Introdução ao código secreto

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Introdução ao código secreto

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Pete Kelleman (livro: Brasil para principiantes)

Para fins de contexto, o texto descreve o momento em que o protagonista (hungaro) está preparando o visto para emigrar para o Brasil e.. tal como se fosse um brasileiro querendo ir para o Japão ou Estados Unidos, enfrenta um estranho tipo de burocracia.

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Era preciso ainda um atestado de vacina e, na manhã seguinte, o porteiro me recomendou um médico, pertod do consulado. Fui depressa até lá e o médico aconselhou que eu não me vacinasse ... mas deu um jeito e forneceu o atestado.

Narrou muitas coisas do Brasil. Era um francês de cabelos brancos e creio que teria quase setenta anos. Conhecia o Brasil .

- Vivi lá quase vinte anos - disse êle - Que país! Que mulheres! Não há nada no mundo comparável à carioca.

- Carioca? O que quer dizer isso?

- Ora, carioca .. carioca é quem nasce no Rio de Janeiro. Será que existe alguém que não saiba o que é carioca? Incrível!

Sentou numa cadeira de balanço e começou a narrar sua história, como se fosse um Papai Noel sem fantasia.

- Voltei para Paris depois da guerra. Tinha uma pequena herança. Já sou velho.. não volto mais para lá. Você verá, meu filho. O ambiente, o clima, as pessoaras serão para você, no início, como o cigarro para quem nunca fumou: começa dando tonteira, tosse, falta de ar .. mas depois tudo se transforma. Será um prazer constante. Você vai adorar tudo. Mas é preciso que siga o meu conselho: prepara-se para aprender, desde já, duas línguas.

- Duas?

- Sim. O Português, que é o idioma que se fala no Brasil. E depois.. o código secreto.

- Código?

- Sim, código. Se não o conhecer, está perdido. É uma coisa que liquida com os nervos e pode até acabar com a vida dos forasteiros. É falado também em português, mas tem outro sentido. Precisa ser reinterpretado. E outra coisa - o código secreto é diferente de pessoa para pessoa, não tem "tradução" geral. E agora você já sabe. Para ser feliz no Brasil, siga três conselhos: primeiro aprenda o português; segundo, tente familiarizar-se com as diversas manifestações do código secreto e, terceiro, procure analisar o código de cada indivíduo com quem entrar em contato. Decifrando esta língua secreta você saberá exatamente como agir e, quem sabe, talvez possa até mesmo aprender, devagar, a falar as duas línguas.

Pensei logo que o velho já não devia regular muito bem. Estava cheio de idéias fixas, meio malucas. Eu só queria o meu atestado para ir embora.

M. André.. Dr. André (hoje já morto), peço que me perdoe o julgamento. Você não era louco, não: suas bobagens sobre a segunda língua, o código secreto, essas suas idéias "loucas" não eram maluquices. Você, Dr. André, médico aposentado, fornecedor de atestados, ex-brasileiro, estava certo, absolutamente certo, muito certo mesmo.

E, naquela mesma manhã, ali no consultório ao lado do consulado, o Dr. André me deu o primeiro exemplo desse código que eu mais tarde viria a conhecer.

- Sei que está com pressa, meu filho. Louco para embarcar. mas antes de ir, deixe-me dar um exemplo desse código. Vamos supor que você tenha negócios com um tal de Pereira, que lhe deve mil cruzeiros. Então, num determinado dia marcam um encontro para as dez e meia, na cidade. Você chega na hora. Entra no escritório do Pereira e é avisado pela secretária de que, infelizmente, ele viajou para São Paulo. Não é bem uma mentira, mas apenas uma indicação de que ele não tem dinheiro para liquidar a dívida. Embora sabendo disso, finja acreditar, agradeça a informação e vá embora. Alguns dias depois, por acaso, você o encontra na rua. Não, não diga que não percebeu a manobra. Ao contrário, peça desculpas. "Lamentavelmente, não cheguei na hora que o senhor marcou ... e como teve que viajar .." Agora vocês dois estão falando em código. Ele então responde: "Sim, esperei até onze e meia, mas precisei sair". "É... desculpe, atrasei-me por causa da condução". Agora, é oportuno arriscar a falar no dinheiro: "Quando quer que eu vá apanhar esses mil cruzeiros?"

