meu cismar, a Vênus Espiritual, Citeréia e Dolorosa, não existia, nunca existiria!... E quando eu assim pensava, eis que tu surges, e eu te compreendo! Eras a encarnação do meu sonho, ou antes de um sonho que deve ser universal – mas só eu te descobri, ou, tão feliz fui, que só por mim quiseste ser descoberta!  Vê, pois, se jamais te deixarei escapar dos meus braços! Por isso mesmo és a minha Divindade – para sempre e irremediavelmente estás presa dentro da minha adoração. Os sacerdotes de Cartago acorrentavam às lajes dos Templos, com cadeias de bronze, as imagens de seus Baals. Assim te quero também, acorrentada dentro do templo Avaro que te construí, só Divindade minha, sempre no eu altar – e eu sempre diante dele rojado, recebendo constantemente na alma a tua visitação, abismando-me sem cessar na tua essência, de modo que nem por um momento se descontinue essa fusão inefável, que é para ti um ato de Misericórdia e para mim de Salvação. O que eu desejaria na verdade é que fosses invisível para todos e como não existente – que perpetuamente um estofo informe escondesse o teu corpo, uma rígida mudez ocultasse a tua inteligência. Assim passarias no mundo como uma aparência incompreendida. E só para mim, de dentro do invólucro escuro, se revelaria a tua perfeição rutilante. Vê quanto te amo – que e queria entrouxada num rude, vago vestido de merino, com um ar quedo, inanimado... Perderia assim o triunfal contentamento de ver resplandecer entre a multidão maravilhada aquela que em segredo nos ama. Todos murmurariam compassivamente: “Pobre criatura!” E só eu saberia, da “pobre criatura”, o corpo e a alma adoráveis!   Quanto adoráveis! Nem compreendo que, tendo consciência do teu encanto, não estejas de ti namorada como aquele Narciso que reme de frio, coberto de musgo, à beira da fonte, em Savran. Mas eu largamente te amo, e por mim e por ti! A tua beleza, na verdade, atinge a altura de uma virtude – e foram decerto os modos tão puros da tua alma que fixaram as linhas tão formosas do teu corpo. Por isso há em mim um incessante desespero de não e saber amar condignamente – ou antes (pois desceste de um Céu superior) de não saber tratar, como ela merece, a hóspede divina do meu coração. Desejaria, por vezes, envolver-te toda numa felicidade imaterial, seráfica, calma infinitamente como deve ser a Bem-Aventurança – e assim deslizarmos enlaçados através do silêncio e da luz, muito brandamente, num sonho cheio de certeza, saindo da vida à mesma hora e indo continuar no Além o mesmo sonho extático. E outras vezes desejaria arrebatar-te numa felicidade veemente, tumultuosa, fulgurante, toda de chama, de tal sorte que nela nos destruíssemos sublimemente, e de nós só restasse uma pouca de cinza sem memória e sem nome! Possuo uma velha gravura que é um Satanás, ainda em toda a refulgência da beleza arcangélica, arrastando nos braços para o Abismo uma freira, uma Santa, cujos derradeiros véus de penitência se vão esgaçando pelas pontas das rochas negras. E na face da santa, através do horror, brilha, irreprimida e mais forte que o horror, uma tal alegria e paixão, tão intensas – que eu as apeteceria para ti, oh minha santa roubada! Mas de nenhum destes modos te sei amar, tão fraco ou inábil é o meu coração, de modo que por o meu amor não ser perfeito, tenho de me contentar que seja eterno. Tu sorris tristemente desta Eternidade. Ainda ontem me perguntavas: “No calendário do seu coração, quantos dias dura a Eternidade? “ Mas considera que eu era um morto – e que tu me ressuscitaste. O sangue novo que me circula nas veias, o espírito novo que em mim sente e compreende, são o meu amor por ti – e se ele me fugisse, eu teria outra vez, regelado e mudo, de reentrar no meu sepulcro. Só posso deixar de te amar – quando deixar de ser. E a vida contigo, e por ti, é tão inexprimivelmente  bela! É a vida de um deus. Melhor talvez: —  se eu fosse esse pagão que tu afirmas que sou, mas um pagão do Lácio, pastor de gados, crente ainda em Júpiter e Apolo, a cada instante temeria que um desses deuses invejosos te raptasse, te elevasse ao Olimpo para completar a sua ventura divina. Assim não receio – toda minha te sei para todo o sempre, olho o mundo em torno de nós como um paraíso para nós criado, e durmo seguro sobre o teu peito na plenitude da glória, oh minha três vezes bendita, Rainha da minha graça. Não penses que estou compondo cânticos em teu louvor. É em plena simplicidade que deixo escapar o que me está borbulhando na alma... Ao contrário! Toda a Poesia de todas as idades, na sua gracilidade ou na sua majestade, seria impotente para exprimir o meu êxtase. Balbucio, como posso, a minha infinita oração. E nesta desoladora insuficiência do verbo humano, é como o mais inculto e o mais iletrado que ajoelho ante ti, e levanto as mãos, e te asseguro a única verdade, melhor que todas as verdades – que te amo, e te amo, e te amo, e te amo!...

