Castro Alves

A Maria Candinha


Quando eu leio o teu nome embalsamado

Das magnólias do sul sinto o perfume,

Ouço a harmonia do violão magoado,

Vejo a luz singular do vaga-lume!


Poeta


POETA, às horas mortas que o cálice azulado

— Da etérea flor — a noite — debruça-se p'ra o mar,

E a pálida sonâmbula, cumprindo o eterno fado,

As gazas transparentes espalha do luar,


Eu vi-te ao clarão, trêmulo dos astros lá n'altura

Pela janela aberta às virações azuis,

— A amante sobre o peito sedento de ternura,

A mente no infinito sedenta só de luz.


Perto do candelabro teu Lamartine terno

À tua espera abria as folhas de cetim;

Mas tu lias no livro, onde escrevera o Eterno

Letras — que são estrelas — no céu — folha sem fim


Cismavas... de astro em astro teu pensamento errava

Rasgando o reposteiro da seda azul dos céus:

E teu ouvido atento... em êxtase escutava

Nas virações da noite o respirar de Deus.


O oceano de tua alma, do crânio transbordando,

Enchia a natureza de sentimento e amor,

As noites eram ninhos de amantes s'ocultando,

O monte — um braço erguido em busca do Senhor.


Nas selvas, nas neblinas o olhar visionário

Via s'erguer fantasmas aqui... ali... além,

P'ra ti era o cipreste — o dedo mortuário

Com que o sepulcro aponta no espaço ao longe... alguém



No cedro pensativo, que a sós no descampado

Geme e goteja orvalhos ao sopro do tufão,

Vias um triste velho — sozinho, desprezado

Molhando a barba em prantos co'a fronte para o chão.


Aqui — ondina louca — vogavas sobre os mares —

Ali — silfo ligeiro — na murta ias dormir,

Anjo — de algum cometa, que vaga pelos ares,

Na cabeleira fúlgida brincavas a sorrir.


Sublime panteísta, que amor em ti resumes,

Sentes a alma de Deus na criação brilhar!

Perfume — tu subias, de um anjo entre os perfumes,

Ave do céu — nas nuvens teu ninho ias buscar.


Canta, poeta, os hinos, com que o silêncio acordas,

A natureza — é uma harpa presa nas mãos de Deus.

O mundo passa... e mira o brilho dessas cordas...

E o hino?... O hino apenas chega aos ouvidos teus.


Todo o universo é um templo — o céu a cúpula imensa,

Os astros — lampas de ouro no espaço a cintilar,

A ventania — é o órgão que enche a nave extensa,

Tu és o sacerdote da terra — imenso altar.



O povo ao poder



QUANDO nas praças s'eleva

Do povo a sublime voz...

Um raio ilumina a treva

O Cristo assombra o algoz...

Que o gigante da calçada

Com pé sobre a barricada

Desgrenhado, enorme, e nu,

Em Roma é Catão ou Mário,

É Jesus sobre o Calvário,

É Garibaldi ou Kossuth.



A praça! A praça é do povo

Como o céu é do condor

É o antro onde a liberdade

Cria águias em seu calor.

Senhor!... pois quereis a praça?

Desgraçada a populaça

Só tem a rua de seu...

Ninguém vos rouba os castelos

Tendes palácios tão belos...

Deixai a terra ao Anteu.



Na tortura, na fogueira...

Nas tocas da inquisição

Chiava o ferro na carne

Porém gritava a aflição.

Pois bem... nest’hora poluta

Nós bebemos a cicuta

Sufocados no estertor;

Deíxai-nos soltar um grito

Que topando no infinito

Talvez desperte o Senhor.


A palavra! vós roubais-la

Aos lábios da multidão

Dizeis, senhores, à lava

Que não rompa do vulcão.

Mas qu'infâmia! Ai, velha Roma,

Ai, cidade de Vendoma,

Ai, mundos de cem heróis,

Dizei, cidades de pedra,

Onde a liberdade medra

Do porvir aos arrebóis.



Dizei, quando a voz dos Gracos

Tapou a destra da lei?

Onde a toga tribunícia

Foi calcada aos pés do rei?

Fala, soberba Inglaterra,

Do sul ao teu pobre irmão;

Dos teus tribunos que é feito?

Tu guarda-os no largo peito

Não no lodo da prisão.




No entanto em sombras tremendas

Descansa extinta a nação

Fria e treda como o morto.

E vós, que sentis-lhe o pulso

Apenas tremer convulso

Nas extremas contorções...

Não deixais que o filho louco

Grite "oh! Mãe, descansa um pouco

Sobre os nossos corações".



Mas embalde... Que o direito

Não é pasto do punhal.

Nem a patas de cavalos

Se faz um crime legal...

Ah! não há muitos setembros

Da plebe doem os membros

No chicote do poder,

E o momento é malfadado

Quando o povo ensangüentado

Diz: já não posso sofrer.



Pois bem! Nós que caminhamos

Do futuro para a luz,

Nós que o Calvário escalamos

Levando nos ombros a cruz,

Que do presente no escuro

Só temos fé no futuro,

Como alvorada do bem,

Como Laocoonte esmagado

Morreremos coroado

Erguendo os olhos além.



Irmãos da terra da América,

Filhos do solo da cruz,

Erguei as frontes altivas,

Bebei torrentes de luz...

Ai! soberba populaça,

Rebentos da velha raça

Dos nossos velhos Catões,

Lançai um protesto, é povo,

Protesto que o mundo novo

Manda aos tronos e às nações.


A duas flores


São duas flores unidas,

São duas rosas nascidas

Talvez no mesmo arrebol,

Vivendo no mesmo galho,

Da mesma gota de orvalho,

Do mesmo raio de sol.


Unidas, bem como as penas

Das duas asas pequenas

De um passarinho do céu...

Como um casal de rolinhas,

Como a tribo de andorinhas

Da tarde no frouxo véu.


Unidas, bem como os prantos,

Que em parelha descem tantos

Das profundezas do olhar...

Como o suspiro e o desgosto,

Como as covinhas do rosto,

Como as estrelas do mar.


Unidas... Ai quem pudera

Numa eterna primavera

Viver, qual vive esta flor.

Juntar as rosas da vida

Na rama verde e florida,

Na verde rama do amor!



Durante um temporal



VAI FUNDA a tempestade no infinito,

Ruge o ciclone túmido e feroz...

Uiva a jaula dos tigres da procela

— Eu sonho tua voz —


Cruzam as nuvens refulgentes, negras,

Na mão do vento em desgrenhados elos...

Eu vejo sobre a seda do corpete

Teus lúbricos cabelos ...


Do relâmpago a luz rasga até o fundo

Os abismos intérminos do ar...

Eu sondo o firmamento de tua alma,

À luz de teu olhar ...


Sobre o peito das vagas arquejantes

Borrifa a espuma em ósculos o espaço...

Eu — penso ver arfando, alvinitentes,

As rendas no regaço.


A terra treme... As folhas descaídas

Rangem ao choque rijo do granizo

Como acalenta um coração aflito,

Como é bom teu sorriso,....


Que importa o vendaval, a noite, os euros,

Os trovões predizendo o cataclismo...

Se em ti pensando some-se o universo

E em ti somente eu cismo...


Tu és a minha vida ... o ar que aspiro ...

Não há tormentas quando estás em calma.

Para mim só há raios em teus olhos,

Procelas em tua alma!