Depois da nossa última discussão, calei-me. Reparaste que me calei? Não penses que foi fácil.
Na última noite em que discutimos, deitámo-nos de costas voltadas um para o outro. Eu já tinha decidido fechar os olhos e dormir, mas tu, pelo resultado, não te deitaste com o mesmo objetivo.
Falaste — falaste a noite inteira. Levantaste-te algumas vezes, sempre a falar. Que vontade eu tinha de me levantar também e rebater cada palavra tua, mas limitei-me a imaginar a tua figura inquieta, invasora do sossego do quarto.
Não foi fácil, não! A força com que cerrava a boca revolvia-me as entranhas de tal forma que, quatro dias depois, ainda sentia os maxilares doridos… o corpo inteiro a pedir descanso.
A minha mente guardou todas as tuas palavras, como se as tivesse escrito numa folha de papel. As poucas horas que dormimos não apagaram o desconforto existente entre nós e, apesar de tentarmos falar coisas triviais, elas ainda passam diante dos nossos olhos como um filme que deixa marcas, de tão intenso que é.
Que desgaste emocional! Sei que voltará a acontecer, mas fecharei o canal das palavras que, na hora cega, poderão sair inconsequentes.
Tantas serão as vezes que falarás sozinho que acabarás por te calares. Não, não penses que é desprezo. Durante estes dias em que fiquei calada, não só melhorei o meu estado de saúde, como abri uma porta que me levou a um melhor entendimento.
O que escrevo a seguir não é para renovar a discussão, mas para alertar o quanto nos podemos afastar da nossa essência quando priorizamos o ego, pois, por vezes, ele enxerga através de lentes baças.
Repetiste várias vezes: “Sou um parvo! Não valho nada!”
A essas afirmações seguiam-se lamentos de autopiedade:
“Os homens trabalhadores são parvos! Talvez nem por Deus sejam apreciados. Não me respondes? Prova do teu desprezo por mim! Que loucura, nem sei quem sou! A minha mãe nunca me desprezou. O meu pai morreu louco, batia na minha mãe e ela aguentou. Passei dez horas sem comer e ninguém reparou. Os grandes homens só são grandes se tiverem alma grande” — gritavas — “que pensamento tolo, o dos homens com grande alma que pensam que têm alguma utilidade, só porque são grandes almas! Coitados, limitam-se a inspirar teorias, pois, na prática, as grandes almas servem o interesse dos humanos. Na verdade, o que sou eu? Nada!” — continuavas a gritar.
Apesar de não te ver, via-te.
Imaginava, no escuro, os teus olhos lançando faíscas de raiva, a boca espumando, as entranhas contraídas. As minhas, apesar de quieta e calada, continuavam a doer.
A autopiedade é uma prisão. Não desejas ser livre?
Eu sei que podes pensar que esta frieza revela falta de amor, mas um dia, após um período de paz, entenderás que o meu silêncio foi respeito. Respeito por ti, por mim, pela missão individual que cada um de nós deve cumprir enquanto carnais. Ressuscitemos a nossa integridade, deixando partir o eco das palavras perigosas que, aos poucos, podem convencer-nos de que é através delas que encontraremos a nossa razão. Nunca uma multidão de insultos fará de alguém um vencedor.
Quem sabe um dia nos amemos verdadeiramente — de outra forma. Pois o amor conjugal pode adoecer e ter de partir para que eu não desfaleça também. Provavelmente ficará outra espécie de amor: aquele que se compadece da frágil condição humana e reconhece que eu, tu, todos nós habitamos o mesmo mundo onde a perfeição não existe.
Lancemos luz à nossa essência, para que os nocivos hábitos do ego experimentem a transmutação.
Ada Abaé