Cartas D’amor- Terceira Carta a Clara


Toda em queixumes, quase rabugenta, e mentalmente trajada de luto, me apareceu hoje a tua carta com os primeiros frios de Outubro. E por quê, minha doce descontente? Porque, mais fero de coração que um Trastamara ou um Bórgia, estive cinco dias (cinco curtos dias de Outono) sem te mandar uma linha, afirmando essa verdade tão patente e de ti conhecida como o disco do Sol – “que só em ti penso, e só em ti vivo!...” Mas não sabes tu, oh super amada, que a tua lembrança me palpita na alma tão natural e perenemente como o sangue no coração? Que outro princípio governa e mantém a minha vida senão o teu amor? Realmente necessitas ainda, cada manha, um certificado, em letra bem firme, de que minha paixão está viva e viçosa e te envia os bons-dias? Para quê? Para sossego da tua incerteza? Meu Deus! Não será antes par regalo do teu orgulho? Sabes que és deusa, e reclamas incessantemente o incenso e os cânticos do teu devoto. Mas Santa Clara, tua padroeira, era uma grande santa, de alta linhagem, de triunfal beleza, amiga de São Francisco de Assis, confidente de Gregório IX, fundadora de mosteiros, suave fonte de piedade e milagres – e todavia só é festejada uma vez, cada ano, a 27 de Agosto!Sabes bem que estou gracejando, Santa Clara da minha fé! Não! Não mandei linha supérflua, porque todos os males bruscamente se abateram sobre mim: um defluxo burlesco, com melancolia, obtusidade e espirros: um confuso duelo, de que fui o enfastiado padrinho, e em que apenas um ramo seco de olaia sofreu, cortado por uma bala; e, enfim, um amigo que regressou da Abissínia, cruelmente abissinizante, e a quem tive de escutar com resignado pasmo as caravanas, os perigos, os amores, as façanhas e os leões!... E aí está a minha pobre Clara, solitária nas suas florestas, ficou sem essa folha, cheia das minhas letras, e tão inútil par a segurança do seu coração como as folhas que a cerca, já murchas decerto e dançando no vento.Porque não sei como se comportam os teus bosques; — mas aqui as folhas do meu pobre jardim amarelam e rolam na erva úmida. Para me consolar da verdura perdida, acendi o meu lume: — e toda a noite de ontem mergulhei na muito velha crônica de um cronista medieval da minha terra, que se chama Fernão Lopes. Aí se conta de um rei que recebeu o débil nome de “Formoso”, e que, por causa de um grande amor, desdenhou princesas de Castela e de Ararão, dissipou tesouros, afrontou sedições, sofreu a desafeição dos povos, perdeu a vassalagem de castelos e terras, e quase estragou o reino! Eu já conhecia a crônica – mas só agora compreendo o rei. E grandemente o invejo, minha linda Clara! Quando se ama como ele (ou como eu), deve ser um contentamento esplêndido o ter princesas da cristandade, e tesouros, e um povo, e um reino forte para sacrificar a dois olhos, finos e lânguidos, sorrindo pelo que esperam e mais pelo que prometem... Na verdade só se deve amar quando se é rei – porque só então se pode comprovar a altura do sentimento com a magnificência do sacrifício. Mas um mero vassalo como eu (sem hoste ou castelo), que possui ele de rico, ou de nobre, ou de belo para sacrificar?  Tempo, fortuna, vida? Mesquinhos valores. É como ofertar na mão aberta um pouco de pó. E depois a bem-amada nem sequer fica na história.  E por história – muito aprovo, minha estudiosa Clara, que andes lendo a do divino Buda. Dizes, desconsoladamente, que ele te parece apenas “um Jesus muito complicado”. Mas, meu amor, é necessário desentulhar esse pobre Buda da densa aluvião de Lendas e Maravilhas que sobre ele tem acarretado, durante séculos, a imaginação da Ásia. Tal como ela foi, desprendida da sua mitologia, e na sua nudez histórica – nunca alma melhor visitou a Terra, e nada iguala, como virtude heróica, a “Noite do Renunciamento”. Jesus foi um proletário, um mendigo sem vinha ou leira, sem amor nenhum terrestre, que errava pelos campos da Galiléia, aconselhando aos homens a que abandonassem como ele os seus lares e bens, descessem à solidão e à mendicidade, para penetrarem um dia num Reino venturoso, abstrato, que está nos Céus. Nada sacrificava em si e instigava os outros ao sacrifício – chamando todas as grandezas ao nível da sua humildade. O Buda, pelo contrário, era um Príncipe, e como eles