Atenção: se ele tiver no bolso Cr$ 1.050,00, paga os mil e ainda o convida para almoçar (não aceite de jeito nenhum). Se não tiver o dinheiro (também convida, mas você recusa). Mandará então telefonar logo mais (quando você não estiver). Pelo código, isto significa que ainda não pode marcar a data do pagamento. Para evitar que isso aconteça, é recomendável que você peça trezentos cruzeiros, alegando que está absolutamente sem dinheiro. Tradução do código: você aceita pagamento parcelado. Se ele tiver os trezentos cruzeiros, dá logo; se não tiver, a história recomeça: a secretária informando que saiu, o telefone dizendo que não está. Mas não se preocupe. O dinheiro está garantido. Nenhum tostão se perderá. Se puder, ele paga. Isto requer paciência, tto e conhecimento do código usado pelo seu amigo Pereira. E não se exaspere. Ele não faz isso só com você. Faz com todo mundo. Se você se mostrar confiante, inocente, ingênuo, em vez de tomar uma atitude de cínico, irônico e debochaodo, receberá seus mil cruzeiros de volta e talvez, por intermédio dele, ganhará muitas notas de mil ... Isto se tudo correr bem, se o Pereira recuperar-se dessa dificuldade transitória e se você não tiver perdido a paciência.

Não esqueça, meu jovem amigo, de que é preciso se ambientar durante o primeiro ano. Aprenda a julgar os gestos, as meias-palavras, os olhares, as insinuações, pois o brasileiro jamais dirá a palavra 'não'.

Faça uma experiência. Entre numa farmácia e peça um remédio que não existe. O vendedor não dirá que nunca ouviu falar nesse nome, pois isto significa um 'não' definitivo. Vai dizer que acabou, mas que esperam nova remessa dentro de três dias. Mas isto não é o pior. Algumas vezes prefere dizer que no momento não tem o tal remédio, mas que na Casa Aurora, na Rua Direita, no 4, existe. Não vá, pelo amor de Deus: na Rua Direita, no 4, provavelmente não encontrará uma farmácia e, se encontrar, não terão o remédio.. mas podem fornecer-lhe outro endereço, onde talvez exista uma outra farmácia, mas nunca o seu remédio. Não desanime. Não adquira complexos, embora possa demonstrar pequenos distúrbios mentais que em nada o prejudicarão se puder aguentar seis meses sem estourar. Você não será expulso do país por causa de uma loucurazinha - o governo está ao seu lado, uma vez que em sua carteira no 19, o documento que identifica todos os estrangeiros, consta na página 20 o artigo 159. O que diz este artigo? "O estrangeiro pode ser expulso do país, sendo doente mental, caso as manifestações apareçam dentro de seis meses após o embarque".

Em outras palavras, no sétimo mês de sua permanência, as autoridades já aceitam a possibilidade de que você chegou completamente normal, mas, temporariamente, se perdeu no grande labirinto dos "amanhãs" que significam "nunca", dos "apareça lá em casa" que não representam um convite, dos "virei se Deus quiser" que significam "não conte com a minha presença"; dos "já foi providenciado" cuja tradução é "ainda não vi o caso, nem sei do que se trata" e, finalmente, "quando sua ficha ficar pronta, telefonaremos" que quer dizer "a ficha está na minha gaveta, você foi reprovado, não me amole mais".

- Meu filho - terminou o Dr. André - não o quero prender mais. Aqui está o seu atestado de vacina e o meu grande abraço. Deixe na minha mesa cinco mil francos. Quatro mil e novecentos pelo atestado e cem pelos conselhos que dei. Não dou conselhos grátis. pois ninguém dá valor a eles: quando se paga, pensa-se mais no assunto. Vá com Deus. Desejo-lhe muita sorte e felicidade.

Nunca mais vi o velho. E nunca tirei tanto proveito de cem francos.

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(Nota do Editor Derneval Cunha: Este não se trata de um texto sobre criptografia mas de um trecho do livro "Brasil para principiantes". O autor, um húngaro que emigrou para o Brasil após a 2a Grande Guerra, fez uma espécie de crítica (mais para sátira) ao caráter do povo brasileiro que encontrou naquela época, por volta dos anos 1950. Mesmo após esse tempo todo, aparecem ocasiões em que apresento este texto para algumas pessoas e elas ficam surpresas porquê nunca pensaram em si ou em pessoas que conhecem sob esta ótica. Em outras palavras, o texto é antigo porém atual. E ensina alguma coisa. O autor, apesar de húngaro, realmente entendeu o caráter do brasileiro. Talvez não o do brasileiro ideal. A última notícia que consegui encontrar dele na Internet foi que tinha dado um "golpe" financeiro tipo desfalque ou coisa do gênero e se mudou para o Paraguai. O livro não é difícil de encontrar em sebos ou bibliotecas - mas não está disponível para download - dependendo do ambiente em que você foi criado, pode "abrir os olhos" para um novo mundo. )