Não sei se a maioria sabe para o que nasceu. Eu sei que nasci para escrever, mas ainda assim fiz tantas outras coisas. Deixei-me absorver pelo mundo sem nunca a ele ter pertencido.
Hoje, bem mais velha, deitada na cama que eu mesma fiz, escrevo sem saber exatamente sobre o quê. Não posso continuar sem voltar à palavra “velha”, porque velha não me sinto. O corpo reclama um pouco, mas o espírito ignora: ele não conhece a passagem do tempo, não se dobra a ele.
É estranho. Sou dividida e simultaneamente recomposta, como um puzzle feito de identidades diferentes. Isso dá-me uma força singular, uma certeza íntima de que o mundo, aqui, nada pode.
A alma é mais maleável. Ela sabe chorar, conhece a desilusão e fabrica medos. A mente, por sua vez, pode ser traiçoeira: confunde o que serve e o que não serve, cria rotinas e prende-se a vícios. Não distingue quando a rotina traz ordem ou quando nos cega. É o jogo onde tudo parece real, normal, e que nos afasta de nós mesmos. E, curiosamente, achamos graça. Ou não.
Hábitos desequilibrados entregam-nos a rotinas que a nenhum outro animal lembrariam.
E volto à palavra “velha”. O que será, afinal, a velhice? Este rosto enrugado que sorri para o espelho e talvez me pergunte:
– Não me queres reparar?
Existe em mim um contrassenso: embora o espírito seja jovial, não está interessado em recuperar o rosto envelhecido. E por que deveria importar-se? Quando a matéria se for, ficará livre para viajar.
A alma deseja uma vida longa. O espírito, não sei quanto interesse tem neste mundo denso.
A alma é aquariana, rebelde, teimosa, destemida, sonhadora, cheia de amor para dar, mas também desligada. A mente rege-se um pouco por ela. Torna-se exigente, complacente ou preguiçosa, conforme o que a alma pedir. Cria o seu reino com aquilo que lhe der: se a levo a passear, amanhã quererá passear; se alimento o corpo a toda a hora, a toda a hora desejará comer.
Lembro-me bem: durante muitos anos ansiava pelo fim do trabalho. Que maravilha quando chegava a hora da recompensa! Conhecia cada passo até à loja. Que satisfação! A primeira mordida, a boca cheia de chocolate a derreter até à garganta. Aquilo sim era prazer. Era vida.
A mente ativava as papilas gustativas e os olhos procuravam, ávidos, a prateleira dos doces. E o corpo, coitado, sem saber o preço que pagaria, obedecia. Era tão bom... que hoje não suporto sequer um pedacinho de chocolate. Adoece-me imediatamente.
O corpo é a parte de mim com menos autonomia. Ele fala, mas levei muitos anos para o compreender – e ainda assim, apenas um pouco.
Pois continuo a ter mente e alma. E o espírito? Mantém-se longe de toda esta confusão.
Daí esta insónia perpétua.