costumam ser na Ásia, de ilimitado poder, de ilimitada riqueza: casara por um imenso amor, e daí lhe viera um filho, em quem esse amor mais se sublimara: — e este príncipe, este esposo, este pai, um dia, por dedicação aos homens, deixa o seu palácio, o seu reino, a esposada do seu coração, o filhinho adormecido no berço de nácar, e, sob a rude estamenha de um mendicante, vai através do mundo esmolando e pregando a renúncia aos deleites, o aniquilamento de todo o desejo, o ilimitado amor pelos seres, o incessante aperfeiçoamento na caridade, o desdém forte do ascetismo que se tortura, a cultura perene da misericórdia que resgata, e a confiança na morte...  Incontestavelmente, a meu ver (tanto quanto estas excelsas coisas se podem discernir de uma casa de Paris, no século XIX e com defluxo) a vida do Buda é mais meritória. E depois considera a diferença do ensino dos dois divinos Mestres. Um, Jesus, diz: “Eu sou filho de Deus, e insto com cada um de vós, homens mortais, em que pratiqueis o bem durante os poucos anos que passais na Terra, para que eu depois, em prêmio, vos dê a cada um, individualmente, uma existência superior, infinita em anos e infinita em delícias, num palácio que está além das nuvens e que é de meu Pai!” O Buda, esse, diz simplesmente: “Eu sou um pobre frade mendicante, e peco-vos que sejais bons durante a vida, porque de vós, em recompensa, nascerão outros melhores, e desses outros ainda mais perfeitos, e assim, pela prática crescente da virtude em cada geração, se estabelecerá pouco a pouco na Terra a virtude universal!” A justiça do justo, portanto, segundo Jesus, só aproveita egoisticamente ao justo. E a justiça do justo, segundo Buda, aproveira ao ser que o substituir na existência, e depois ao outro que deve nascer, sempre durante a passagem na Terra, para lucro eterno da Terra. Jesus cria uma aristocracia de santos, que arrebata para o Céu onde ele é Rei, e que constituem a corte do Céu para deleite da sua divindade: — e não vem dela proveito direto para o Mundo, que continua a sofrer da sua porção de Mal, sempre indiminuída. O Buda, esse, cria, pela soma das virtudes individuais, santamente acumuladas, uma humanidade que em cada ciclo nasce progressivamente melhor, que por fim se torna perfeita, e que se estende a toda Terra donde o Mal desaparece, e onde o Buda é sempre, à beira do caminho rude, o mesmo frade mendicante. Eu, minha flor, sou pelo Buda. Em todo o caso, esses dois Mestres possuíram, para bem dos homens, a maior Porção de divindade que até hoje tem sido dado à alma humana conter. De resto, tudo isto é muito complicado; e tu sabiamente procederias em deixar o Buda no seu budismo, e, uma vez que esses teus bosques são tão admiráveis, em te retemperar na sua forca e nos seus aromas salutares. O Buda pertence à cidade e ao colégio de Franca: no campo a verdadeira Ciência deve cair das árvores, como nos tempos de Eva. Qualquer folha de olmo te ensina mais que todas as folhas dos livros. Sobretudo do que eu —  que aqui estou pontificando, e fazendo pedantemente, ante os teus lindos olhos, tão finos e meigos, um curso escandaloso de Religiões Comparadas. Só me restam três polegadas de papel – e ainda te não contei, oh doce exilada, as novas de Paris, acta Urbis. (Bom, agora latim!) São raras, e pálidas. Chove; continuamos em república; Madame de Jouarre, que chegou da Rocha com menos cabelos brancos, mas mais cruel, convidou alguns desventurados (dos quais eu o maior) para escutarem três capítulos dum novo atentado do barão de Fernay sobre a Grécia; os jornais publicam outro prefácio do sr. Renan, todo cheio do sr. Renan, e em que ele se mostra, como sempre, o enternecido e erudito vigário de Nossa Senhora da razão; e temos, enfim, um casamento de paixão e de luxo, o do nosso escultural visconde de Fonblant com mademoiselle Degrave, aquela nariguda, magrinha e de maus dentes, que herdou, milagrosamente, os dois milhões do cervejeiro e que tem tão lindamente engordado e ri com dentes tão lindos. Eis tudo, minha adorada... E é tempo que te mande, em montão, nesta linha, as saudades, os desejos e as coisas ardentes e suaves e sem nome de que meu coração está cheio, sem que se esgote por mais que plenamente as arremesse aos teus pés adoráveis, que beijo com submissão e com fé.

