Poemas soltos
Dor de alma
Meu pratinho de arroz docepolvilhado de canela;Era bom mas acabou-sedesde que a vida me trouxeoutros cuidados com ela.
Eu, infante, não sabiaas mágoas que a vida tem.Ingenuamente sorria,me aninhava e adormeciano colo da minha mãe.
Soube depois que há no mundoumas tantas criaturasque vivem num charco imundoarrancando arroz do fundode pestilentas planuras.
Um sol de arestas pastosascobre-os de cinza e de azebreà flor das águas lodosas,eclodindo em capciosasintermitências de febre.
Já não tenho o teu engodo,Ó mãe, nem desejo tê-lo.Prefiro o charco e o lodo.Quero o sofrimento todo,Quero senti-lo, e vencê-lo.
Lagrima de preta
Encontrei uma pretaque estava a chorar,pedi-lhe uma lágrimapara analisar.
Recolhi a lágrimacom todo o cuidadonum tubo de ensaiobem esterilizado.
Olhei-a de um lado,do outro e de frente:tinha um ar de gotamuito transparente.
Mandei vir os ácidos,as bases e os sais,as drogas usadasem casos que tais.
Ensaiei a frio,experimentei ao lume,de todas as vezesdeu-me o que é costume:
nem sinais de negronem vestígios de ódio.Água (quase tudo)e cloreto de sódio.
Gota de água
Eu, quando choro,não choro eu.Choro aquilo que nos homensem todo o tempo sofreu.As lágrimas são as minhasmas o choro não é meu.
Poema do alegre desespero
Compreende-se que lá para o ano três mil e talninguém se lembre de certo Fernão barbudoque plantava couves em Oliveira do Hospital,
ou da minha virtuosa tia-avó Maria das Doresque tirou um retrato toda vestida de veludosentada num canapé junto de um vaso com flores.
Compreende-se.
E até mesmo que já ninguém se lembre que houve três impérios no Egiptoo Alto Império, o Médio Império e o Baixo Impériocom muitos faraós, todos a caminharem de lado e a fazerem tudo de perfil,e o Estrabão, o Artaxerpes, e o Xenofonte, e o Heraclito,e o desfiladeiro das Termópilas, e a mulher do Péricles, e a retirada dos dez mil,e os reis de barbas encaracoladas que eram senhores de muitas terras,que conquistavam o Lácio e perdiam o Épiro, e conquistavam o Épiro e perdiam o Lácio,
e passavam a vida inteira a fazer guerras,e quando batiam com o pé no chão faziam tremer todo o palácio,e o resto tudo por aí fora,e a Guerra dos Cem Anos,e a Invencível Armada,e as campanhas de Napoleão,e a bomba de hidrogénio,e os poemas de António Gedeão.
Compreende-se.
Mais império menos império,mais faraó menos faraó,será tudo um vastíssimo cemitério,cacos, cinzas e pó.
Compreende-se.Lá para o ano três mil e tal.
E o nosso sofrimento para que serviu afinal?
Pedra filosofal
Eles não sabem que o sonho
é uma constante da vida
tão concreta e definida
como outra coisa qualquer,
como esta pedra cinzenta
em que me sento e descanso,
como este ribeiro manso
em serenos sobressaltos,
como estes pinheiros altos
que em verde e oiro se agitam,
como estas aves que gritam
em bebedeiras de azul.
Eles não sabem que o sonho
é vinho, é espuma, é fermento,
bichinho álacre e sedento,
de focinho pontiagudo,
que fossa através de tudo
num perpétuo movimento.
Eles não sabem que o sonho
é tela, é cor, é pincel,
base, fuste, capitel,
arco em ogiva, vitral,
pináculo de catedral,
contraponto, sinfonia,
máscara grega, magia,
que é retorta de alquimista,
mapa do mundo distante,
rosa-dos-ventos, Infante,
caravela quinhentista,
que é cabo da Boa Esperança,
ouro, canela, marfim,
florete de espadachim,
bastidor, passo de dança,
Colombina e Arlequim,
passarola voadora,
pára-raios, locomotiva,
barco de proa festiva,
alto-forno, geradora,
cisão do átomo, radar,
ultra-som, televisão,
desembarque em foguetão
na superfície lunar.
Eles não sabem, nem sonham,
que o sonho comanda a vida,
que sempre que um homem sonha
o mundo pula e avança
como bola colorida
entre as mãos de uma criança.
Calçada de Carriche
Luísa sobe,
sobe a calçada,
sobe e não pode
que vai cansada.
Sobe, Luísa,
Luísa, sobe,
sobe que sobe
sobe a calçada.
Saiu de casa
de madrugada;
regressa a casa
é já noite fechada.
Na mão grosseira,
de pele queimada,
leva a lancheira
desengonçada.
Anda, Luísa,
Luísa, sobe,
sobe que sobe,
sobe a calçada.
Luísa é nova,
desenxovalhada,
tem perna gorda,
bem torneada.
Ferve-lhe o sangue
de afogueada;
saltam-lhe os peitos
na caminhada.
Anda, Luísa.
Luísa, sobe,
sobe que sobe,
sobe a calçada.
Passam magalas,
rapaziada,
palpam-lhe as coxas,
não dá por nada.
Anda, Luísa,
Luísa, sobe,
sobe que sobe,
sobe a calçada.
Chegou a casa
não disse nada.
Pegou na filha,
deu-lhe a mamada;
bebeu da sopa
numa golada;
lavou a loiça,
varreu a escada;
deu jeito à casa
desarranjada;
coseu a roupa
já remendada;
despiu-se à pressa,
desinteressada;
caiu na cama
de uma assentada;
chegou o homem,
viu-a deitada;
serviu-se dela,
não deu por nada.
Anda, Luísa.
Luísa, sobe,
sobe que sobe,
sobe a calçada.
Na manhã débil,
sem alvorada,
salta da cama,
desembestada;
puxa da filha,
dá-lhe a mamada;
veste-se à pressa,
desengonçada;
anda, ciranda,
desaustinada;
range o soalho
a cada passada;
salta para a rua,
corre açodada,
galga o passeio,
desce a calçada,
chega à oficina
à hora marcada,
puxa que puxa,
larga que larga,
puxa que puxa,
larga que larga,
puxa que puxa,
larga que larga,
puxa que puxa,
larga que larga;
toca a sineta
na hora aprazada,
corre à cantina,
volta à toada,
puxa que puxa,
larga que larga,
puxa que puxa,
larga que larga,
puxa que puxa,
larga que larga.
Regressa a casa
é já noite fechada.
Luísa arqueja
pela calçada.
Anda, Luísa,
Luísa, sobe,
sobe que sobe,
sobe a calçada,
sobe que sobe,
sobe a calçada,
sobe que sobe,
sobe a calçada.
Anda, Luísa,
Luísa, sobe,
sobe que sobe,
sobe a calçada.