Cartas D’amor- Quarta Carta a Clara




Minha amiga,
É verdade que eu parto, e para uma viagem muito longa e remota, que será como um desaparecimento. E é verdade ainda que a empreendo assim bruscamente, não por curiosidade de um espírito que já não tem curiosidades – mas para findar do modo mais condigno e mais belo uma ligação, que, como a nossa, não deveria nunca ser maculada por uma agonia tormentosa e lenta.Decerto, agora que eu dolorosamente reconheço que sobre o nosso tão viçoso e forte amor se vai em breve exercer a lei universal de perecimento e fim das coisas – eu poderia, poderíamos ambos, tentar, por um esforço destro e delicado do coração e da inteligência, o seu prolongamento fictício. Mas seria essa tentativa digna de si, de mim, da nossa lealdade – e da nossa paixão? Não! Só nos prepararíamos assim um arrastado tormento, sem a beleza dos tormentos que a alma apetece e aceita, nos puros momentos de fé e todo deslustrado e desfeado por impaciências, recriminações, inconfessados arrependimentos, falsa ressurreições do desejo, e de todos os enervamentos as saciedade. Não conseguiríamos deter a marcha da lei inexorável – e um dia nos encontraríamos, um diante do outro, como vazios, irreparavelmente tristes, e cheios do amargor da luta inútil. E de uma cousa tão pura e sã e luminosa, como foi o nosso amor, só nos ficaria, presente e pungente, a recordação de destroços e farrapos feitos por nossas mãos, e por elas rojados com desespero no pó derradeiro de tudo.Não! Tal acabar seria intolerável. E depois como toda a luta é ruidosa, e se ano pode nunca disciplinar e enclausurar no segredo do coração, nós deixaríamos decerto entrever enfim ao mundo um sentimento que dele escondemos por altivez, não por cautela – e o mundo conheceria o nosso amor justamente quando ele já perdera a elevação e a grandeza que quase o santificam... De resto, que importa o mundo? Só para nós, que fomos um para o outro e amplamente o mundo todo, é que devemos evitar ao nosso amor a lenta decomposição que degrada.Para perpétuo orgulho do nosso coração é necessário que desse amor, que tem de perecer como tudo o que vive, mesmo o Sol – nos fique uma memória tão límpida e perfeita que ela só por si nos possa dar, durante o porvir melancólico, um pouco dessa felicidade e encanto que o próprio amor nos deu quando era em nós uma sublime realidade governando o nosso ser.  A morte, na plenitude da beleza e da força, era considerada pelos antigos como o melhor benefício dos deuses – sobretudo para os que sobreviviam, porque sempre a face amada que passara lhes permanecia na memória com o seu natural viço e sã formosura, e não mirrada e deteriorada pela fadiga, pelas lágrimas, pela desesperança, pelo amor. Assim deve ser também com o nosso amor.Por isso mal lhe surpreendi os primeiros desfalecimentos, e, desolado, verifiquei que o tempo o roçara com a frialdade da sua foice – decidi partir, desaparecer. O nosso amor, minha amiga, será assim como uma flor milagrosa que cresceu, desabrochou, deu todo o seu aroma – e, nunca cortada, nem sacudida dos ventos ou das chuvas, nem de leve emurchecida, fica na sua haste solitária, encantando ainda com as suas cores os nossos olhos quando para ela de longe se volvem, e para sempre, através da idade, e perfumando a nossa vida.Da minha vida sei, pelo menos, que ela perpetuamente será iluminada e perfumada pela sua lembrança. Eu sou na verdade como um desses pastores que outrora, caminhando pensativamente por uma colina da Grécia, viam de repente, ante os seus olhos extáticos, Vênus magnífica e amorosa que lhes abria os braços brancos. Durante um momento o pastor mortal repousava sobre o seio divino, e sentia o murmúrio do divino suspirar. Depois havia um leve frêmito – e ele só encontrava ante si uma nuvem recendente que se levantavam se sumia nos ares por entre o vôo claro das pombas. Apanhava seu cajado, descia a colina... Mas para sempre, através da vida, conservava um deslumbramento inefável. Os anos poderiam rolar, e o seu gado morrer, e a ventania levar o colmo da sua choupana, e todas as misérias da velhice sobre ele caírem – que sem cessar sua alma resplandecia, e um sentimento de glória ultra-humano o elevava acima do transitório e do perecível, porque na fresca manha de Maio, além, sobre o cimo da colina, ele tivera o seu momento de divinização entre o mirto e o tomilho!Adeus, minha amiga. Pela felicidade incomparável que me deu – seja perpetuamente bendita.